Videmonte. Alcinda e Graça passaram cinco dias e cinco noites à espera de uma tragédia

Com medo de que o fogo chegasse a Videmonte, Alcinda e Graça estiveram de vigilância durante cinco dias seguidos. Foram dias de aflição e perplexidade perante a inação dos operacionais no terreno. “Eu chorava, chorava, rezava, rezava: não pode chegar para este lado, não pode chegar para este lado.”

06 set, 2022 - 07:00 • Fábio Monteiro , Maria Costa Lopes (vídeo)



Videmonte. Alcinda e Graça passaram cinco dias e cinco noites à espera de uma tragédia

Este é o sexto de nove capítulos do especial "Serra da Estrela, 29 mil hectares depois" sobre os incêndios que consumiram perto de 25% do Parque Natural da Serra da Estrela.


Durante cinco dias e cinco noites, enquanto um mar de chamas cavalgava na direção de Videmonte, freguesia da Guarda, Graça Santiago e Alcinda Correia não puderam fazer mais do que esperar. E rezar que o vento da Serra da Estrela levasse o incêndio noutro sentido. “Eu chorava, chorava, rezava, rezava: não pode chegar para este lado, não pode chegar para este lado”, recorda Graça.

Dona de um armazém de distribuição de bens alimentares, produtos agrícolas e rações para animais, situado numa das extremidades da povoação de Videmonte, junto a um campo de futebol de terra batida, Graça tinha todos os motivos para estar em pânico. “O fogo andava muito próximo”; existiam várias frentes ativas a devorar a zona. Se chegasse ao entreposto, que também tinha alguns depósitos de combustível, seria um “desastre”; quase de certeza, tudo ficaria reduzido a cinzas.

Para tentar evitar uma catástrofe, a empresária decidiu acampar no armazém e agarrar numas quantas mangueiras. Por solidariedade, Alcinda, pastora e queijeira também de Videmonte, juntou-se à vigília. O sustento das duas amigas está interligado, mas não foi isso que as uniu. Acima de tudo, foi uma questão de comunidade. “As povoações aqui são muito pequeninas, nós somos muito juntos”, conta Graça.

Na tarde de 11 de agosto, ainda o incêndio lavrava, a Renascença encontrou Graça e Alcinda juntas à porta do armazém. De olheiras profundas, estavam há três dias sem ir a casa. Ambas estavam também exasperadas, cansadas de pedir mais intervenção dos bombeiros – cerca de uma dezena de autotanques e jipes estavam estacionados numa das laterais do entreposto –, mas sem sucesso. Nenhuma compreendia porque é que os operacionais não estavam no terreno.

Alcinda já os havia ido questionar e ficara com a impressão de que eles tinham ordem para guardar o fogo da aldeia. “E tudo o que está fora da aldeia não importa. Esquecem-se é que quem mora na aldeia tem o trabalho do outro lado e dói-nos um bocadinho”, lembra a pastora.

“Quando os questionei no campo de futebol, disse-lhes que estava a chegar perto de uma floresta minha, de 33 hectares, e o comandante respondeu: ‘Só nos interessa salvar as pessoas. A floresta, se você cá ficar, volta a plantar outra.’ Isso dói. Uma pessoa anda 30 anos a plantar, tratar as suas coisas, para desaparecer.”

Ainda a entrevista estava a decorrer e um irmão de Graça ligou a contar que acabara de salvar das chamas um idoso, responsável por uma madeireira, e que não havia bombeiros no local. “A mata ardeu. A mata tinha à volta de um milhão de euros em pinho e ardeu tudo. E o homem estava tão desorientado, do fumo e do calor. Também não me estava a ver se visse isto a arder. A pessoa tem que se pôr um bocadinho na pele dos outros às vezes.”


Dona de um armazém de distribuição de bens alimentares, Graça tinha todos os motivos para estar em pânico. Foto: Maria Costa Lopes/RR
Dona de um armazém de distribuição de bens alimentares, Graça tinha todos os motivos para estar em pânico. Foto: Maria Costa Lopes/RR

A fome dos animais

As chamas não chegaram ao armazém de Graça. E os 33 hectares de floresta de Alcinda não chegaram a arder. Contra todas as expectativas, o vento da serra ajudou.

A 18 de agosto, já com o incêndio da Serra da Estrela dado como dominado, a Renascença visita Videmonte uma segunda vez e volta a encontrar Graça no seu armazém; desta feita, já a trabalhar. A empresária está mais calma, claro, mas a revolta por tudo o que aconteceu na última semana ainda não se dissipou.

Em grande parte, aponta responsabilidades à coordenação da Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil (ANEPC).

“Não conhecem o terreno, então deviam ser humildes: pediam ajuda aos populares. Estavam aqui 30 carros de bombeiros parados. E isto tudo à volta a arder.”

Para a pastora, “a Proteção Civil é que falhou imenso. Estavam aqui à porta os carros dos bombeiros e não trabalhavam. Não trabalhavam porque a Proteção Civil não autorizava que fossem para o mato.”

A casa de Alcinda não fica a mais de 500 metros do armazém de produtos agrícolas. Quando a Renascença chega, a pastora está a alimentar algumas das suas ovelhas bordaleiras mais jovens, que trouxe para um pequeno arrumo que tem colado à sua casa, por medo que as chamas regressem. “Os animais já estão a comer o que havia de ser para o inverno.”

Até agora e apesar de saber que o seu terreno florestal não ardeu, ainda não teve “coragem de o ir ver”. “Estou entre o verde e o queimado. Olho para este lado e ainda respiro. Olho para ali já não.” Somado a isto, a verdade para a pastora é que o fogo ainda não acabou. “Quem vive isto como nós vivemos, ficou com medo de ter o gado longe de casa.”

Alcinda antecipa que irá perder parte dos seus rendimentos. Afinal, os seus animais – cerca de 200 borregos e 13 vacas – estiveram expostos a níveis elevados de stress, o que fará com que aumente o número de abortos e diminua a produção de leite – do qual depende a queijaria. “Vai-se o meu ganha-pão.”

Os momentos que viveu na semana anterior ainda latejam na cabeça. A título de exemplo, a pastora conta a situação de uma sobrinha que ficou encurralada, sem comunicações numa quinta. Pediu ajuda a bombeiros e sapadores, mas nada.

Visivelmente angustiada, conta: “Ninguém nos levou lá. Tivemos de ir num carro particular, fomos barrados pela polícia. E arrancámos. Tivemos de dizer para a polícia: no fim do fogo, mande-nos a multa se quiser.”


Alcinda ainda passa as noites na cama a pensar “no que poderá acontecer” se as chamas voltarem. Foto: Maria Costa Lopes/RR
Alcinda ainda passa as noites na cama a pensar “no que poderá acontecer” se as chamas voltarem. Foto: Maria Costa Lopes/RR

Quando e como acaba

O incêndio na Serra da Estrela, no papel, já terminou. Carbonizou 29 mil hectares – algo de imaterial, contudo, foi também perdido. Depois de múltiplas ondas de pânico, dormir ainda não é fácil. Se há noite vê algum clarão, Graça fica de sentinela. “Se ouço uns carros, ainda venho à janela”, conta.

Alcinda ainda passa as noites na cama a pensar “no que poderá acontecer” se as chamas voltarem. O marido, conta, mudou a cama do quarto de sítio, de modo a estar virado para a janela. Assim, se houver novos focos ou reacendimentos nalguma colina nas proximidades, verá logo.

“Enquanto não vierem umas boas chuvas, que me acalme e que nos acalme a nós, acho que vai levar tempo.”


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