Taxa RTP: quem te paga e quem te vê?

Na era do streaming ainda faz sentido um cidadão português ser obrigado a pagar a Contribuição para o Audiovisual (CAV), mesmo que não seja espetador da RTP? Nos países da UE, a taxa portuguesa (36,25 euros por ano) é a segunda mais baixa. Para o deputado da Iniciativa Liberal João Cotrim de Figueiredo, trata-se de um “imposto, porque toda a gente a paga, quer veja ou não veja a RTP”. Arons de Carvalho sublinha a importância do serviço público e defende modelo de financiamento. Projetos de lei da Iniciativa Liberal e do Chega são "muito infelizes", diz representante do Governo no Conselho Geral Independente (CGI) da RTP desde 2020.

02 mar, 2023 - 06:30 • Fábio Monteiro



 

A Contribuição para o Audiovisual (CAV) - taxa criada em 2003 pelo Governo de Durão Barroso para financiar o serviço público de rádio e de televisão, a RTP por outras palavras – vai, esta quinta-feira, voltar a ser tema no Parlamento. Dois projetos de lei, um da Iniciativa Liberal, outro do Chega, vão ser discutidos no plenário. Mas é pouquíssimo provável que algo mude.

Para fazer face à inflação, mas não só, a Iniciativa Liberal quer abolir a taxa de 3,02 euros mensais (36,25 por ano), não-opcional e cobrada por via da fatura da eletricidade, que é utilizada para financiar a RTP (todas as rádios e canais televisivos públicos). Por sua vez, o Chega pretende passar a responsabilidade da cobrança da taxa para as operadoras privadas de telecomunicações.

Desde 2016, ano em que o valor da CAV foi atualizado pela última vez – apesar de estar inscrito na lei que o montante deve ser atualizado anualmente à luz da inflação -, esta taxa tem rendido perto de 192 milhões de euros anuais para a RTP.

À Renascença, João Cotrim de Figueiredo, deputado da Iniciativa Liberal, defende que a CAV é uma “aberração” e que, mais do que uma taxa, é um “imposto, porque toda a gente a paga, quer veja ou não veja a RTP”.

“É o imposto mais regressivo de todos. Nós somos muitas vezes criticados por propor uma taxa única [de IRS], mas isto nem sequer é uma taxa única, isto é um valor único. Ou seja, é uma taxa que vai crescendo à medida que as pessoas vão ganhando menos. É o imposto mais regressivo que há em Portugal. Não faz sentido e devia acabar”, atira.

O liberal considera que, tendo em conta o montante que a RTP recebeu no ano passado, a empresa apresentou “audiências miseráveis”, dando como exemplo a canal 2 da operadora que, em fevereiro, teve apenas 0,8%. Nesse mesmo sentido, a CAV “é uma forma de desligar a RTP de todos os sinais que o mercado lhe podia dar”.

“Seja qual for o nível de performance a RTP recebe sempre a mesma coisa. Não há qualquer incentivo para ir fazer melhor, para inovar. O Governo tem noção disto”, diz.

Cotrim de Figueiredo vai ainda mais longe. Os “principais opositores” da proposta da IL, aponta, não são só os partidos de esquerda, mas também as televisões privadas. “Nós defendemos os contribuintes, não defendemos os impostos. Defendemos a concorrência, não defendemos o monopólio das televisões privadas protegidas da concorrência.”


 

Outra vez RTP?

Ora, precisamente com o problema do financiamento da RTP em mente, em julho do ano passado, o ministro da Cultura Pedro Adão e Silva anunciou a constituição de uma comissão para elaborar um livro branco sobre o serviço público de rádio e de televisão.

O objetivo da comissão – que começou a trabalhar em novembro do ano passado - passa por elencar os desafios que o setor enfrenta, num contexto de profunda mudança, de modo a antecipar e preparar a revisão do contrato de concessão da RTP. É muito provável, portanto, que uma das questões a analisar seja a continuidade e/ou atualização da CAV.

Para Alberto Arons de Carvalho, antigo Secretário de Estado da Comunicação Social e representante do Governo no Conselho Geral Independente (CGI) da RTP desde 2020, a taxa, tal como está implementada, é a melhor solução possível para financiar o serviço público.

Principalmente, tendo em conta experiências passadas como o modelo de indemnização compensatória. Por outras palavras: uma verba alocada no Orçamento de Estado.

