Portugueses sem "superavit". Como o OE passa ao lado dos mais pobres

Preocupados com a gestão orçamental do dia-a-dia, os portugueses mais pobres não parecem esperar muito do Orçamento de Estado para 2024. Gastos com a habitação são o maior problema. No segundo trimestre de 2023, só em Castelo Branco, o número famílias abrangidas pelo apoio monetário da Cáritas — ajuda para comprar medicamentos ou pagar rendas, por exemplo — passou de 86 para 139.

10 out, 2023 - 06:30 • Fábio Monteiro



Aumentam pedidos de apoio na Cáritas de Castelo Branco. Imagem: Fábio Monteiro. Edição: Miguel Marques Ribeiro.

Na carteira de António, nunca há superavit. Há, sim, despesas para pagar — renda, luz, água, internet — e um racional: o dinheiro “tem de chegar para tudo”. Com um orçamento mensal de menos de 500 euros, é preciso ter atenção para não viver a fazer contas de cabeça e dar em “maluquinho”.

É normal, pois, que o Orçamento do Estado para 2024 seja um tema que lhe é distante.

O documento, que será entregue esta terça-feira na Assembleia da República, deverá reservar pouco para o homem de 69 anos: prevê-se apenas um aumento de cerca de 30 euros do Complemento Solidário para Idosos (488,22 euros, em 2023), a que prefere chamar de “reforma”, que recebe mensalmente.

Quando questionado se segue a política nacional, António diz apenas: “Não vou responder.” E depois cerra o rosto, afia o bigode e fica em silêncio. O único som que fica a pairar na cozinha do pequeno T1 onde mora, na zona histórica de Castelo Branco, é o do ventilador portátil que o acompanha.

Há cerca de dois anos, o idoso teve uma pneumonia que levou ao colapso parcial e irrecuperável dos pulmões. Desde então, o pequeno aparelho — uma espécie de fole eletrónico — acompanha-o. Somente à noite, enquanto dorme, é que tira a “mangueira do nariz”.

“Esta não era a minha ideia de reforma. Passei uma vida a comer batatas com batatas ao almoço, esparguete com esparguete ao jantar, exatamente para poupar. O meu plano de reforma era 100% diferente daquela que tenho. Mas por me terem enfiado esta mangueira no nariz, foi um filme que chegou ao fim sem bandidos e sem heróis”, diz.

O plano de reforma de António também não incluía ser expulso da casa onde vivia por caridade, no seguimento de uma mudança de proprietário, e ter de morar numa rulote durante um ano e meio. Em plena pandemia, incapaz de pagar uma renda, deu por si a viver no parque de campismo de Castelo Branco,

Foi apenas em julho deste ano, após intervenção da Câmara Municipal e da Cáritas, que António voltou a ter morada: uma casa com renda solidária. “Pago 27 euros. Mas sem subsídios e apoios da câmara parece que a renda andava à volta dos 170 euros”, conta.


Isabel tem dois irmãos a seu cuidado. Foto: Fábio Monteiro/RR
Isabel tem dois irmãos a seu cuidado. Foto: Fábio Monteiro/RR

Habitação, problema universal

De acordo com o que ditam os números e parâmetros do Instituto Nacional de Estatística, António é pobre.

É um português no universo de um milhão e 700 mil que sobrevivem com menos de 551 euros por mês. Ao mesmo tempo, pertence também à fatia de 50% da população que não tem capacidade para pagar as suas despesas mensais, conforme revelou, ainda em setembro, o primeiro Barómetro Europeu sobre Pobreza e Precariedade.

Dados do INE indicam que a taxa de risco de pobreza (após transferência de prestações sociais), em 2021, era de 16,4% — menos 20 pontos percentuais que no ano anterior. Indicador, porém, que ainda não contabiliza o impacto da guerra na Ucrânia e da inflação nos últimos dois anos.

O problema da habitação é nacional, conforme tem sido noticiado e documentado, e tem maior incidência em Lisboa e no Porto. Mas mesmo na zona centro e interior de Portugal — onde encontrámos António — também já se faz sentir, em particular junto à população mais pobre, mais vulnerável.

Segundo dados fornecidos à Renascença, só no segundo trimestre de 2023, o número de famílias abrangidas pelo apoio monetário da Cáritas de Castelo Branco — ajuda para comprar medicamentos ou pagar rendas, por exemplo — passou de 86 para 139.

“O tema da habitação está na ordem do dia, porque em Castelo Branco também os preços subiram bastante e os ordenados não acompanharam”, diz Maria de Fátima Santos, diretora da Cáritas de Castelo Branco, à Renascença.

Há cada vez mais “pessoas que trabalham, mas que têm muita dificuldade em pagar a casa”. Outro reflexo da atual conjuntura está também nas dificuldades em encontrar quartos para casos de intervenção social.

