Polémica à parte, obras da JMJ avançam. "Podiam fazer um palco mais baratucho"

Apesar da discussão ainda estar a decorrer, as obras avançam. Moradores nas redondezas do Parque Tejo deixam críticas aos gastos da Jornada Mundial de Juventude. Ao mesmo tempo, esperam que obras de reabilitação na zona valorizem as casas e que tenham o mesmo impacto que a Expo 98 teve no Parque das Nações.

03 fev, 2023 - 17:14 • Fábio Monteiro



A conversão do Parque Tejo avança. Foto: Fábio Monteiro/RR
A conversão do Parque Tejo avança. Foto: Fábio Monteiro/RR

O debate sobre aos gastos da Jornada Mundial da Juventude (JMJ 2023), que irá ocorrer em Lisboa, na semana de 1 a 6 de agosto, ainda não acabou. Mas, ao mesmo tempo, a obra avança.

Parte da estrutura daquela que será a nova ponte sob o rio Trancão já foi erigida. Por estes dias, qualquer curioso que passe pelo Parque Tejo consegue ver também: há camiões a transportar as vigas para o local onde ficará o palco principal, apesar de o desenho e o preço final ainda estar a ser alvo de discussão.

Aqueles que moram ou trabalham nas redondezas, não são alheios à controvérsia que corre no país. Há muitos críticos do investimento, que defendem que o Governo e a Igreja Católica deviam ter sido mais “poupadinhos”, “comedidos com o dinheiro dos contribuintes”, mas também existem apologistas do projeto.

Sahaj Dave, de 43 anos, está animado com a construção. O cidadão indiano, que mora em Portugal há quatro anos, tem quatro apartamentos em Lisboa, dois dos quais colados à zona principal que irá acolher a JMJ. Graças ao programa de Autorização de Residência para Atividade de Investimento – os chamados Vistos Gold -, possui passaporte português.

“Antes não existia vedação [do terreno]. Tinha sido cortada em alguns pontos. As pessoas costumavam deitar para lá entulho, lixo, estava em muito mau estado. Vinham cheiros de lá”, lembra Sahaj Dave, à Renascença.

Na perspetiva do investidor indiano - que é hindu, mas promete visitar o recinto da JMJ - o grande fruto do evento católico será as mudanças que irá legar no bairro. “Não sei o que pretendem fazer aqui, mas é um bom sítio. Podem desenvolver qualquer coisa aqui, como um espaço de desportos, jardim ou até um campo de golfe.”

A reabilitação do Parque Tejo levará à valorização dos apartamentos na zona, admite ainda Sahaj Dave. “Eu tinha um T1 aqui. Comprei-o por 280 mil e qualquer coisa, vendi-o por 250. Agora estão a vendê-lo por 350 mil. Vendi este T1 e comprei o T2 por 350 mil. E agora valorizou quase 100 mil euros.”


Sahaj Dave, cidadão indiano, mora ao lado do Parque Tejo. E espera visitar o recinto. Fábio Monteiro/RR
Sahaj Dave, cidadão indiano, mora ao lado do Parque Tejo. E espera visitar o recinto. Fábio Monteiro/RR

Leandro Freire mora no mesmo bairro que Sahaj Dave há um ano e meio. À Renascença, conta que, quando comprou o seu apartamento, o agente imobiliário fez questão de usar a JMJ como argumento de venda.

"O corretor falou na época. Agora, acho que vai ficar mais bonito. Acho que o resultado vai ser bom para quem mora para cá. Vai valorizar. E mais um parque perto é sempre bom, para a gente que tem crianças. Para a gente aproveitar como família", diz o cidadão brasileiro.

Numa das laterais do Parque Tejo, junto à Estação de Tratamento de Águas Residuais de Beirolas, há estaleiros do Centro de Recolha de Resíduos do Parque das Nações. O que pode parecer estranho para quem tem memória história do bairro. Mas tem explicação: antes de ser Parque Tejo, o espaço que vai acolher o recinto principal da JMJ foi o aterro sanitário de Beirolas.

José Luís trabalha no Centro de Recolha de Resíduos do Parque das Nações há três anos. E afirma que, depois das obras, “vai ficar bonito”. Todavia, ressalva: “É muito dinheiro para uma semana.”

