Sever do Vouga. Na terra onde ninguém dorme, só se fala de fogo posto

Autarcas exaustos, populares aflitos, fogos que começam subitamente. “Enquanto não houver um castigo verdadeiro, não vai lá”, desabafa quem vai a caminho da terceira noite sem descanso. Reportagem em Talhadas, Sever do Vouga.

18 set, 2024 - 07:00 • Catarina Santos



Populares vigiam o avanço do fogo num ponto elevado de Sever do Vouga. Foto: Catarina Santos/RR
Populares vigiam o avanço do fogo num ponto elevado de Sever do Vouga. Foto: Catarina Santos/RR

Uma nuvem de fumo preto começa a sair, de repente, do meio de uma zona de mato. Não há fagulhas no ar e o vento já não está tão intenso como nas horas anteriores. Alguns populares sobem a rua em sobressalto a avisar que viram movimentos suspeitos na zona por onde o fogo agora avança.

A tarde vai longa e alguns elementos do corpo de bombeiros da Vidigueira tinham parado na rotunda ali ao lado para render os colegas. Começam a estudar formas de chegar ao local. O terreno é acidentado, não parece tarefa fácil.

“Onde é que vai o gajo do trator?”, questiona um deles. Os populares que tinham vindo pedir ajuda já se puseram a caminho, por estreitos caminhos de campos, munidos com bidões de rega.


Fogo inicia em Talhadas, Sever do Vouga. Foto: Catarina Santos/RR
Fogo inicia em Talhadas, Sever do Vouga. Foto: Catarina Santos/RR
Depois de alertados por populares, bombeiros da Vidigueira chamam apoios. Foto: Catarina Santos/RR
Depois de alertados por populares, bombeiros da Vidigueira chamam apoios. Foto: Catarina Santos/RR


Carros de bombeiros não faltam por ali ao pé, junto à rotunda da Nacional 328, que dá início à freguesia de Talhadas, em Sever do Vouga. É um dos pontos de reabastecimento de água que vai servindo as várias corporações a operar na zona.

Em pouco tempo, uma corporação acede por outro caminho rural e junta-se à equipa de primeira intervenção da Junta de Freguesia de Talhadas. Vários populares contribuem com baldes de água e atacando as chamas com ramos.

“Presumimos que seja fogo posto, mas não temos a certeza de nada”, afirma o presidente da junta, António Dias, que sobe e desce a ladeira sem parar.

“Rapidamente se propagou e iria ser muito complicado para uma oficina que temos a norte e uma empresa [de materiais de construção] que há aqui a poente”, explica.


Habitantes e autarcas acreditam que incêndio teve mão criminosa. Foto: Catarina Santos/RR
Habitantes e autarcas acreditam que incêndio teve mão criminosa. Foto: Catarina Santos/RR

António Dias (à esquerda), presidente da junta de freguesia de Talhadas, acompanha as operações. Foto: Catarina Santos/RR
António Dias (à esquerda), presidente da junta de freguesia de Talhadas, acompanha as operações. Foto: Catarina Santos/RR
Populares ajudam a combater as chamas. Foto: Catarina Santos/RR
Populares ajudam a combater as chamas. Foto: Catarina Santos/RR


Em torno do foco de incêndio há também dezenas de casas, rodeadas de campos e jardins, que os habitantes começaram prontamente a regar. Horas antes, os que dependem de um motor para aceder a água não teriam conseguido fazê-lo, porque a luz esteve cortada durante boa parte do dia.

— A GNR não vem aí?

— O presidente chamou o comandante, para ver se o apanha.

— Não precisa de ir muito longe.

As conversas entre os vizinhos que se juntam na ladeira têm todas o mesmo tema.

“Vi aqui algumas pessoas a comentar que foi um indivíduo que foi comprar pão e que passou aqui”, conta António Ferreira, 56 anos, dono do restaurante Manjar da Pedra, uns 200 metros acima do local do fogo. “É totalmente estranho. E dá-me impressão que já é a segunda ou terceira vez que acontece isto.”

“Já viemos hoje duas vezes e esta foi a terceira”, acrescenta António Fernandes, dono de um terreno agrícola a dois passos do foco de incêndio.

“Consta-se que se estão a passar algumas coisas estranhas. Apesar da natureza e do vento, e as matas não estão conforme deviam estar, mas também há coisas que a gente não consegue perceber bem”, remata.

O assunto havia de ser endereçado ainda nessa noite pelo primeiro-ministro. Luís Montenegro prometeu que o Estado “vai atrás dos responsáveis” pelos incêndios florestais nos casos em que há mão criminosa, anunciando a criação de "uma equipa especializada em aprofundar com todos os meios a investigação criminal à volta dos incêndios florestais".


Aquele fogo acabou por consumir dezenas de árvores, mas conseguiu-se travar a progressão para os terrenos circundantes. Ficou a dois passos do campo e do barracão onde António Fernandes e a mulher, Fernanda Ribeiro, guardam o material agrícola.

“A gente não dorme de noite. E vai ser toda a noite outra vez, porque nós temos a casa acolá daquele lado e ele também está a vir da A25 para cá. Vai ser toda a noitinha”, vaticina Fernanda.

