“Portugal foi das nações que mais traficou seres humanos”: uma tour pela Lisboa da escravatura

Durante quatro séculos, foram comercializados através do Atlântico mais de 12 milhões de escravos africanos. Perto de 5,8 milhões dessas pessoas foram transportadas em navios registados com bandeira de Portugal e do Brasil. No dia em que se assinala a Memória do Tráfico de Escravos e da sua Abolição, a Renascença percorreu Lisboa para conhecer esta história.

23 ago, 2024 - 06:37 • Beatriz Pereira



Dia Internacional da Escravatura. Ilustração: Salomé Esteves/RR
Dia Internacional da Escravatura. Ilustração: Salomé Esteves/RR

“Everyone ready? Okay, let's go!”. É no coração de Lisboa, em Alfama, que Rui Fernandes dá o tiro de partida para uma visita guiada pela história, de quase quatro horas.

Neste passeio pela capital não se visitam museus, igrejas e miradouros. Não se passa por Belém, não se viaja de tuk-tuk nem se fazem cruzeiros pelo Tejo. Ao contrário das visitas habituais, Rui Fernandes caminha por Lisboa para contar, aos que o querem ouvir, a história de como Portugal foi pioneiro no comércio de escravos no Atlântico.

É uma viagem até ao século XV. No dia em que a Renascença acompanhou a tour, dias antes de se assinalar o Dia Internacional em Memória do Tráfico de Escravos e da sua Abolição, celebrado esta sexta-feira (uma data assinalada pela ONU e que relembra o movimento de luta pela independência e libertação de escravizados negros que aconteceu em São Domingo, hoje a República do Haiti), 11 pessoas – todas estrangeiras – rumaram ao Largo do Chafariz de Dentro. É o ponto de encontro com Rui Fernandes, economista de formação e o único guia-intérprete oficial, em Portugal, sobre o tema da escravidão.

Veio de Maputo, em Moçambique, mas vive em Portugal desde 2009. Há sete anos que mostra outra Lisboa, menos conhecida, aos que se inscrevem na The Slave Trade in Lisbon – A Historical Walking Tour.

“A maioria das pessoas sabe que os portugueses tiveram mão-de-obra escravizada nas suas colónias, mas não têm noção de que a escravatura fez parte da vida em Portugal continental”, explica à Renascença. “Pouca gente sabe que Portugal foi, juntamente com o Brasil, a nação que mais traficou seres humanos escravizados”.

Ainda antes de ouvir ao detalhe esta história, o grupo de 11 pessoas – vindas de Washington, Londres e Berlim – prepara-se para o calor do dia. Enchem-se de protetor solar, comem pastéis de nata para ganhar energia e metem os “pés à obra”.

Por uma rua estreita, sobem até ao Beco da Bicha. É a primeira paragem. Aí, Rui dá a conhecer aquele que seria o seu suporte ao longo de toda a tour: um grosso dossiê, com imagens e mapas que retratam a era da escravatura.


Rui Fernandes é o único guia-intérprete oficial, em Portugal, sobre o tema da escravidão. Foto: Beatriz Pereira/RR
Rui Fernandes é o único guia-intérprete oficial, em Portugal, sobre o tema da escravidão. Foto: Beatriz Pereira/RR

Neste beco, relata a história dos fenícios, dos romanos, dos mouros e explica que a palavra “slave” (escravo, em inglês) tem origem nos eslavos da Europa oriental, escravizados durante a Idade Média.

Atento e com um audioguia preso a um ouvido, o grupo não nota os moradores de Alfama, que passam por eles curiosos, mas também alheios ao que ali está a ser dito.

Segue-se caminho. Ao longo de toda a tour, um número infindável de vezes ouve-se a questão: “Any questions?”. Sim, há muitas.

Mais à frente, no Largo de São Miguel, ainda com decoração dos Santos Populares, Rui lamenta que “a maioria das marcas deixadas pela escravidão na capital portuguesa tenham sido destruídas com o terramoto de 1755”.

Foi quase três séculos antes, em 1444, que Portugal, a mando do príncipe Infante D. Henrique – conhecido como Henrique, o Navegador – se tornou pioneiro no comércio de escravos africanos, que chegavam ao país a partir de Lagos, no Algarve. A pouco e pouco, rumaram a Lisboa, à medida que aumentava o número de pessoas escravizadas no país. Já por volta de 1550, 10% da população em Lisboa era negra.

“A expansão portuguesa permitiu a Portugal o acesso aos portos de origem do escravismo e permitiu o desenvolvimento de colónias que necessitavam de empregar a mão-de-obra escravizada para promover o seu desenvolvimento, nomeadamente nas plantações de açúcar”, explica Rui.

Durante quatro séculos de escravatura, foram comercializados através do Atlântico mais de 12 milhões de escravos africanos. Perto de 5,8 milhões dessas pessoas foram transportadas em navios registados com bandeira de Portugal e do Brasil, mas muitos nem sequer chegaram ao destino, devido às condições das viagens marítimas.