“Podiam fazer um palco mais baratucho. O Papa vem cá uma semana, está aqui um ou dois dias. Acho que é demasiado. Podiam ser mais poupadinhos. Costuma-se dizer: 'eu com o casaco do meu pai sou um homem, com o dinheiro dos outros faço tudo e mais um par de botas, desde que tenha o dinheiro'. E não é justo. Podiam usar esse dinheiro para ajudar pessoas quem não têm casa. Há tantos sem-abrigo nas ruas”, defende.

O trabalhador municipal considera que todos os envolvidos na polémica “ficam mal na fotografia”. Enquanto católico, nota: “A Igreja devia ter dito: não, vocês vão gastar dinheiro nisto? Não, um palco destes? Não, não precisam disso. Uma coisa mais modesta.”


Zona de construção. Fábio Monteiro/RR
Zona de construção. Fábio Monteiro/RR

Por cima de um aterro…

Manuel e Lucinda Santana caminham lentamente em torno da vedação que delimita a área do Parque Tejo. O casal de idosos, que mora em S. João da Talha e tem por hábito vir passear à beira do rio, espera uma “grande obra” que sirva para futuro; uma construção que não fique ao abandono. “Podia-se fazer uma coisa mais modestinha, porque a gente anda toda a fazer vida de modesto.”

As obras no Parque Tejo de preparação para JMJ começaram em março de 2022. E uma das primeiras preocupações quanto ao local escolhido foi que os terrenos estivessem “altamente contaminados” – suspeita levantada pela associação ZERO. A organização da JMJ 2023 e a Câmara Municipal de Lisboa (CML) afirmaram, então, que essa preocupação não tinha fundamento.

À Renascença, Lucinda volta a levantar esse problema. E revela: “Isto tinha químicas. Quando eles começaram a escavar isto, nós andamos aqui à volta e sentimos os olhos a arder. E as pessoas dos prédios também se queixaram. Os poços ainda estão abertos, para deitar as químicas cá para fora.”


Manuel e Lucinda Santana moram perto do recinto. Foto: Fábio Monteiro/RR
Manuel e Lucinda Santana moram perto do recinto. Foto: Fábio Monteiro/RR

Um pouco mais à frente aparece Carlos Rodrigues. O geólogo, que trabalha no setor da construção como especialista, leva nas mãos duas latas de refrigerante que acabou de apanhar – e quer levar para um ponto de reciclagem. A margem do rio está repleta de resíduos, toalhitas higiénicas em decomposição.

Carlos lembra que, em tempos, já existiu ali um passadiço de madeira – mas que não foi mantido e acabou por apodrecer. E aponta para o lixo.

Para o geólogo, a opção de construir o palco num dos pontos elevados do terreno é “estranha”. “Acho muito ousado estar a fazer um palco em cima de um aterro.” Existe o risco de se perfurar uma bolsa de metano – um gás explosivo.

“A coisa que me parece mais chocante é a permanência deste palco. Para mim, era simplesmente reflorestar tudo. Preferia ver isto cheio de árvores, não ao abandono”, afirma Carlos Rodrigues.

Foto: Fábio Monteiro/RR
Foto: Fábio Monteiro/RR

E o Parque das Nações?

Carlos Vieira mora na zona da Portela há 45 anos. E veio passear à beira Tejo.

O idoso de 75 anos ainda se recorda quando o Parque Tejo era um aterro sanitário, da construção da Ponte Vasco da Gama, do nascer da Expo 98 e todas as polémicas da época. Por isso mesmo, diz que não se deve dar assim tanta atenção às controvérsias do momento presente.

Para Carlos, a JMJ é um evento que sai “caro” ao Governo e à Igreja, um caso de “novo riquísmo”. Mas afirma: “Há tanto fumo, nevoeiro, no meio disto tudo.”

Há muitas questões por esclarecer, em particular em torno de dinheiros. Daqui a 20 anos, porventura, a narrativa em torno do Parque Tejo seja outra, com palco gigante ou não, estará, muito provavelmente, esquecida, nota o idoso.

“Isto é como foi a Expo 98, no fim de contas. É aproveitar, fazer qualquer coisa. Já ninguém se lembra hoje do que foi dito sobre a Expo. Temos muitos 'Velhos do Restelo'”, atira.

Foto: Fábio Monteiro/RR
Foto: Fábio Monteiro/RR

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