“Vai ser muito complicado, porque são terrenos que têm uma grande manta morta e potenciam o ressurgimento dos incêndios”, sublinha o presidente da junta de freguesia de Talhadas.

Para António Dias, o mais complicado é perder habitações para o fogo, como aconteceu esta terça-feira. “Conseguimos salvaguardar uma, a outra já não conseguimos. Porque não há meios”, afirma. “Eu entendo, os incêndios são muitos, os bombeiros têm recursos limitados, como todos nós, e torna-se difícil acudir a tudo”. A moradia que ardeu era de segunda habitação.

Apoios não serão atrasados por “burocracias”, garante ministro

Entre as dezenas de populares que assistem ao rescaldo junto à rotunda, ninguém pensa em descansar nas próximas horas.


Populares e trabalhadores da junta de freguesia de Talhadas combatem fogo. Todos falam em fogo posto. Foto: Catarina Santos/RR
Populares e trabalhadores da junta de freguesia de Talhadas combatem fogo. Todos falam em fogo posto. Foto: Catarina Santos/RR

“Daqui a pouco começa a levantar o vento...”, antecipa António Ferreira, que na noite anterior viu dois armazéns, na zona industrial de Talhadas, serem completamente consumidos pelas chamas. "Durante a noite e a madrugada foi uma loucura”.

Foi “naturalmente fogo posto”, afirma o presidente da Câmara Municipal de Sever do Vouga. Com os olhos vermelhos e ar visivelmente extenuado, Pedro Lobo assegura que “era impossível chegar uma fagulha” àquela área de fábricas.

As empresas afetadas — uma de madeiras e outra de materiais de casa-de-banho — foram visitadas na tarde desta terça-feira pelo ministro da Coesão Territorial. Depois de ouvir os empresários afetados, Manuel Castro Almeida garantiu celeridade na resposta.

“Não vamos deixar atrasar com burocracias os apoios, que é uma coisa que muitas vezes acontece. Isto vai ser muito diligente”, assegurou o governante.

Enquanto o ministro falava, ouvia-se estruturas a cair no interior dos armazéns ardidos. Ao fundo da colina, ali mesmo ao lado, um aviário era consumido pelas chamas.


Ministro da Coesão Territorial garantiu apoios aos empresários afetados pelos incêndios, na zona industrial de Talhadas. Foto: Catarina Santos/RR
Ministro da Coesão Territorial garantiu apoios aos empresários afetados pelos incêndios, na zona industrial de Talhadas. Foto: Catarina Santos/RR
Ao fundo da ladeira, a poucos metros, um aviário estava em chamas. Foto: Catarina Santos/RR
Ao fundo da ladeira, a poucos metros, um aviário estava em chamas. Foto: Catarina Santos/RR


Duas fábricas foram destruídas pelas chamas em Talhadas. Foto: Catarina Santos/RR
Duas fábricas foram destruídas pelas chamas em Talhadas. Foto: Catarina Santos/RR
Abatimentos de material no interior eram audíveis enquanto o ministro falava com empresários. Foto: Catarina Santos/RR
Abatimentos de material no interior eram audíveis enquanto o ministro falava com empresários. Foto: Catarina Santos/RR


“A presidente da comissão de coordenação vai rapidamente fazer a vistoria das fábricas para ver a dimensão do prejuízo e calcularmos depois a natureza e o montante dos apoios. A partir daí, está nas mãos dos empresários andarem depressa com as obras e nós andaremos depressa com o apoio, para que rapidamente os operários possam reentrar na fábrica e começar a trabalhar.”

A presença de Castro Almeida chamou outros habitantes ao local. João Silva contou ao ministro como o campo de futebol, balneários e arrecadações da Juventude Académica Pessegueirense, ali ao lado, foram destruídos, deixando cerca de 100 jovens atletas sem treinos por uma temporada que se prevê longa.

“O equipamento como o seu campo não estava aqui no nosso esquema”, respondeu Castro Almeida, assegurando, contudo, que procuraria “encontrar também uma fórmula para poder ajudar”.

O primeiro-ministro admitiu acionar o fundo de solidariedade europeu para fazer face aos danos provocados pelos incêndios dos últimos dias.


Concelho de Sever do Vouga tem sido fustigado pelas chamas desde domingo. Ventos, que chegaram já a atingir 85 km/hora, dificultam combate. Foto: Catarina Santos/RR
Concelho de Sever do Vouga tem sido fustigado pelas chamas desde domingo. Ventos, que chegaram já a atingir 85 km/hora, dificultam combate. Foto: Catarina Santos/RR

“Eu sou uma pessoa de esperança, tenho fé.” É assim que o presidente da câmara reage às garantias do Governo. “Tenho estado em contacto com o Governo diretamente e confio que se vai poder ajudar esta gente toda”, diz Pedro Lobo.

Tem procurado reunir “calma e coragem” para enfrentar uma situação que não o deixa dormir há vários dias. “Temos evitado sobretudo as casas, pessoas, empresas, animais."

