De Eanes a Montenegro, como o poder político gere os incêndios?

Desde 1974, todos os Presidentes da República tiveram de lidar com mortes causadas por incêndios. Por norma, chefes de Estado lidam com as emoções, primeiros-ministros com as consequências. O tumulto político é sempre de esperar. Depois das tragédias de 2017, cabe agora ao executivo de Luís Montenegro gerir a situação e encontrar explicações.

18 set, 2024 - 22:14 • Fábio Monteiro



Presidente Marcelo Rebelo de Sousa no funeral de um dos bombeiros vitima dos incêndios da última semana em Portugal. Foto: Fernando Veludo/Lusa
Presidente Marcelo Rebelo de Sousa no funeral de um dos bombeiros vitima dos incêndios da última semana em Portugal. Foto: Fernando Veludo/Lusa

Ramalho Eanes, de camisa branca e gravata, tenta abafar chamas com um ramo de eucalipto. O mato está seco, amarelecido, há pilhas de madeira nas proximidades. O Presidente da República está rodeado de populares e militares da GNR, que o acompanham, que repetem os mesmos gestos, na Serra da Lousã.

Minutos mais tarde, num jipe da GNR, via rádio, Eanes manda chamar meios aéreos para o local. Sublinha que o pedido é uma “ordem” direta do Presidente da República. O momento é registado pelas câmaras na “RTP”.

Na reportagem, quando questionado por um jornalista se a situação “era de grande perigo”, Eanes diz que não. “O que era preciso era acalmar as pessoas.” O jornalista, no entanto, insiste e diz que “o povo” se queixa da falta de resposta dos bombeiros e sublinha que existiam casas em perigo.

De forma algo críptica, o Presidente da República comenta: “Talvez o sr. ministro da Administração Interna possa dizer alguma coisa sobre isso”.

À data, as relações com o Governo de Sá Carneiro não eram as melhores. Por isso, o jornalista pergunta: “Como é que devo interpretar as palavras do sr. Presidente?”

Ao que Eanes responde: “É preciso olhar para estas coisas de uma maneira planeada, programada, e creio que isso é responsabilidade de todos nós”.


 

Primeira linha de resposta: Presidentes da República

O episódio com Ramalho Eanes remonta a 1980. E, em grande medida, continua atual. Sempre que há incêndios em Portugal, o poder político diz “presente” e é obrigado gerir a situação.

Formalmente, não existe qualquer regra ou guião a seguir – além do bom-senso, como fez questão de lembrar Marcelo Rebelo de Sousa, esta semana, numa eventual indireta para Luís Montenegro: “Por muito que os políticos sintam quase uma obrigação moral de ir mais perto daquilo que se passa, para respeitar o que estão a fazer os operacionais devem acompanhar tudo, mas não intervir onde não devem, nem são chamados.”

Por norma, é o Presidente da República quem ouve e contacta mais com população. E o Governo – quem tem o poder efetivo – quem lida com a situação.

Muitos portugueses ainda terão viva a memória de 18 de junho de 2017. De, pouco depois da meia-noite, ver Marcelo Rebelo de Sousa chegar ao Centro de Comando de Operações de Pedrogão Grande, do Presidente da República dar um abraço emocionado a Jorge Gomes, secretário de Estado da Proteção Civil, que revelara – horas antes - ao país a morte de 19 pessoas.

"Não era possível fazer mais, há situações que são situações imprevisíveis e quando ocorrem não há capacidade de prevenção que possa ocorrer, a capacidade de resposta tem sido indómita", disse Marcelo Rebelo de Sousa.

A realidade é: desde o 25 de Abril de 1974, todos os Presidentes da República tiveram de lidar com mortes causadas por incêndios.

Se em 1980 Ramalho Eanes combateu, com as próprias mãos, as chamas, foi em 1985 que enfrentou uma prova de fogo. A 8 de setembro, 14 bombeiros morreram carbonizados num incêndio em Armamar. Então, o Presidente foi dos primeiros a falar. E prometeu “empenhar-se na procura de soluções para apoiar as famílias enlutadas”.

Um ano mais tarde, a mesma responsabilidade coube a Mário Soares: 13 bombeiros e três civis morreram, num incêndio em Águeda (zona muito afetada pelas chamas nos últimos dias).

Na época, houve suspeitas de fogo posto, o alastramento rápido das chamas foi atribuído à falta de limpeza as matas. Mas Soares foi diplomático e não imputou culpas: “Espero que todos nós, daqui para a frente, façamos algo no sentido de evitar estas mortes.”

Em 2003, após a morte de 21 pessoas em vários incêndios espalhados pelo país, chegou a vez de Jorge Sampaio.

O socialista pediu “resistência psicológica” aos portugueses e garantiu que o Governo (de Durão Barroso) iria “proximamente” revelar “que tipo de amparo dar às populações”. (Por outras palavras: colocou pressão no Governo.)

