Santarém não quer ficar a ver passar aviões

O sossego ribatejano dum lado, milhares de postos de trabalhos do outro. Ao centro uma infraestrutura ligada aos desígnios nacionais. A notícia que Santarém pode vir a acolher o futuro aeroporto de Lisboa surpreendeu muitos locais – mas não todos. Populares estão céticos, mas latifundiários não fecham a porta a vender terrenos. E já há sinais de especulação imobiliária.

24 out, 2022 - 08:00 • Fábio Monteiro



Vista da Quinta Monteiro de Matos, uma das propriedades que pode vir a ser afetada pela construção do futuro aeroporto. Foto: Fábio Monteiro/RR
Vista da Quinta Monteiro de Matos, uma das propriedades que pode vir a ser afetada pela construção do futuro aeroporto. Foto: Fábio Monteiro/RR

Ricardo Luís Costa está habituado a ver passar aviões – literal e metaforicamente. Por cima da sede da União de Freguesias de São Vicente do Paúl e Vale de Figueira, município de Santarém, é comum ouvir-se o rasgar das aeronaves militares, que se deslocam em exercícios de e para a base de Monte Real. Da mesma forma, as oportunidades de desenvolvimento regional também costumam passar perto, mas, em regra, vão poisar ou mais perto do litoral ou à capital.

Foi com espanto, por isso, que o presidente da junta recebeu uma notícia que surgiu no final de agosto. O projeto para uma grande infraestrutura, capaz de gerar milhares de postos de trabalho, podia vir, muito em breve, a aterrar-lhe no colo: um grupo de investidores privados, liderados por Humberto Pedrosa, dono do Grupo Barraqueiro e ex-acionista da TAP, pretendia construir um aeroporto na região.

A área para o empreendimento ainda não estava propriamente delimitada, nem havia um mapa. Mas, de acordo com os vários relatos, deveria ficar entre a estação ferroviária de Mato Miranda e uma bomba de gasolina da BP, na A1. Ou seja, ficaria entre o território da União de Freguesias de São Vicente do Paúl e Vale de Figueira e o da União de Freguesias de Casével e Vaqueiros.


Até há cerca de dois meses, Ricardo nunca tinha ouvido falar de tal plano. E, desde então, tudo o que sabe vem de órgãos de comunicação. No gabinete, em que recebe a Renascença, guarda uma pequena pasta com as muitas notícias que têm saído sobre o projeto. Documentos oficiais? Não há.

“Sabemos que os municípios da CIM [Comunidade Intermunicipal] do Médio Tejo já tiveram um encontro e que as câmaras vizinhas aprovam, gostavam que o aeroporto viesse para a zona de Santarém. Seria bom para o nosso concelho, para as freguesias vizinhas. Seria bastante bom”, diz.

Na pilha de folhas de Ricardo estão patentes as proporções que a ideia tomou. Se as primeiras notícias falavam de um pequeno aeródromo regional, de iniciativa privada, em pouco menos de um mês tudo mudou.

Com o futuro aeroporto de Lisboa ainda num impasse – após o episódio da decisão de Pedro Nuno Santos revogada por António Costa -, o primeiro-ministro anunciou, a 23 de setembro, numa tentativa de entendimento com o PSD, a criação de uma comissão técnica para estudar todas as possíveis localizações. E surpresa: Santarém constava na lista.

As povoações de São Vicente do Paúl entraram assim no enredo dos desígnios nacionais. E a ideia começou a ganhar raízes. Ouvidos pela Renascença, alguns dos maiores proprietários da região admitem ver com bons olhos o empreendimento; há até já burburinhos sobre valores para venda.

Parte da população, todavia, está cética. Habituados a turistas, os locais têm receio do “barulho” e da “confusão” que um aeroporto trará. Seria o fim da pacatez das povoações, que hoje são flanqueadas por grandes extensões de vinha e olivais. A especulação imobiliária poderia também provocar estragos.


Ricardo Luís Costa, presidente da União de Freguesias de São Vicente do Paúl e Vale de Figueira. Foto: Fábio Monteiro/RR
Ricardo Luís Costa, presidente da União de Freguesias de São Vicente do Paúl e Vale de Figueira. Foto: Fábio Monteiro/RR

Mesmo assim, Ricardo Costa defende que o outro lado da balança tem mais peso. Os “preços dos terrenos [na região] iriam ser inflacionados”, “os proprietários [afetados pela construção] de certeza que iam ter boa receita”. Além disso, seriam criados muitos empregos e infraestruturas. “Cada vez há mais dificuldades, menos meios para empregos. Iria desenvolver estas áreas confinantes. De certeza que a maioria [da população] está de acordo e tinha interesse”, diz.