O autarca lamenta que haja localidades “onde foram as próprias pessoas a tomar conta dos seus incêndios”.

“Nós não conseguimos chegar a todo o lado. Gostaria de ter um meio para cada pessoa, mas não consigo”.

Depois de enfrentarem rajadas de vento de 85 km/hora na madrugada anterior, Pedro Lobo teme o que está por vir. “Vamos ver como será a noite. Neste momento já arderam seguramente mais de sete mil hectares em Sever do Vouga”, remata, antes de arrancar para outra emergência.


Fernanda Ribeiro assiste ao combate ao fogo, juntamente com a filha, a neta e a vizinha Perfeição Silva. Foto: Catarina Santos/RR
Fernanda Ribeiro assiste ao combate ao fogo, juntamente com a filha, a neta e a vizinha Perfeição Silva. Foto: Catarina Santos/RR

“Enquanto não houver um castigo verdadeiro, não vai lá”

— As nossas casas ficam mais ou menos a quantos metros?, pergunta Fernanda às vizinhas.

— Em linha reta? Para aí 100 metros, responde Perfeição Silva.

— Só que temos acolá outra frente. A gente não sabe onde acudir.

Perfeição tem 55 anos. Também assiste ao rescaldo do fogo que poupou oficinas e casas ao fim da tarde de terça-feira. Outros terrenos seus, no lugar de Macida, arderam na última noite. “E não apareceu lá ninguém, tiveram de se ajeitar sozinhos”, lamenta. “O que é que a gente há de fazer? Enquanto não houver um castigo verdadeiro, não vai lá”.

Tal como os vizinhos, está convencida de que a origem do fogo é humana e intencional. “Eu fui a casa do meu filho levar um saquinho com umas couvinhas para os animais, vim para cima e não se via nada - e eu olhei, porque esta parte é toda minha, deste lado. Vim para baixo e já começo a ver lume pelas árvores acima. Foram para aí quatro minutos.”

A madrugada anterior foi de pouco ou nenhum descanso para os habitantes de Talhadas e Fernanda reforça que esta vai pelo mesmo caminho. “Isto de noite vai arder tudo até lá adiante. Não há hipótese. Porque é muito vento, muito vento, muito vento! Há quatro dias que é tanto vento...”, lamenta a mulher de 69 anos.


Entrada para A25 cortada junto a Talhadas, Sever do Vouga. Foto: Catarina Santos/RR
Entrada para A25 cortada junto a Talhadas, Sever do Vouga. Foto: Catarina Santos/RR
Vários bombeiros e meios terrestres lutam contra as chamas, numa encosta inclinada. Foto: Catarina Santos/RR
Vários bombeiros e meios terrestres lutam contra as chamas, numa encosta inclinada. Foto: Catarina Santos/RR


O dono do restaurante Manjar da Pedra também não tem conseguido descansar mais do que um par de horas desde domingo. “Já nem estou a falar em negócio, esqueça, as pessoas querem é fugir daqui, porque estes últimos dias têm sido difíceis para todos nós. Estamos a ficar saturados.”

Deixámos para trás o fogo que não passou de um susto e, mal regressamos à Nacional 328, chamas aparatosas escalam a parede de árvores por trás da rotunda. Logo à frente, no cruzamento com a A25, a dimensão do incêndio revela-se com mais exatidão. Vários bombeiros e meios terrestres lutam contra as labaredas, numa encosta inclinada. O acesso está cortado pela GNR.

Poucos quilómetros adiante, vários populares vigiam o avançar de outro foco de incêndio, numa espécie de varanda natural que permite fazer uma panorâmica que começa na freguesia de Talhadas, alcança Albergaria-a-Velha ao fundo e deixa adivinhar, à direita, o centro de Sever do Vouga.

Na vinda para Talhadas, em pleno dia, tínhamos encontrado ali Paulo Dias e o pai, naturais da aldeia de Arcas, na freguesia de Talhadas. Tinham subido àquele ponto alto para vigiar o andamento das chamas. “Se passar esta estrada, é quase certo que lá chega. Estamos aqui a tentar perceber se chega lá ou não”, contava Paulo.


Presidente da câmara municipal de Sever do Vouga dava conta de “múltiplos reacendimentos e múltiplos pontos de incêndio” esta madrugada, descrevendo a evolução da situação como “imprevisível”. Foto: Catarina Santos/RR
Presidente da câmara municipal de Sever do Vouga dava conta de “múltiplos reacendimentos e múltiplos pontos de incêndio” esta madrugada, descrevendo a evolução da situação como “imprevisível”. Foto: Catarina Santos/RR

Já a noite ia alta e pai e filho continuavam a circular por aquelas estradas, sem desviar os olhos das várias frentes de fogo.

Pela 1h da manhã desta quarta-feira, o presidente da Câmara de Sever do Vouga falava de “múltiplos reacendimentos e múltiplos pontos de incêndio”, descrevendo a evolução da situação como “imprevisível”.

“Estamos dependentes da natureza, do que o vento fizer”, restando, afirmava, “tentar com os meios que temos disponíveis” - e que “são manifestamente poucos”.


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