“Castelo Branco, capital de distrito, não tem sem-abrigo, mas está muito no limiar. Até agora, quando aparecia um passante, um caso que surgisse, era possível encontrar uma pensão, um quarto. Sempre asseguramos isso com muita facilidade. Neste momento, não está a ser assim tão fácil”, admite.

O caso de Tiago ilustra as palavras de Maria de Fátima Santos. O homem de 42 anos está desempregado, recebe o Rendimento Social de Inserção (RSI) e frequenta um curso profissional de eletromecânica. Todos os meses, paga 220 euros pelo quarto onde vive.

“O RSI são 209 euros e onze cêntimos. A minha renda é mais que o RSI, esquecendo comida e medicamentos”, sublinha.

Tiago não vive na rua graças ao apoio da mãe, “o pouco que ela recebe da pensão”, a ajuda de um amigo, que lhe “emprestou dinheiro durante muito tempo”, de algumas organizações de cariz social locais e também da Segurança Social.


Lúcia depende da Cáritas para roupa e comida. Foto: Fábio Monteiro
Lúcia depende da Cáritas para roupa e comida. Foto: Fábio Monteiro

Quem ajuda?

Encostada à porta de entrada da Cáritas de Castelo Branco, Lúcia aguarda pela sua vez. Com movimentos cuidados, ajeita os óculos, estica a camisola branca que veste. Nas mãos, segura um grande saco de plástico: vem buscar comida.

“Venho cá todas as semanas, normalmente à sexta-feira. Levo uns pãezinhos, um frango, que já me vai dar para a semana.”

Para a idosa de 77 anos, que mora numa habitação da Câmara Municipal e usufrui de renda solidária, esta é ainda uma rotina mais ou menos recente. Até há dois anos, jamais tivera de pedir auxílio, muito menos viver de “caridade alheia”. “O meu marido trabalhava muito. O meu marido tinha a reforma e fazia muitos biscates, que era carpinteiro.”

Mas após a morte do marido, devido a um cancro, Lúcia ficou sem chão. Com cerca 400 euros mensais para sobreviver, passou a ser pobre, passou a necessitar da ajuda da Cáritas: para comer e vestir-se. “As reformas foram ficando mais pequeninas e eu tive de pedir ajuda”, diz. “Não tenho vergonha, não foi difícil pedir ajuda.”

Desde então, mês a mês, Lúcia vive a fazer contas. “Em luz, ainda agora foram 30 e poucos euros, de água uns 15 e tal. E depois tenho o MEO, porque tenho um filho em França. Tive de meter a internet para falar com os meus filhos e os meus netos. Pago à volta de 25 euros e tal.”

E, mês a mês, vai encontrando novas dificuldades. “Ainda este mês tive de pedir ajuda à minha filha para pagar a luz. Já me estavam a ameaçar que iam cortar”, confessa, em lágrimas.


Um milhão e setecentos mil portugueses são pobres, de acordo com os critérios do INE. Foto: Fábio Monteiro/RR
Um milhão e setecentos mil portugueses são pobres, de acordo com os critérios do INE. Foto: Fábio Monteiro/RR

Comer, dormir, sobreviver

Sentada num banco de jardim, nas traseiras da Câmara Municipal de Castelo Branco, Isabel carrega uma angústia visível. A mulher de 65 anos treme, tem pequenos espasmos. No colo, guarda uma camisa; junto aos pés, dois sacos de plástico transparentes — tomates e peras.

Tudo o que Isabel traz consigo, da roupa à fruta, foi-lhe oferecido por conhecidos no mercado municipal. “Esta semana já fui à Cáritas, já não me dão mais”, explica.

Há mais de uma década que Isabel depende da ajuda da Cáritas e outras instituições de solidariedade social. Durante muitos anos, assim como os pais, fez sustento a vender roupa no mercado. Mas depois deixou de haver quem “comprasse”. “A gente vivia bem quando os meus pais ainda eram vivos. Eles eram orientados. Éramos onze [irmãos], nunca passámos uma horinha de fome. E agora? Agora é muito complicado.”

A mulher tem dois irmãos a seu cuidado. “Um é toxicodependente, tem problemas do fígado já, não faz mal a ninguém. E o outro está numa cadeirinha de rodas, não anda.” Cada um dos irmãos recebe um apoio social do Estado de 260 euros. “Mas não chega. A vida está muito complicada. Só para medicamentos fica na farmácia quase o dinheiro todo.”

À medida que os dias avançam, por vezes, fica mesmo difícil enganar o estômago. “Somos os três, cada um na sua cama. Levamos os dias a dormir, comemos um bocadinho de comer, vamos os três a dormir, porque é muito sofrimento”, confessa.

A conversa de Isabel com a Renascença acontece a 6 de outubro. “Ainda não recebemos nada [dos apoios deste mês], não temos um tostão em casa, nem para comprar um pãozinho.” De olhos postos no calendário, a mulher admite que, mais do que a entrega do Orçamento do Estado, o que a motiva para esta terça-feira, 10 de outubro, é a possibilidade de já ter recebido o suficiente para pagar algumas contas.


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