Colmeias. “De um lado o diabo a queimar, do outro os santos a proteger”

No espaço de poucas horas, cerca de três mil hectares transformaram-se em cinzas, na freguesia de Colmeias e Memória, em Leiria. Duas casas foram consumidas pelo fogo. Artur Santos, o presidente da junta, denuncia a falta de limpeza de terrenos. Já Duarte Ascensão, que faz trabalhos de manutenção florestal, queixa-se de ameaças de proprietários. Numa vasta mancha negra, um olival limpo sobreviveu.

26 jul, 2022 - 06:54 • Fábio Monteiro (texto) , Inês Rocha (vídeo e fotografia)



Um dos muitos veículos que arderam em Feijão, localidade que pertence à freguesia de Colmeias. Foto: Inês Rocha/RR
Um dos muitos veículos que arderam em Feijão, localidade que pertence à freguesia de Colmeias. Foto: Inês Rocha/RR

Este é o segundo de quatro capítulos do especial "No meio das cinzas", sobre os incêndios que fustigaram o distrito de Leiria, entre 7 e 18 de julho.


Nas costas de Artur Santos, o chão ainda fumega. Um tronco no meio de um eucaliptal, à distância de uns 20 metros, é roído pelas brasas. O presidente da Junta de Freguesia de Colmeias e Memória, concelho de Leiria, olha para trás, ajeita o chapéu de palha na cabeça, e constata: o risco de um novo incêndio não desapareceu.

Foi apenas há uma semana que as chamas varreram 60% da área da freguesia, com cerca de três mil hectares de mancha florestal a transformarem-se em cinzas no espaço de poucas horas; duas casas de primeira habitação arderam, assim como alguns anexos e veículos.

“Tenho a sensação que andava o diabo de um lado a tentar queimar-nos e andavam os santos de outro lado a tentar proteger-nos. E no fundo acho que os santos e os anjos protegeram-nos”, diz à Renascença.

Os estragos não terem sido maiores foi uma sorte. O território da freguesia, 47 povoações distribuídas por 46 quilómetros quadrados, alberga 42 pecuárias e quatro aviários de grande dimensão. “Tudo praticamente inserido em zonas florestais. Não temos propriamente um aglomerado urbano.”

Entre 7 e 18 de julho, com algumas das temperaturas mais altas de que há registo e o país em situação de contingência, as chamas consumiram perto de 43 mil hectares em Portugal. Cerca de 30% (12.500 hectares) sumiram-se em Leiria, o distrito mais afetado e que, recorde-se, em 2017 foi assolado pela tragédia de Pedrógão Grande, em que 66 pessoas perderam a vida.

Além de uma referência às temperaturas “excecionais”, Artur não encontra explicações para o fenómeno dos incêndios a nível nacional. No entanto, na localidade que lidera desde 2013, aponta um velho problema: a falta de limpeza dos terrenos.


 Artur Santos, presidente da Junta de freguesia de Colmeias e Memória. Foto: Inês Rocha/RR
Artur Santos, presidente da Junta de freguesia de Colmeias e Memória. Foto: Inês Rocha/RR

“Tenho muita gente que me costuma acusar de ser ditador. E eu costumo dizer que as leis são para cumprir. Portanto, não é uma questão de ditadura. A lei existe para o rico e para o pobre e tem de ser cumprida.”

Por lei, é obrigatória a limpeza dos terrenos, assim como a criação de uma faixa de segurança de 50 metros nas proximidades de aglomerados até nove habitações, e de 100 metros para aglomerados com 10 ou mais habitações. “As pessoas sabem e só têm que executar.” Todavia, há quem não o faça.

“Eu denunciei até algumas situações. Criei vários inimigos por os ter denunciado. E este ano não o fiz. E a verdade é que os terrenos não foram limpos. Como costumo dizer: ‘Aos meus filhos dou educação até aos 18 anos, a partir dos 18 anos eles têm que assumir as suas responsabilidades’”, atira o autarca.


Vista área da destruição provocada pelas chamas em Feijão. Foto: Inês Rocha/RR.
Vista área da destruição provocada pelas chamas em Feijão. Foto: Inês Rocha/RR.

Acudir a quem se pode

Só na freguesia de Colmeias, na semana de 11 a 17 de julho, arderam duas casas de primeira habitação. Uma, na localidade da Farraposa, propriedade de um emigrante, estava desocupada. “Se calhar a pessoa, que está fora do país, ainda nem tem conhecimento”, admite Artur Santos. Outra deixou um homem sem teto.