Três anos mais tarde, morreram seis bombeiros (cinco dos quais chilenos) em Famalicão da Serra. Cavaco Silva, eleito poucos meses antes, lembrou “o perigo muito real que correm todos aqueles que se entregam ao combate aos fogos e ao socorro dos demais, muito em particular os bombeiros, e o quanto estes merecem de todos os portugueses o respeito e a admiração, a ajuda sem limites”.

Depois, em 2012 e 2013, quando morreram seis e nove pessoas, respetivamente, Cavaco mudou o protocolo. Remeteu-se ao silêncio (o que gerou críticas da população) e optou por enviar condolências em privado.


 

Segunda linha de resposta: o Governo

O papel de um Governo, em momentos de tragédia, é muito diferente do de um Chefe de Estado. Afinal, é o executivo quem tem o poder. E é o executivo que tem de lidar, em grande medida, com as consequências e dar explicações.

Pode acontecer os incêndios tornaram-se um tema de debate eleitoral, uma espécie de cadastro político – como aconteceu com António Costa nas legislativas de 2019. Pode também acontecer um incêndio dar azo a mentiras como “o primeiro-ministro estava de férias” aquando da tragédia – o que também aconteceu com António Costa.

Retrospetivamente, nada disto é novo. Em 1985, o Governo de "Bloco Central" de Mário Soares e Rui Machete não foi poupado pela oposição.

A UDP (partido que viria a estar na génese do Bloco de Esquerda) acusou a coligação PS/PSD de ser “completamente incompetente para enfrentar estas ações criminosas” ou mesmo “convivente com elas”. Já o CDS acusou o ministro da Administração Interna, Eduardo Pereira, de “visitas demagógicas” ao terreno, das quais nunca saiu “quaisquer medidas concretas”.

Em 1986, o executivo de Cavaco Silva foi mais reativo. Perante a suspeita de fogo posto, o então primeiro-ministro pediu celeridade ao Parlamento na regulamentação da legislação (já aprovada na generalidade) de penas mais pesadas “para que os que provocam a destruição do património florestal e pioram a vida das pessoas”.

Já com o virar do milénio, a narrativa mudou. Entraram no discurso político temas como as alterações climáticas e os fenómenos meteorológicos extremos.

Em 2003, Durão Barroso – após a morte de 21 pessoas e 425 mil hectares ardidos – viu-se no meio de um autêntico tumulto político. E disse: “O país deve colocar como prioridade da sua ação o repovoamento florestal, um tratamento mais moderno e eficaz da nossa floresta.”

A oposição não ficou satisfeita. Francisco Louçã, coordenador do BE, acusou todos os anteriores governos de “óbvia negligência”, de ficarem “à espera de que o verão do seu consulado seja mais fresco que o anterior”.

Três anos depois, José Sócrates geriu de forma diferente a morte dos seis bombeiros em Famalicão da Serra. António Costa (no papel de ministro da Administração Interna) lançou de imediato um inquérito ao sucedido.

Em 2013, o tema da política florestal voltou à baila. Na segunda quinzena de agosto, arderam quase 90 mil hectares, morreram nove pessoas (oito bombeiros e um civil). Dias antes da tragédia, Miguel Macedo, ministro da Administração Interna, disse que os incêndios “são uma inevitabilidade, dado o estado de abandono em que está uma grande parte da floresta”.

O que aconteceu em 2017, porém, superou todas as tragédias anteriores. Na noite em que deflagrou o incêndio em Pedrogão Grande, António Costa acompanhou a situação no Comando Nacional de Operações de Socorro da Autoridade Nacional de Proteção Civil, em Oeiras. No dia seguinte, foi ao terreno.

Aos jornalistas, o primeiro-ministro disse: “É, obviamente, prematuro tirar ilações sobre o que terá acontecido naquele local. Algo de muito especial aconteceu, seguramente, pela dimensão das vítimas que teve.” A lógica: contenção de danos e gestão de informação.

Aquele foi um verão de luto e luta política. E depois chegou 15 de outubro: uma nova onda de incêndios, mais 51 mortes. Para apurar responsabilidades, instituiu-se uma Comissão de Inquérito Parlamentar. Muitas conferências de imprensa, muitas críticas da oposição, muitas perguntas de jornalistas.

O que contrasta, para já, com os incêndios de 2024. Pedro Nuno Santos disse, esta quarta-feira, que, apesar de ter muitas questões, este “não é o momento de fazermos críticas ao Governo” de Luís Montenegro. Em todo o caso, o secretário-geral do PS não esqueceu:

“Não vamos fazer o que o PSD fez em 2017. Não estamos a pedir a cabeça de nenhum ministro, como aconteceu em 2017”, sublinhou o líder do PS.


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