Vale de Amoreira. O fogo quase bateu à porta de Manuel e Patrocínia

Manuel e Patrocínia Sequeira pensavam que o fogo já tinha passado, que estavam protegidos e tinham bombeiros por perto. Mas foram apanhados em contrapé com chamas à porta de casa. Em menos de uma semana, por duas vezes, os incêndios ameaçaram Vale de Amoreira, em Manteigas. “Se não fossem os populares, não sei o que a freguesia poderia agora ser”, diz o autarca Nuno Gonçalves.

06 set, 2022 - 07:00 • Fábio Monteiro , Maria Costa Lopes (vídeo)



Vale de Amoreira. O fogo quase bateu à porta de Manuel e Patrocínia

Este é o segundo de nove capítulos do especial "Serra da Estrela, 29 mil hectares depois" sobre os incêndios que consumiram perto de 25% do Parque Natural da Serra da Estrela.


11 de agosto, quinta-feira. O incêndio que lavra na Serra da Estrela – e que irá consumir quase 29 mil hectares, dos quais 22.065 pertencentes ao geoparque - começou há quase uma semana. Assim como muitas localidades vizinhas, a aldeia de Vale de Amoreira, freguesia do município de Manteigas, está sem telecomunicações. Dezenas, porventura centenas, de postes de eletricidade viraram carvão e ainda fumegam à beira da estrada.

As colinas que circundam a povoação, com cerca de 200 habitantes, estão pontilhadas de pontos quentes; nalguns, vêem-se pequenas labaredas, noutros, o fumo de madeira e arbustos a serem roídos por brasas. O declive é acentuado, as vias de acesso para os bombeiros são poucas.

Há filas de autotanques e jipes estacionados nas poucas estradas que cortam a serra, simplesmente à espera que as chamas fiquem dentro de alcance. O combate é feito, acima de tudo, por via aérea; alguns helicópteros passam e fazem descargas.

A casa de Patrocínia e Manuel Sequeira é uma das mais próximas da frente do fogo. Situada nas traseiras da Igreja de Nossa Senhora da Anunciação, se as chamas descerem até à aldeia, será uma das primeiras a ficar em perigo. Manuel tenta, por isso, precaver-se: de mangueira na mão, ensopa de água os terrenos em redor.

O reformado, emigrante há mais de 30 anos em França, usa um chapéu de abas largas. E está perturbado. “Ontem à noite isto parecia um inferno”, conta.

Manuel queixa-se de intransigência por parte do Instituto da Conversação da Natureza e das Florestas (ICNF) na gestão do Parque Natural da Serra da Estrela: “Não deixa fazer açudes”, explica, o que seria importante para a agricultura e para o combate às chamas, ou “abrir faixas de corte” na serra.

“A gente do campo não compreende esta política que os da cidade fazem.”

Os pontos de fogo estão a mais de 500 metros de distância, mas ainda há muitos retalhos de verde na paisagem. Mesmo assim, o reformado quer acreditar que o pior já passou. Afinal, há bombeiros e meios aéreos no terreno.

A conversa com a Renascença decorre num caminho que ladeia a sua casa e dá acesso à serra; aí, Manuel é fotografado no meio de uma mancha verde. Sete dias depois, tudo estará pintado de cinzento e negro.


Manuel mostra fotografia do sítio em que se encontra dias antes. Foto: Maria Costa Lopes/RR
Manuel mostra fotografia do sítio em que se encontra dias antes. Foto: Maria Costa Lopes/RR

O pior, depois

17 de agosto, quinta-feira. Por muito pouco as chamas não alcançaram a casa de Patrocínia e Manuel Sequeira. Ficaram-se a uns meros 10 metros.

O incêndio que lavrou a Serra da Estrela foi dado – uma primeira vez – como controlado a 12 de agosto. Mas, passados três dias, houve vários reacendimentos. Então, parte dos meios de combate aos fogos já haviam dispersado.

No dia 15, por volta da hora do almoço, o casal de emigrantes com casa em Vale de Amoreira é apanhado em contrapé. “Vimo-nos um bocado atrapalhados”, confessa Manuel.

As chamas, atiçadas por fortes rajadas de vento, galgaram metros a grande velocidade e, no espaço de minutos, apareceram à porta de casa. Por todo o lado, havia faúlhas a voar. “Parecia petróleo”, recorda Patrocínia.

A carrinha da junta de freguesia foi a primeira acorrer ao local. Depois, “o povo”. Só mais tarde chegaram os bombeiros com dois autotanques. “Se não houvesse os emigrantes, isto ardia tudo”, diz Patrocínia.

Para Manuel, é ainda difícil falar sobre o que aconteceu. Afasta o rosto, vira-se para a serra e, aos soluços, diz: “O espetáculo que temos aqui até me revolta todo. Só por causa de certas pessoas no país não fazerem o que é... aqui uma paisagem tão bonita. Revolta-me. Isto não devia ter acontecido. Pelo menos a segunda vez.”

“Depois vem um comandante lá de Lisboa dizer que está tudo bem, que está tudo controlado. Não veio cá ninguém, nenhum político. Estão a deixar esta parte do centro de Portugal abandonado”, atira. Patrocínia acrescenta: “É pobre e mais pobre ainda vai ficar.”

Se tivesse existido maior coordenação dos meios no terreno, talvez pudesse ter sido evitada a segunda leva das chamas, defende o casal. “Fumegava aqui todos os dias.” Ou seja, o fantasma de um reacendimento estava presente.

Patrocínia evoca um ditado antigo, que o pai lhe costumava dizer, para explicar a situação: “A água não se pode parar, mas o fogo pode ser atalhado.”


Nuno Gonçalves, autarca de Vale de Amoreira, aponta o dedo ao INCF. Queixa-se de falta de “ordenamento da floresta, um controle de cortes ou uma reorganização.” Foto: Maria Costa Lopes/RR
Nuno Gonçalves, autarca de Vale de Amoreira, aponta o dedo ao INCF. Queixa-se de falta de “ordenamento da floresta, um controle de cortes ou uma reorganização.” Foto: Maria Costa Lopes/RR

Meios além, chamas aqui

Quando as chamas voltaram a despertar em Vale de Amoreira, existiam meios de vigilância no terreno. Acontece que estavam longe dos pontos quentes. Por isso, no momento em que apareceram os primeiros bombeiros, o cenário era já “completamente devastador”.

“À ordem de quem [não sei], foram localizados para cerca de um quilómetro daqui”, diz Nuno Gonçalves, presidente da junta de freguesia da localidade, à Renascença, diante da Igreja de Nossa Senhora da Anunciação.

“Nós informamos que deviam estar no local, que era uma zona crítica, problemática. Mas depois os meios foram colocados longe.”

Nuno aponta também o dedo ao INCF. Queixa-se de falta de “ordenamento da floresta, um controle de cortes ou uma reorganização", que têm sido recusados. "Temos feito algum 'forcing' para que sejam criadas mais redes primárias. E isso não tem vindo a acontecer. Estamos esquecidos.”

O autarca, a cumprir o seu terceiro mandato, já viveu outros momentos de afogo com incêndios. Mas “nunca com esta proporção e dimensão, projeções de minuto a minuto”. As chamas destruíram alguns palheiros, arrumos e habitações em ruínas. Mas nenhuma casa de primeira habitação foi afetada.

“Se não fossem os populares, não sei o que a freguesia poderia agora ser”, diz Nuno. E logo completa: “Podia ser um desastre.”


Artigos Relacionados