Roubou pequenas quantias aos pais, avó e mesmo “umas moedas do mealheiro” da irmã mais nova. “Tirava pouco, nunca repararam.” As dívidas que contraiu, junto de amigos, eram “quantias pequenas, devolvia até rápido”. Ainda antes de ter 18 anos, registou-se e começou a jogar em casinos online não-licenciados para operar em Portugal, contornando as limitações à transferência de dinheiro com recurso a plataformas como a PaySafe.
O impacto da adição estava ainda mais ao menos oculto da família, quando terminou o secundário (no ano de 2020, em plena pandemia). Pesou, embora, na hora de escolher o seu futuro. Em 2021, terminado o período de confinamento e interdição de voos, com 19 anos, emigrou para a Holanda. Queria ganhar dinheiro rápido, “continuar a jogar”.
Nos últimos três anos, Vasco concorreu e foi colocado no Ensino Superior em Portugal três vezes. “E desisti sempre no primeiro mês.”
A fase aguda
Começar a estudar Medicina na Covilhã não mudou nada para Dinis. Emigrar para a Holanda também não surtiu um efeito positivo para Vasco. Quando muito, piorou. Os dois jovens ficaram sem rotinas nem supervisão.
Os pais de Dinis foram levá-lo num domingo à Covilhã. Na segunda-feira, antes sequer da primeira aula, “foi meter uma aposta e apanhar uma bebedeira”. Entre setembro e novembro, começou a jogar online, contraiu dívidas com novos colegas. Quando deu por si, devia mais de 1000 euros a um total de 40 pessoas. “Já havia pessoas a ligar aos meus pais. Faltava a frequências, não tomava banho.”
Numa visita a casa, Dinis foi mais uma vez confrontado pelos pais. Pediram-lhe uma lista das suas dívidas e deram-lhe duas opções: “No domingo à noite vais para a Covilhã outra vez e nós não te pagamos nada disto. Arranjas-te. Ou vais para tratamento.”
Dinis foi para o Centro de Recuperação de Alcoólicos e Narcóticos (RAN) de Vila Real. (Já ligeiramente consciente do problema de que sofria, ainda antes de fazer o check-in no tratamento, pediu a autoexclusão dos jogos de azar em Portugal.) Pensava que seriam “só 15 dias”, mas os pais mentiram-lhe: foram três meses. Era o único paciente com problemas de adição com jogo – e o mais novo. Tinha 18 anos.
“Estava como numa prisão. Não fez sentido nenhum o primeiro tratamento. Mas por culpa minha. Não foi o tratamento que foi mau. Eu é que ainda tinha na cabeça que não tinha problema nenhum. Ia sair de lá e podia depois apostar, que me ia controlar. Andei a contar os dias. Recaí no dia a seguir a sair de lá”, diz.
“Na mesma semana, comprei uma PlayStation, um plasma, fui parar ao hospital quase em overdose. No final da semana, já tinha gastado o dinheiro todo", recorda Dinis.
Findo o tratamento, começou a pandemia da Covid-19. Parou o desporto. De forma artificial, o “gatilho” para o jogo de Dinis desapareceu. (Mesmo hoje não consegue ter uma aplicação de resultados desportivos no telemóvel.)
Durante nove meses, não apostou. Começou também a ser acompanhado, de 15 em 15 dias, por uma psicóloga do Instituto de Apoio ao Jogador.
Mas quando a normalidade desportiva regressou, teve a sua maior e mais grave recaída. “Descobri onde é que a minha mãe guardava o ouro e durante seis meses vendi o ouro quase todo.” Até durante as consultas de psicologia jogava. “Conseguia ao mesmo tempo estar focado em dar uma tanga à psicóloga e com um site de apostas ao lado, apostar, a ver jogos.”
Perdeu mais de 100 mil euros em apostas – no Placard, usando o NIF de amigos, e em casinos ilegais online. Se com uma aposta de 200 euros ainda chegou a ganhar 5000, rapidamente também os perdeu.
