"Angústia total". O dia a dia de uma instituição social em agonia financeira

Com a inflação e a crise energética, o provedor da Santa Casa da Misericórdia de Campo Maior diz que as contas estão no vermelho. Os gastos com a luz triplicaram, a alimentação e os transportes estão mais caros, mas os apoios do Estado tardam em chegar.

12 out, 2022 - 08:00 • Ana Catarina André



Utentes do centro de dia da Santa Casa da Misericórdia de Campo Maior. Foto: D.R.
Utentes do centro de dia da Santa Casa da Misericórdia de Campo Maior. Foto: D.R.

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A hora de regressar a casa aproxima-se. Os utentes do centro de dia da Santa Casa da Misericórdia de Campo Maior, no distrito de Portalegre, entoam, quase em uníssono e em jeito de celebração de fim de tarde, as famosas saias da região, cantigas tradicionais do Alto Alentejo.

Maria Laurinda Saragoça, de 67 anos, sorri, enquanto vai tomando o seu lugar naquele coro improvisado. Começou a frequentar o centro de dia há um ano e meio, em plena pandemia. “Tive uma grande depressão. Deixei de fazer o almoço, o jantar. Não abria uma janela, não saía à rua. Assim me pus. Sem saber se estava lá, se estava cá”, desabafa, suspirando.

Desde que passou a sair de casa, todos os dias, e tornou a conviver com outras pessoas, foi “voltando a ser quem era”.

“Aqui faço renda, coso, escrevo”, conta a antiga funcionária da junta de freguesia local, que tem sentido “um bocadinho” os efeitos da atual crise económica. “A reforma é à justa, mas a pensão de sobrevivência do meu marido ajuda-me a pagar a luz e a água.” E assegura com confiança: “Cada vez temos de poupar mais e gerir bem o dinheiro. Não sei se foi de ficar boa, mas penso que há de ser o que for.” Só tem um desejo: que não lhe tirem o centro de dia. “Aqui estou bastante bem.”

Maria Laurinda Saragoça, como grande parte dos 260 utentes da Santa Casa da Misericórdia de Campo Maior, vai-se apercebendo dos efeitos da atual situação económica, marcada pela guerra na Ucrânia, mas, por enquanto, não sente no dia-a-dia as dificuldades que afetam a instituição que, além do centro de dia, tem também residência para idosos, apoio domiciliário, berçário, infantário e pré-escolar.

Com o aumento da inflação e a crise energética, os gastos mensais dispararam, conta à Renascença o provedor da organização, Luís Machado.

“Tínhamos consumos mensais de gás e eletricidade na ordem dos 2.000 a 2.500 euros. Neste momento, estamos a gastar 6.000 a 6.300 euros.”

O responsável menciona também os acréscimos com os transportes, a alimentação e os materiais.

“Tornámos a entrar na agonia e nas dificuldades permanentes. As nossas contas estão no vermelho”, sublinha. E alerta: “Nesta faixa interior até Bragança, mais envelhecida, mais despovoada, mais esquecida, a angústia das instituições é total.”


Efeitos da pandemia por ultrapassar

A atual crise surge numa altura em que as organizações sociais procuravam ultrapassar o impacto deixado pela Covid-19. “A pandemia obrigou-nos a um esforço suplementar e deixou as nossas finanças de rastos”, afirma Luís Machado, contando que, sobretudo em 2020 e 2021, os gastos com materiais de proteção individual foram “elevadíssimos”.

“Numa instituição com 120 funcionários, chegámos a pagar cinco euros por máscara.”

“Na fase aguda da pandemia”, adianta, não tiveram casos de Covid-19 “graças à dedicação” dos profissionais. “Trabalhávamos em equipas de 12 horas e recomendávamos às pessoas que tivessem o menor número possível de contactos. Tem sido esforço atrás de esforço.”

O caso da Santa Casa de Campo Maior não é único. Joaquim Mourato, professor no Instituto Politécnico de Portalegre e um dos autores do estudo “Economia Social no contexto covid-19”, sublinha que “os dados são alarmantes”.

"Durante a pandemia, 82% das organizações da economia social registaram uma diminuição de receitas", sublinha. "Sabemos, também que, 40% manteve os custos e 22% aumentou esses mesmos gastos", acrescenta o investigador.


Mais apoios do Estado

Com a aproximação do debate do Orçamento do Estado para 2023 (OE 2023), o provedor da Santa Casa da Misericórdia de Campo Maior espera que “venham a ser dados os apoios há muito anunciados”.

“Devia haver ajudas concretas nestas verbas que nos afligem, nomeadamente com os gastos com a luz e com o gás”, afirma Luís Machado. “Temo que apenas sejam anunciadas linhas de crédito”, uma medida com a qual não concorda.

“As instituições vão endividar-se mais e quem nos suceder vai ter de fazer face a isso, não sabendo bem como.”

A par dos aumentos provocados pela inflação e dos custos associados à pandemia, o investigador Joaquim Mourato sublinha “o peso” que o aumento do salário mínimo tem tido nestas organizações.

“Em 2022, as instituições receberam uma contrapartida que não chega a 10% do impacto dessa subida só nesse ano”, declara o docente, frisando que essa despesa se manterá no futuro. “Sabemos também que as comparticipações da Segurança Social não são atualizadas na medida dos custos, o que significa que a cada ano as instituições ficam em maior agonia.”

Convencido de que as instituições "vão ter muitas dificuldades em resistir", dado que "a comparticipação do Estado tem um peso cada vez menor e é inferior a 50% dos encargos gerais", o investigador aponta um "problema gravíssimo que é transferido para as instituições que não têm como encontrar esse dinheiro".