“Não é previsível, fica sujeito às conjunturas financeiras. Os cidadãos pagam na mesma, porque o que financia o Orçamento de Estado são os impostos de grande parte dos cidadãos. Portanto, é muito preferível a CAV, que é previsível, regular e muito baixa. Tem grandes vantagens, torna a empresa mais independente e permite-lhe ter serviços e canais que não são de facto rentáveis do ponto de vista do mercado publicitário. Portanto, creio que estas iniciativas [da Iniciativa Liberal e do Chega] são muito infelizes”, diz à Renascença.

Arons de Carvalho considera também que foi “um erro” a CAV não ter sido atualizada nos últimos anos. Todavia, tendo em conta a conjuntura económica que se faz sentir no momento presente, compreende que “haja cautela na atualização”.

Pelo facto de a CAV não ter sido atualizada, há consequências: “A RTP tem de ter alguma contenção nas despesas, alguma poupança, embora isso enfraqueça a prestação do serviço público de rádio e televisão e torne até esse serviço mais dependente das receitas publicitárias.”

“Creio que numa situação de normalidade devia ser cumprida essa regra de atualização anual de acordo com a inflação”, diz ainda.

Subsidiar ou não pagar, eis a questão

Mas o valor da CAV é assim tão exorbitante? Faz assim tanta diferença no bolso dos portugueses?

De acordo com um relatório da European Broadcasting Union (EBU), publicado em novembro de 2022 e com dados referentes a janeiro de 2021, Portugal é o quarto país europeu, dos 13 que cobram uma Contribuição para o Audiovisual (CAV), com taxa mais baixa.

E se a comparação for com o universo das nações que integram a União Europeia, apenas a Grécia cobra menos.


Os portugueses desembolsam 36,25 euros anualmente, (3,02 euros mensais cobrados na fatura da eletricidade), enquanto os gregos gastam apenas menos 25 cêntimos, os sérvios pagam 30,52 euros e, por último, os albaneses despendem 9,80 euros.

De todas as nações que integram a EBU, a Suíça é o país em que os cidadãos são chamados a fazer o maior contributo para os serviços de comunicação públicos: 309,87 euros anuais. De seguida, surge a Áustria com uma fatura de 300,03 euros, a Alemanha com 210 euros e o Reino Unido com 183,19 euros.

No universo dos países europeus, a contribuição média anual da CAV, em janeiro de 2021, foi de 118,33 euros. Ou seja, mais do triplo do valor cobrado em Portugal.

João Cotrim Figueiredo não disputa estes dados, mas nota que a EBU, enquanto entidade constituída por emissoras públicas, “tem interesse em publicar a coisa dessa forma”.

E acrescenta: “Mesmo ressalvando as diferenças do poder de compra, o que diria a esse propósito de países que cobram mais, há exemplos de países que não cobram nada. Nós preferimos seguir o exemplo dos países que não cobram nada.”

Sem surpresa, Alberto Arons de Carvalho faz uma leitura diferente dos dados da EBU. A CAV tem um valor “baixo” e é “indispensável” para o financiamento do serviço público de televisão e rádio.

O serviço público “tem a publicidade muito limitada”, argumenta, recordando que nenhuma das rádios que integram a RTP tem publicidade, assim como o canal televisivo RTP2. Mais: a CAV “é fundamental”, defende, para serviços como a RTPÁfrica, assim como os canais das regiões autónomas.

Por lei, um canal privado pode destinar até 20% por hora ou seja, 12 minutos – à publicidade. Todavia, de acordo com os estatutos da RTP e o respetivo contrato de concessão, a RTP1 está limitada a 6 minutos por hora. Arons de Carvalho lembra até que “há na Europa quem não tenha publicidade” nos canais públicos.

Segundo Arons de Carvalho, do orçamento da RTP, apenas 8,5% é proveniente de receitas publicitárias.


A CAV é cobrada na fatura da eletricidade. Foto: Sofia Freitas Moreira/RR
A CAV é cobrada na fatura da eletricidade. Foto: Sofia Freitas Moreira/RR

Ideologia e inflação

A ideia de abolir a CAV, conforme propõe a IL, não é um tema novo. E na conjuntura económica internacional, tendo em conta a inflação, não seria algo inédito. No ano passado, França tomou esse caminho e eliminou a cobrança de 138 euros anuais. Aliás, tanto a Turquia como a Dinamarca tomaram também a opção de acabar com as respetivas CAV em 2022.