“Em Portugal, as pessoas escravizadas desempenharam várias profissões, desde empregados domésticos, cuidadores, ourives, carpinteiros, estiveram envolvidos nas corridas de touros, na produção de biscoitos e desempenharam um grande papel na atividade económica da capital portuguesa”, conta o guia. “Eles eram mais valiosos conforme o grau de educação, o sexo, a idade, o estado de saúde, a origem geográfica e a origem étnica”.

Os turistas escutam atentos as informações. Rui adianta ainda que “o estado dos dentes era uma coisa importante, porque influenciava o valor dos escravos, tal como a cor da pele”.

O grupo continua o percurso e mesmo quando algum dos membros para para fotografar os típicos azulejos das fachadas dos edifícios, que os deixam fascinados, Rui Fernandes não interrompe o discurso.

Da Igreja de São João da Praça ao Chafariz d’El-Rei é um pulo. Entre um e outro, junto a uma parede de pedra com dois altos-relevos de caravelas portuguesas, explica que, ainda este ano, o tema da escravatura foi um tópico “quente” em Portugal.

“Em abril, o Presidente da República de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa, numa conversa com correspondentes de outros países, sugeriu que Portugal devia pagar pelos crimes de escravatura transatlântica na época colonial, surgerindo a ideia de pagar indemnizações ou de fazer reparações históricas”, informa o guia.

Uma das turistas interrompe e questiona: “Sorry, who said that?”. “The President of Portugal”, responde Rui. É evidente a surpresa que a resposta causa.


Os dois alto-relevos encontram-se no fim da Travessa de São João da Praça. Foto: Beatriz Pereira/RR
Os dois alto-relevos encontram-se no fim da Travessa de São João da Praça. Foto: Beatriz Pereira/RR
Há muitas destas figuras em lugares históricos da cidade de Lisboa. Foto: Beatriz Pereira/RR
Há muitas destas figuras em lugares históricos da cidade de Lisboa. Foto: Beatriz Pereira/RR


Foi um dia antes dos 50 anos da Revolução de Abril que Marcelo Rebelo de Sousa afirmou que Portugal “assume total responsabilidade” pelos erros do passado e que esses crimes, incluindo os massacres coloniais, tiveram “custos”. Na altura as declarações geraram grande contestação e foram alvo de críticas de partidos da oposição.

Dias mais tarde, Marcelo propôs que as reparações poderiam ser feitas através do perdão de dívidas, a cooperação, a concessão de linhas de crédito e de financiamento.

Memorial aprovado, mas sem data à vista

Depois da visita ao Chafariz d’El-Rei – um dos lugares que permitia o abastecimento de água às habitações de Lisboa, cujo transporte era tarefa entregue a muitos dos escravos –, a visita segue para o Campo das Cebolas.

Era um dos locais onde funcionava um mercado de escravos e para onde estava inicialmente prevista a construção do futuro Memorial de Homenagem às Pessoas Escravizadas.

Em 2017, a proposta de criação de um memorial sobre o tema foi uma das vencedoras do orçamento participativo de Lisboa, sugerido pela Associação de Afrodescendentes (DJASS). Em 2024, nada está construído e nem o sítio realmente decidido, apesar de a Câmara Municipal de Lisboa garantir que o projeto, da autoria do artista angolano Kiluanji Kia Henda, “vai ser concretizado”.

Em resposta enviada à Renascença, a autarquia indica que ficou entretanto acordada "a possibilidade de dar início a um novo processo para avaliação de uma outra localização do Memorial na Ribeira das Naus", numa reunião "ocorrida já no final de junho entre a autarquia, representada pela vereadora Joana Oliveira Costa, e os representantes da Djass - Associação de Afrodescendentes". A Câmara de Lisboa sublinha que "ao longo do tempo foram tidas em conta e avaliadas propostas de localização que acabaram por ser consideradas 'não adequadas'".


Desenho do futuro Memorial de Homenagem às Pessoas Escravizadas. Foto: Projeto "Plantação", do artista angolano Kiluanji Kia Henda
Desenho do futuro Memorial de Homenagem às Pessoas Escravizadas. Foto: Projeto "Plantação", do artista angolano Kiluanji Kia Henda
Desenho do futuro Memorial de Homenagem às Pessoas Escravizadas. Foto: Projeto "Plantação", do artista angolano Kiluanji Kia Henda
Desenho do futuro Memorial de Homenagem às Pessoas Escravizadas. Foto: Projeto "Plantação", do artista angolano Kiluanji Kia Henda


O projeto, intitulado “Plantação – Prosperidade e Pesadelo”, procura instalar uma representação de uma plantação com 400 canas-de-açúcar, em alumínio preto. “Distribuídas pelo terreno disponibilizado, que tem forma triangular, o número de canas representa simbolicamente o número de anos de escravatura transcontinental entre África, Brasil e Portugal”, pode ler-se no plano do projeto.