O presidente da junta não esconde que a perspetiva de acolher um empreendimento como um aeroporto lhe agrada. Neste momento, em todo o caso, a conversa está ainda no campo da especulação. Afinal, como a maioria dos portugueses tem memória, a novela sobre a localização do novo aeroporto de Lisboa está longe de ser nova.

cinquenta anos que se vêm a fazer estudos e a discutir possíveis soluções. A conversa tardou a aterrar em Santarém. Ou como diz Ricardo Costa: “Se veio, veio ao pé-coxinho.”


Onde vai aterrar?

Plantada na pequena povoação de Casal do Paço, a Quinta Monteiro de Matos tem cerca de 50 hectares. Durante todo o ano, recebe turistas, produz vinhos (exportados para 15 países) e, se algum dia o aeroporto vier aterrar a Santarém, será, muito provavelmente, mordiscada pela obra. Quão ao certo, porém, nem os próprios donos sabem ainda dizer.

O local exato onde será plantado o aeroporto (privado ou público) é ainda segredo. Tendo em conta a distribuição do território, contudo, é fácil chegar a uma pequena lista de potenciais latifundiários afetados. Aliás, uma das grandes vantagens de o futuro empreendimento ser construído na região é que apenas com “uma dúzia de proprietários” o Estado poderá comprar terra suficiente, conforme diz José Monteiro de Matos. “Arranjam-se logo 300, 400 hectares.”

O produtor vinícola está recetivo à ideia, “não pelo valor monetário, mas pelo bem do país”, garante. A localização, defende, não podia ser melhor. Além de existir uma linha ferroviária nas proximidades, algumas das mais importantes autoestradas do país passam mesmo ao lado: a A23 que liga à Guarda e a Espanha; a A1 em sentido Norte e Sul; a A15 que dá acesso à região do Oeste.

Nuno Matos, 38 anos, partilha das opiniões do pai. E assume que a construção teria, quase de certeza, impacto na quinta da família. “Provavelmente ia apanhar [parte da nossa quinta]. É um negócio já de três gerações. Não é fácil chegarem aqui e dizerem: agora vão montar noutro lado”, diz. Mesmo assim, não rejeita a ideia. “Desde que seja para beneficiar a população.”

Acima de tudo, Nuno pede celeridade na decisão. A família Monteiro de Matos tem um projeto de arquitetura já aprovado para “aumentar o enoturismo”, construir mais oito unidades de alojamento local. Acontece que, dependendo do perímetro do futuro aeroporto, o projeto pode ter de ser repensado.


Na região onde se pretende construir o aeroporto, há grandes quintas. Muitas produzem vinho, outras azeite. Foto: Fábio Monteiro/RR
Na região onde se pretende construir o aeroporto, há grandes quintas. Muitas produzem vinho, outras azeite. Foto: Fábio Monteiro/RR

“Se ficarmos no perímetro exterior do aeroporto, podemos pensar em fazer uma unidade hoteleira maior. Mas se ficarmos no perímetro interior, nem vale a pena avançar”, explica.

Muito mais cético que Nuno e José Monteiro de Matos, Joaquim Coimbra tem dificuldades em imaginar um aeródromo no lugar dos seus campos de trigo. “Não ligo a isso, nem acredito. Posso estar a falhar, mas não acredito. Já começaram na Ota. Já começaram lá em baixo e agora vêm para aqui”, lembra o homem de 80 anos à Renascença, numa conversa à beira de um dos seus estaleiros.

Joaquim é dono da grande Quinta do Pinheiro, que tem 250 hectares. Com um sorriso jovial, o homem de boina diz que a possibilidade de ter de dividir as suas terras não o assombra, pois não tem família. “Se uma pessoa tivesse família… É sempre ruim, porque muda a dimensão da propriedade, os cortes isto tudo.”

O agricultor garante que, apesar de descrente no projeto, também não será entrave ao projeto. “Se eles me ficarem com a terra, que ma paguem bem. Fico descansado. Não sou indivíduo que ponha obstáculos a projetos. Agora se me disser se acredito [no aeroporto], não acredito”, diz.