Estas nações, contudo, não eliminaram o financiamento do serviço público de rádio e de televisão. No caso dinamarquês, seguindo o exemplo dos países nórdicos, a CAV foi substituída por um imposto calculado no momento do apuramento do IRS anual. Em França, a verba passou antes a ser retirada do IVA que os franceses pagam ao Estado nos mais diferentes serviços e compras.

É neste ponto que o projeto de lei da Iniciativa Liberal se afasta do que foi feito lá fora. O partido dá, como primeira justificação para a abolição da CAV, “o contexto da atual crise dos preços da energia”, fala na importância da redução do IVA da eletricidade, mas, por último, nota que o partido “considera que os fundos públicos não devem financiar serviços de radiodifusão e de televisão”.

João Cotrim Figueiredo não nega o aspeto ideológico da proposta. E apesar das críticas à qualidade e audiências da RTP, diz que devem sempre existir “serviços públicos na transmissão televisiva”.

“Nós admitimos a existência daquilo que se pode chamar de serviços públicos na transmissão televisiva, o que significa que há matérias que o mercado nunca suprirá e, portanto, caberá ao Estado assegurar esses serviços. Mas aquilo que é hoje o âmbito do contrato de concessão devia ser muito mais restrito”, diz.

O modelo de financiamento destes “serviços mínimos”, contudo, nunca deve passar por uma taxa como a CAV. “Tratando-se de um serviço público, devia estar financiado através do OE e não através de contribuições deste tipo.”


Foto: DR
Foto: DR

Outras formas de pagamento?

Além da Iniciativa Liberal, também o Chega apresentou um projeto de lei relativo à Contribuição Audiovisual (CAV) que será discutido, esta quinta-feira, na Assembleia da República. Acontece que, o partido liderado por André Ventura, ao contrário do liderado por Rui Rocha, não pretende abolir a taxa, antes alterar a forma de pagamento e alargar o universo das situações de isenção.

No entender do Chega, a cobrança da CAV “deve passar para as empresas fornecedoras de pacotes de serviços de comunicações eletrónicas”. A responsabilidade, portanto, ficaria nas mãos de operadoras de telecomunicações como a MEO, NOWO, NOS e Vodafone.

Ao nível europeu, esta não seria uma mudança totalmente inusitada, tendo em conta dados da European Broadcasting Union (EBU).

Se em Portugal, Itália, Grécia, Bósnia ou Sérvia, a CAV aparece na fatura da eletricidade, na Polónia é um valor que o consumidor paga no balcão dos Correios. Já na Alemanha, a CAV é paga diretamente pelo utilizador à empresa do serviço público de rádio e televisão.

Uma alteração como a desenhada pelo Chega, todavia, teria consequências, a principal das quais mexer com o valor que a RTP recebe anualmente por via da CAV. Porquê? “O universo é mais pequeno”, sublinha Alberto Arons de Carvalho à Renascença.

O número de habitações e edifícios em Portugal - desde 2005, a CAV aplica-se a todos os consumidores de eletricidade e não apenas aos domésticos - que pagam uma fatura da eletricidade é muito superior àquele dos que têm contratado um pacote com uma operadora por cabo.

Note-se: de acordo com a ANACOM, em 2021, cerca de 4,4 milhões de lares portugueses já pagavam para ter acesso a serviços televisivos por cabo. Ao mesmo tempo, segundo dados provenientes dos Censos de 2021, existem em Portugal 3,5 milhões de edifícios clássicos (que podem ser utilizados para habitação ou não) e 5,9 milhões de alojamentos.

“O que o Chega demagogicamente não diz é que, sendo um universo mais pequeno para se atingir o mesmo valor, cada cidadão, cada família que paga o acesso a redes de cabo e aparentados, teria de pagar mais”, aponta o representante do Governo no CGI da RTP.

E depois acrescenta: “O que o Chega não diz é que esta transferência envolveria um aumento substancial da CAV, a não ser que o efeito pretendido fosse esvaziar a RTP, diminuindo as suas receitas de uma forma drástica, o que então prejudicaria a prestação do serviço público pela RTP.”

A atual moldura da CAV antecipa a possibilidade de qualquer cidadão que receba um apoio social possa pagar uma taxa reduzida (um euro por mês). A hipótese de isenção total também existe para utilizadores com consumo anual de eletricidade inferior a 400 kWh.


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