Da moradia que existiu, colada à estrada N350, em Feijão, sobram apenas os escombros, ladeados por carcaças de carros carbonizados. No local, uma equipa de três profissionais tenta restaurar a corrente elétrica. Fernando Silva, o proprietário, também está presente, mas prefere não falar.

“O que há para dizer?”, questiona, enquanto aponta para os destroços. “É ver isto tudo, o que sobra, e dizer a verdade.”

É nítida a revolta na voz. Para além da habitação, Fernando – que já foi emigrante na Suíça e agora está alojado na casa de uma irmã -, perdeu também parte da sua arte. Os vasos de madeira que vendia, esculpidos em troncos de árvores, foram-se.

Do outro lado da estrada, Duarte Ascensão remexe os destroços de um estaleiro de máquinas agrícolas, propriedade da empresa para a qual trabalha; tenta ver se há peças e equipamentos que ainda possam ser salvos. O homem de 52 anos tem as mãos e a roupa enfarruscadas, marcadas pelo negro do carvão. E ainda não tem palavras para descrever o que aconteceu.

“Foi um horror, pronto. Não há explicação. Não houve tempo para socorrer nada. Foi um horror mesmo. Não há explicação.”

Quem presenciou as chamas, tentou “acudir, ajudar os vizinhos”, mas “não deu tempo para nada”. Duarte ajudou um amigo que “ficou atrapalhado”, “intoxicado com o fumo”. “Ele foi para o hospital e eu fui socorrer a casa dele”, conta.

O homem acredita que o seu empregado não está em risco, que poderá continuar a cuidar da manutenção de propriedade florestal. Até porque, considera, é algo essencial para controlar e evitar tragédias geradas por incêndios. “Está tudo ao monte. Principalmente ao pé das casas, que as pessoas deviam deixar limpar. Mas alguns não deixam”, diz.


Duarte Ascensão confessa sentir "ódio" por quem ateou os fogos. Foto: Inês Rocha/RR
Duarte Ascensão confessa sentir "ódio" por quem ateou os fogos. Foto: Inês Rocha/RR

“Trabalhamos na limpeza de bermas e já fomos ameaçados de morte muita vez por pisar um bocadinho de terra do vizinho. Por cortar um bocadinho do mato no [terreno do] vizinho. Há pessoas que não são pessoas”, queixa-se ainda.

O cenário que circunscreve Duarte parece retirado de um filme a preto-e-branco. O verde desapareceu; os troncos dos eucaliptos, alguns sem copa, assemelham-se a fósforos queimados.

Com o rosto cerrado, confessa: “Sinto ódio. Isto não pode ser só um vidro que vai incendiar. Isto é mão criminosa. E não só para a floresta, mas para as pessoas, para os animais. A pessoa que está a fazer isto não imagina o que está a fazer, porque provoca muitas mortes.”


Limpar para salvar

Dois quilómetros adiante de Feijão, aparece Florentino Conceição. O reformado de 75 anos, que em tempos foi taxista em Paris, fala ao telemóvel, resguardado pela sombra de uma árvore; tem o carro estacionado junto à berma da estrada.

Florentino parou ali para ver o estado do seu olival – que não ardeu na última semana -, apesar de estar delimitado por uma mancha negra em seu redor. Na verdade, é como se alguém com uma régua e esquadro tivesse desenhado o sítio até onde podiam ou não ir as chamas que por ali passaram há poucos dias.

O porquê é visível a olho nu: o olival, com 15 anos, está limpo, sem presença de arbustos ou ervas de maior.


O oliival de Florentino Conceição, 75 anos, não ardeu. Foto: Inês Rocha/RR
O oliival de Florentino Conceição, 75 anos, não ardeu. Foto: Inês Rocha/RR

Na quarta-feira, 13 de julho, “faziam 42 graus, estava um tempo perigoso.” As chamas andaram de volta do terreno de Florentino tanto como da sua casa, que fica a menos de 500 metros. “Há muitos que se queixam que os bombeiros não terão aparecido. Mas têm muito trabalho. Mas ali apareceram. Vieram três vezes no mesmo dia.”

De acordo com o reformado, os incêndios são um reflexo da desertificação do país, do “abandono dos campos”. Se “antigamente era tudo cultivado”, hoje muito está “bravio”. Somado a isso, alguns proprietários mais velhos “não têm condições para pagar [a limpeza], fica caro”.

Os terrenos que rodeiam o olival de Florentino são do mesmo dono. Este verão, por alguma razão, limpou um deles apenas. Como que constatando uma banalidade, Florentino nota: “O [terreno limpo] de baixo não ardeu. Já no de cima todas as oliveiras arderam. Foram à vida.”


Reportagem. No meio das cinzas

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