SNS na periferia: do serviço médico obrigatório ao “choque geracional”

Que faltam médicos no SNS é dado adquirido. Como, então, lutar contra o problema? Horácio Luís Guerreiro, do CHUA, defende que é preciso criar um mecanismo de serviço médico obrigatório “à periferia”. Eugénia Madureira, do CHN, nota que os médicos, em início de carreira, têm uma “remuneração-base que não é condizente com a responsabilidade da profissão”. José Luís Brandão, do CHBV, conta que jovens profissionais procuram “horários compactados”.

05 jun, 2023 - 06:30 • Fábio Monteiro



Foto: João Relvas/Lusa
Foto: João Relvas/Lusa

A asfixia de profissionais no SNS é uma maleita sem tratamento simples ou rápido. Existe, por isso, a necessidade de novos e mais incentivos à contratação. E equacionar um período obrigatório de dedicação exclusiva ao SNS para os médicos recém-formados.

Horácio Luís Guerreiro, diretor clínico do Centro Hospitalar do Algarve (CHUA) acredita que “não basta que as organizações tentem captar médicos”, dado que “não têm instrumentos suficientes para fazer”.

“É preciso uma redistribuição dos médicos no país”, diz à Renascença. Ou seja, é necessária uma mudança drástica.

“Acho que tem de existir uma redistribuição. Eu diria que forçada de alguma maneira. E tem de existir uma maior solidariedade entre os hospitais mais ricos e os mais pobres em recursos. Eles [os hospitais ricos] são mais eficientes, têm mais recursos, não têm estrangulamentos. Se em vez de 14 anestesistas tivesse 20, isso aumentava de imediato a minha produção de cirurgias em 25%”, argumenta.

Segundo o responsável do CHUA, a majoração das horas extraordinárias, que devia servir de atrativo para contratar médicos, é uma medida “mal concretizada”, pois não se aplica ao horário noturno e aos fins de semana. “Isso faz com que uma medida que seria positiva perca o seu efeito”, explica.

Dito de outra forma: não é financeiramente atrativo aos médicos (prestadores de serviços) deslocaram-se até unidades hospitalares distantes para fazer turnos mais “difíceis”, “menos preenchidos”. “Para só ganhar 12 horas majoradas, provavelmente não justifica ir ao Algarve.”

E mais: os hospitais têm liberdade para pagar deslocações e alojamento aos profissionais, o que faz com que os hospitais “mais ricos” ultrapassem os periféricos.

O diretor clínico do Centro Hospitalar Universitário do Algarve entende que, como no passado, devem ser criados “incentivos específicos e uma certa obrigatoriedade de colocar médicos mais à periferia”, assim como aconteceu enquanto Leonor Beleza, ministra da Saúde entre 1985 e 1990, tutelou a pasta.

“No meu tempo [de formação], nós tínhamos de fazer um serviço médico à periferia, precisamente para preencher as lacunas nos Centros de Saúde. Tínhamos de fazer um ano até antes de entrar na especialidade. Portanto, há vários mecanismos. Agora tem de haver mecanismos. Deixar por conta das instituições, como está a acontecer neste momento, a capacidade de atrair médicos é difícil. Os mais pobres têm mais dificuldade em atrair do que os mais ricos, não é?”, atira.

Foto: Joana Bourgard/RR
Foto: Joana Bourgard/RR

Menos obrigações, mais contratações

Eugénia Madureira, diretora clínica do Centro Hospitalar do Nordeste (CHN), é avessa à ideia de algum tipo de obrigatoriedade no SNS.

Por isso mesmo, nota: “Tudo aquilo que vem como imposição não resulta muito bem” junto da classe médica. Para captar profissionais, o interior (qualquer distrito que não Lisboa ou Porto, leia-se) tem de “ser discriminado de forma positiva.”

Medidas como o subsídio de interioridade – um apoio de cerca de 1100 euros anuais, pagos durante um período de seis anos, para médicos que se mudem que optem por ocupar vagas em hospitais no interior no país – “ajuda qualquer coisa, é certo, mas também não é por esse valor que as pessoas vêm”.

Aliás, o subsídio de interioridade cria um problema.

“Imagine: eu sou de Bragança, fui para Bragança por opção, gosto da minha cidade, gosto de lá estar. Tenho uma remuneração X. E vem um outro colega que vai ter as mesmas responsabilidades, o mesmo trabalho, as mesmas tarefas que eu e porque vem de outro local já tem um incentivo. Isso aí nunca é solução. Cria mau ambiente. E é uma discriminação que não é positiva. Se disserem [aos médicos] que há na faixa litoral um pagamento de horas até X, mas se estão na faixa interior essas mesmas horas são pagas a um X + Y, acho que aí sim. Haver discriminação positiva do interior pela positiva. Acho que é uma mais-valia. E pode ser um atrativo”, explica.

De acordo com a diretora clínica do CHN, mais importante que a majoração das horas extraordinárias era “ter uma remuneração base para todos os médicos”. Em particular, os jovens médicos têm uma “remuneração base que não é condizente com a responsabilidade da profissão”.

Um médico especialista em início de carreira, com um horário de 35 horas e sem exclusividade com o SNS, ganha cerca de 1876 euros mensais brutos. Já com dedicação ao serviço público, aufere 2605 euros mensais brutos.


Foto: João Relvas/Lusa
Foto: João Relvas/Lusa

A nova geração de médicos

José Luís Brandão, diretor clínico do CHBV, tem uma visão ligeiramente positiva que a da responsável de Bragança. Mas em muitos pontos expressa a mesma opinião.

As medidas de incentivo económico – como a majoração das horas extraordinárias - que foram tomadas “desde o último verão têm tido resultados positivos”. Ainda assim, “são soluções que muitas vezes têm um caracter um pouco paliativo”, enquanto o que é necessário é algo “estrutural”, aponta o diretor clínico do CHBV.

“O incremento que foi feito na hora extraordinária paga aos profissionais teve um impacto francamente positivo. Havia escalas na área da medicina interna e cirurgia que tinham bastantes lacunas. E agora são escalas que estão completas”, diz.

Num ponto todos os diretores clínicos ouvidos pela Renascença estão de acordo. A cultura de trabalho da classe médica mudou nos últimos anos. A compatibilização da vida profissional com pessoal passou a ser uma prioridade.

“Qualquer medida tomada meramente económica ou outras que se afaste deste objetivo de conciliação está condenada ao fracasso”, sublinha José Luís Brandão.

“Eles não iniciam uma carreira, uma especialidade, a pensar que têm de estar naquele horário normal, de segunda a sexta, e depois ter o seu período de urgência. Atualmente, até em especialidades mais técnicas, [os médicos] procuram horários mais condensados, para depois terem liberdade de ação, flexibilidade”, nota Eugénia Madureira.

A compactação de horário, que “nalgumas áreas é possível, noutras não”, tornou-se comum. Muitas das “contratações bem-sucedidas têm sido feitas na base desse acordo com o profissional”, admite José Luís Brandão, lembrando, em todo o caso, que há especialidades que a concentração de horas de trabalho “é totalmente contraproducente”.

“Estamos a passar por um choque geracional e conceitos como o que é o serviço público, o que é dedicação pública estão claramente a sofrer uma transformação. E a sociedade, a tutela, tem de estar atenta a isso”, conclui.

Artigos Relacionados