À Renascença, Rui Fernandes reconhece a importância da criação de um monumento que explique “o que aconteceu no passado, porque serviria para promover um maior conhecimento sobre a história”. “Da minha perspetiva como guia-intérprete, eu sei que se existisse um monumento imponente, haveria de obrigar os meus colegas a observarem o monumento, e essencialmente descrevê-lo para os seus visitantes, contextualizá-lo de forma a estarem preparados para quaisquer questões que poderiam eventualmente surgir”, afirma.

Sem data para o memorial à vista, a única estrutura dedicada à memória da escravatura em Portugal, indica o guia, localiza-se em Lagos, um dos locais de onde chegavam os escravos africanos, que eram depois canalizados para o resto da Europa.

“Acho que deveria haver mais educação promovida sobre o tema, não só nas escolas mas também nos vários museus que nós temos em Portugal. Alguns poderiam ter peças com alguma ligação com África ou com o comércio de escravos”, argumenta Rui. “Nós falamos muito sobre a escravidão, mas não promovemos a educação sobre a escravidão. São coisas totalmente diferentes”.

Uma “celebração da memória esquecida”

Com destino ao Terreiro do Paço (ou Praça do Comércio), sítio onde os escravos desembarcavam em Lisboa, no grupo não se nota cansaço, apenas interesse e admiração por aquilo que se escuta.

Uma das atentas é Stacy DeLano, a viver em Portugal há seis anos. Para ela, nada aqui é novidade, pois é a sétima vez que faz esta visita guiada. “É uma parte da história portuguesa que é importante conhecer e que muitas pessoas não exploram”, afirma à Renascença. “Vinda dos Estados Unidos, também com os nossos problemas do tráfico de escravos, penso que é pertinente aquilo que estou a tentar aprender. É muita informação, mas é esclarecedor.”

Vindo das ruas calmas e ensombreadas de Alfama, o grupo chega ao grande terreiro, onde o sol queima e as multidões de turistas se misturam. Sobe a rua Augusta até à Praça Dom Pedro IV e daí à Igreja de São Domingos.

Duniya, vinda de Londres, está acompanhada do marido e do filho. “É uma história inacreditável. É muita informação, mas esta tour permite contextualizar as diferentes razões da escravatura, como começou…”, conta à Renascença. “Pensei que vinha para aprender sobre a escravatura em Portugal, mas na verdade aprendi sobre a escravatura em geral. É uma grande, grande história e estou surpreendida por não saber mais”.


Está prestes a terminar a visita, avisa Rui. No último local já não se relata a história do que aconteceu, mas como terminou.

Chegados ao Largo de São Domingos, hoje muito frequentada pela comunidade africana, Rui aponta para uma estátua em pedra, recentemente colocada ali. “É Paulino José da Conceição, conhecido como Pai Paulino”. Antigo escravo libertado, defensor dos direitos dos negros, é uma figura popular de Lisboa, e marca o mote para se relembrar a abolição da escravatura.

Foi em 1761 que Sebastião José de Carvalho e Melo, célebre Marquês de Pombal, decretou o fim do comércio de escravos das colónicas africanas para Portugal. O país tornou-se pioneiro na abolição do tráfico. Já em 1773, foi aprovada a lei do ventre livre, segundo a qual os filhos de escravos passavam a ser livres.

Mas só um século depois, em 1869, se aboliu definitivamente a escravatura em Portugal. “Todos os indivíduos dos dois sexos, sem exceção alguma, que no mencionado dia se acharem na condição de escravos, passarão à de libertos e gozarão de todos os direitos”, pode ler-se no decreto de 25 de fevereiro de 1869. Determinava que até 1878 teria de "acabar inteiramente o estado de escravidão em toda a monarchia”. Mas foi só em 1930, quando Portugal era há muito uma república, que morreu a última escrava portuguesa, muito conhecida no Bairro Alto.


 Chafariz d
Chafariz d'El-Rey é uma pintura a óleo do século XVI de um pintor flamengo anónimo. Representa as vivências de Lisboa junto ao histórico chafariz, onde se pode observar o trabalho escravo.

Nada mais há para contar. No largo ouve-se uma salva de palmas do grupo de 11, que parabeniza Rui Fernandes pela história que lhes contou.

“Quando cheguei a Portugal, era um bocadinho ingénua e pensava que os problemas raciais não eram uma questão aqui, mas percebi que são, tal como em vários outros países. O importante é aprender a verdade, seja boa ou má”, refere Stacy.

Duniya partilha o mesmo sentimento. “É importante celebrar esta memória. Eles ajudaram a construir um país. E depois ajuda a que as pessoas que vêm de países diferentes compreendam as coisas, especialmente com as questões atuais de imigração. É uma memória que faz com que se construa uma sociedade mais coesa”.

O grupo dispersa-se. É o adeus a esta visita guiada. Rui agradece a presença dos turistas e lamenta que ainda poucos portugueses tenham interesse em conhecer a fundo esta parte da história nacional. Por enquanto, são sobretudo os de fora que mostram vontade de a aprender.