Sem ser Joaquim, há apenas um latifundiário na zona que poderá ser mais impactado pela construção do aeroporto: João Cardoso, proprietário da empresa de transportes Tracopol. O também dono da Quinta Dom Rodrigo e da Quinta Carvalhal, entre outras propriedades, tem cerca de 350 hectares – a maioria dos quais no centro da área selecionada à partida para o aeroporto.

À Renascença, numa curta conversa telefónica, João diz que “os boatos são muitos, mas nunca ninguém falou comigo. Só tive conhecimento [do projeto] pela televisão e pelas filmagens que andaram a fazer”.

A construção causará “transtorno”, dado que ainda recentemente plantou cerca de 90 hectares de vinha. Ainda assim, não fecha a porta a futuros negócios.


Diamantino Vicente, antigo presidente da junta de Casével. Foto: Fábio Monteiro/RR
Diamantino Vicente, antigo presidente da junta de Casével. Foto: Fábio Monteiro/RR

Do boato à especulação

Todas as pequenas localidades se parecem umas com as outras, mas cada localidade faz circular segredos à sua maneira. Ora, assim como Ricardo Costa, presidente da junta da União de Freguesias de São Vicente do Paúl e Vale de Figueira, todos os proprietários agrícolas ouvidos pela Renascença garantiram ter tomado conhecimento da iniciativa do aeroporto apenas pelas notícias.

Em Casével, a outra freguesia potencialmente afetada pelo futuro aeroporto, a novidade parece ter chegado mais cedo. Diamantino Vicente, ex-presidente da junta, tomou conhecimento de um “zunzum há mais de um ano”.

“Inicialmente pensava-se que era um privado que queria comprar umas terras, fazer pista para ele e alguns amigos brincarem”, conta. Relativamente à entrada do Governo em cena, o homem de 71 anos admite que foi apanhado de surpresa.

Enquanto pessoa que conhece bem o território, Diamantino sinaliza potenciais problemas perto da estação ferroviária de Mato Miranda: a reserva natural do Paul do Boquilobo, que conta com diversas aves, fica a menos de 10 quilómetros de distância. Por outras palavras: o cenário do Montijo pode repetir-se. “Adeus, avezinhas, que estão ali. Nunca mais vão dormir, coitadinhas”, diz o antigo autarca, de forma irónica.

Diamantino defende que “bem equacionadas as coisas, alguém tem que levar com o aeroporto”. E como já morou em Lisboa, o barulho do aeroporto não o assusta. Mas diz: “Na realidade, Casével não é uma comunidade que precise de todas essas mais valias, porque toda a gente é autossuficiente. Não é desejável.”


Liberto Eliseu é dono da única agência imobiliária de Casével. Foto: Fábio Monteiro/RR
Liberto Eliseu é dono da única agência imobiliária de Casével. Foto: Fábio Monteiro/RR

Liberto Eliseu, 61 anos, tem o mesmo entendimento. “Acaba-se o sossego. Acaba-se o bom ambiente que existe aqui. Vem piorar. Só interessa às câmaras municipais, mais nada. A questão de criar muitos postos de trabalho isso não interessa. Não interessa, que as pessoas aqui têm trabalho. Há trabalho com fartura. Portanto esses postos de trabalho acabaram para ser para pessoas que vêm de outros locais”, diz.

Dono da única agência imobiliária de Casével, Liberto está bem sintonizado com um dos efeitos colaterais das notícias sobre o potencial novo aeroporto: a especulação. Um fenómeno que, na verdade, em pouco mais de dois meses, já se faz sentir.

Por norma, a zona de Santarém é muito procurada por famílias de Lisboa que procuram uma segunda habitação no campo. Com o aeroporto, “vão deixar de comprar aqui. Vai inflacionar tudo”.

Há cerca de um mês, um investidor chinês, vindo de Lisboa, apareceu na localidade, com a intenção de lhe comprar um terreno com dois hectares, avaliado em 70 mil euros, numa área que – na teoria – seria afetada pela construção do novo aeroporto. “Veio ver um terreno que tenho à venda, que era para investimento, e disse mesmo que era por causa da história do aeroporto”, revela Liberto.

O agente ainda lhe perguntou: E se não vier? Ao que o investidor respondeu: “Fica aí. Depois, vende-se.”


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