"Também sabemos que as famílias não têm capacidade para fazer face a esses aumentos. Chegámos a um ponto em que é preciso pensar num plano de reestruturação financeiro destas instituições”, remata Joaquim Mourato.

Filipe Almeida, presidente do Portugal Inovação Social, uma iniciativa pública que já apoiou 693 projetos em 477 organizações, defende que, perante as atuais dificuldades “não basta ter mais dinheiro". "É preciso estimular as intituições e o Estado para, em parceria procurarem soluções".

Para este responsável, que é também investigador, é preciso procurar “respostas de maior qualidade”.

“Se tivesse de escolher uma das prioridades para o setor, diria a absoluta necessidade do seu rejuvenescimento. Sabemos que 87% dos dirigentes de topo são homens e que mais de 50% tem mais de 64 anos”, diz, salientando a necessidade de “atrair jovens”.

Filipe Almeida defende também uma “profissionalização da gestão”, além de uma maior colaboração entre organizações, uma aposta na transição digital e uma avaliação do trabalho desenvolvido.


A instituição tem 120 funcionários. Foto: D.R.
A instituição tem 120 funcionários. Foto: D.R.
São 29 os idosos que frequentam o centro de dia.  Foto: D.R.
São 29 os idosos que frequentam o centro de dia. Foto: D.R.


Baixos salários, boa vontade e criatividade

Por ser um setor com baixos salários, algumas instituições têm dificuldade em captar profissionais. O provedor da Santa Casa da Misericórdia de Campo Maior lamenta que “continuem a não conseguir pagar aos funcionários aquilo que merecem”, mas sublinha o empenho das equipas. “Muita gente não abandona este trabalho, porque o faz com espírito de missão.”

Alexandra Mamede, de 39 anos, é animadora sociocultural no lar da organização. Garante que, apesar dos problemas do sector social, o seu trabalho “é muito gratificante”.

“Alguém tem de ficar. Além disso, esta instituição, ao contrário de outras, apoia as nossas estratégias e isso é muito positivo para quem quer fazer um bom trabalho.”

Parte do seu dia-a-dia, conta, passa por “encontrar soluções para as limitações existentes”. Dá um exemplo: “Temos muitas pessoas com demência e somos nós quem fazemos quase todos os materiais de estimulação cognitiva com que trabalhamos, para além dos projetos que vamos implementado.”

Rosália Guerra, colaboradora e coordenadora do centro de dia durante a pandemia, recorda que, sobretudo nos últimos dois anos, “graças ao empenho de todos”, a Santa Casa da Misericórdia de Campo Maior criou métodos de trabalho mais eficientes e novas soluções para responder às limitações provocadas pela Covid-19.

“Além de um gabinete de apoio às famílias, disponibilizamos cadernos de estimulação cognitiva para as pessoas fazerem em casa e tablets para que se mantivessem em contacto com as famílias. Não deixámos de prestar apoio com as refeições e com a higiene”, diz. “Com o confinamento, encontrámos, por exemplo, pessoas que não tinham banheira em casa ou gás e foi preciso enviar um canalizador para resolver o problema.”

Cientes das dificuldades, os trabalhadores, incluindo muitos dos utentes, vão procurando usar os recursos de forma sustentável. A lavandaria, por exemplo, só funciona no período em que a tarifa é mais barata. Todos sabem que as luzes só devem estar acesas quando necessário e que as torneiras devem ficar bem fechadas após cada utilização, como lembram vários cartazes espalhados pela casa.

Ana Inácio, psicóloga da organização, destaca a resiliência das equipas e o esforço para ”a utilização racional dos bens”.

“As pessoas sabem que vivemos tempos diferentes e têm noção do esforço que a instituição faz para garantir que o essencial não nos falta.” E acrescenta: “Há um estrangulamento financeiro, mas as coisas vão acontecendo graças à boa vontade de muita gente”.


Novos projetos

Uma parte das carências vai sendo colmatada com o apoio dos privados e do município, garante o provedor Luís Machado. “Há algumas instituições que têm rendimentos de propriedades e edifícios que lhes foram doados. Não é o nosso caso.”

Cristina Gonçalves, coordenadora do serviço de apoio à administração, habituou-se a estar atenta a todos os apoios e financiamentos que a organização possa captar. “Candidatamo-nos a projetos na área social, mas também na área da formação”, adianta.

Os resultados de uma das iniciativas mais recentes, financiada pelos prémios BPI La Caixa, são visíveis no centro de dia. Graças ao "Vidas Ligadas", que procura possibilitar que os mais velhos voltem a preencher as agendas e se sintam úteis, Maria (nome fictício) voltou a ter um quotidiano comum.

“Estava com um quadro de desorientação grave. Saía de casa à noite, porque achava que os familiares tinham morrido. Passava os dias a cozinhar para a família, sem que ninguém estivesse a contar aparecer”, conta a colaboradora Rosália Guerra. Mas "aos poucos, com o apoio das técnicas, foi-se comprometendo a ir ao centro de dia".

"A filha também percebeu que os comportamentos estranhos da mãe eram afinal parte da doença e as duas reaproximaram-se. Hoje, a Maria é uma das nossas utentes", diz Rosália Guerra. E garante: "Com as rotinas e o acompanhamento, o seu estado de saúde melhorou bastante.”


Além de centro de dia, a Santa Casa da Misericórdia de Campo Maior tem lar, apoio domiciliário, creche e infantário. Foto: D.R.
Além de centro de dia, a Santa Casa da Misericórdia de Campo Maior tem lar, apoio domiciliário, creche e infantário. Foto: D.R.

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