“Na mesma semana, comprei uma PlayStation, um plasma, fui parar ao hospital quase em overdose. Tinha muito dinheiro, gastei mesmo à maluco. E, depois, no final da semana, já tinha gastado o dinheiro todo. Vendi a PlayStation, vendi a televisão. Tudo o que tinha comprado, vendi a metade do preço. E apostei esse dinheiro, que acabei por perder”, conta.
A recaída só parou porque, um dia, um amigo dos pais de Dinis o viu a entrar numa casa de compra e venda de ouro e alertou-os. “A minha mãe foi ver o ouro e já só restavam três peças.”
Os pais chamaram a polícia a casa para fazer queixa do filho, mas os agentes disseram que não havia nada a fazer. “Quando estava a polícia em minha casa, quase quis ser preso para me libertar daquilo. Para não ter acesso ao jogo. Estava farto. Sabia que estava completamente agarrado. E aí não tive dúvida nenhuma de que tinha uma doença”, confessa.
Passadas duas semanas, Dinis foi internado na clínica Linha d´Água, em Leiria. Ficou lá seis meses. Ali, já não era o único com problemas de adição com o jogo. Havia um rapaz um ano mais velho. “Sei que está mal. Ainda na semana passada me veio pedir dinheiro emprestado.”
Dinis “saiu” do tratamento a 1 de janeiro de 2022, procurou ajuda junto dos Jogadores Anónimos. E continuou sem apostar durante “algum tempo”.
Desde então, sofreu duas recaídas, que coincidiram sempre com períodos em que deixou de fazer reuniões do grupo de apoio. Todavia, não voltou a gerar “grandes danos” financeiros.
Da primeira vez, mal viu que estava a dever 150 euros, pediu ajuda. Da segunda, a mais recente, passou “um mau” período de quatro meses. A 11 de janeiro de 2024, ficou com “saldo zero”, mas sem dever dinheiro a ninguém. Pediu ajuda. Fez 90 dias, 90 reuniões dos Jogadores Anónimos. Ainda não voltou a jogar.
Os sites de jogo online “sabem quem são as pessoas com adição" e "agarram-se a essas pessoas”, denuncia Vasco.
Vasco está apenas um pouco à frente do calendário de recuperação de Dinis. Por um mês e alguns dias.
Em 2021, emigrou para a Holanda, começou a trabalhar num armazém e passou a jogar exclusivamente online (quase sempre em plataformas não-licenciadas, para onde era mais fácil transferir dinheiro e fazer o registo). Recebia à semana, todas as segundas-feiras 400 euros. “E todas as quintas-feiras já não tinha dinheiro. Nem para comer.”
A ânsia de fazer dinheiro continuava a subjugá-lo. Após marcar umas férias em Portugal, meteu na cabeça que queria vir “com 20 mil euros”. Durante oito semanas consecutivas, apostou quase a totalidade do seu salário. Acabou “por vir a zero”. “Tive de pedir dinheiro ao meu pai e contei-lhe. E ele aí percebeu o problema”, diz.
Durante as férias, Vasco procurou ajuda. Foi ver um psiquiatra. Mas não gostou da experiência. “Mal falei com ele um minuto já me estava a receitar não sei quantos comprimidos, não tinha ouvido nada do que eu lhe tinha para dizer. E eu não achei que isso fosse correto.”
O clínico recomendou-lhe também que procurasse os Jogadores Anónimos. Vasco ainda apareceu numa reunião online, mas acabou “por sair a meio”. “Nunca gostei muito de coisas online, prefiro em pessoa.” Terminadas as férias, voltou para a Holanda. “Duas semanas depois, já estava a jogar outra vez.”
Assustado consigo mesmo, Vasco decidiu regressar a Portugal. Sozinho, em esforço, passou algum tempo sem apostar. Quando se sentiu mais estável, voltou a emigrar, desta feita para a Grécia, para trabalhar como animador num hotel, durante três meses. Correu tudo bem, nunca jogou.