Alvaiázere. Regresso a uma casa em cinzas

O fogo passou pela casa de José Paixão, deixando-a parcialmente destruída. Mas o idoso de 87 anos regressou. Cinco anos depois de Pedrógão Grande, a lembrança da tragédia continua viva no distrito de Leiria. Hugo Oliveira, vice-presidente da bancada do PSD, defende que o Estado deve apoiar famílias que perderam habitação e sustento.

26 jul, 2022 - 06:55 • Fábio Monteiro (texto) , Inês Rocha (vídeo e fotografia)



José Paixão, 87 anos, morador de Almoster. Foto: Inês Rocha/RR
José Paixão, 87 anos, morador de Almoster. Foto: Inês Rocha/RR

Reportagem. No meio das cinzas

Este é o terceiro de quatro capítulos do especial "No meio das cinzas", sobre os incêndios que fustigaram o distrito de Leiria, entre 7 e 18 de julho.


José Paixão perdeu quase tudo. E por muito pouco não perdeu a vida no incêndio que varreu a aldeia de Almoster, concelho de Alvaiázere, no passado dia 13 de julho. Tendo já enfrentado outros fogos no passado, o idoso de 87 anos julgou que, em caso de desespero, se poderia “refugiar dentro da barraca do furo da água, feita de cimento”, que tinha um depósito de 500 litros por cima da placa. Mas com as chamas “foi-se embora a água toda”.

Cinco dias depois, do depósito resta apenas uma gosma de plástico derretido. Todos os anexos ao redor da casa – onde está o esqueleto de um carro, de um trator e de muitas máquinas agrícolas – arderam. Da antiga cozinha rústica da habitação sobram as paredes, o telhado desabou; com os móveis reduzidos a cinzas, é possível distinguir os talheres – das poucas coisas que resistiram ao calor – no meio dos cacos de barro.

A sorte do idoso foi ser resgatado por um filho e um neto, que moram numa aldeia nas proximidades. “Estava a tirar água de um furo, para encher o poço de água. Pensei que orvalhava isto. Mas eles vieram e disseram: ‘Fuja, fuja, fuja. Fuja que você morre aqui queimado’. Assim que cheguei a casa dele, também já lá estavam a passar as chamas. Não queimou porque ele botou água em cima dela.”


Escombros da garagem onde José guardava o trator e máquinas agrícolas. Foto: Inês Rocha/RR
Escombros da garagem onde José guardava o trator e máquinas agrícolas. Foto: Inês Rocha/RR

De boina na cabeça e todo vestido de negro, José inspira e expira em esforço; desloca-se também com dificuldade. Está sem água no poço – o motor ardeu – e, apesar de ter corrente elétrica, não quer ainda ligar a luz em casa “até vir um eletricista”, não vá dar-se o azar de ocorrer um curto-circuito.

Outra pessoa teria pensado em não regressar, por causa da falta de condições. Pelo menos para já. Mas o reformado não. “Vim por causa do correio, para pagar as minhas contas mensais. E ver o prejuízo que tinha”, diz, como se todas as tarefas que enumera tivessem o mesmo grau de urgência.

Pragmático, José já não espera reerguer ou recuperar o que as chamas comeram. Há coisas que já não vão ser “consertadas”. Mesmo assim, confessa: “Precisava de alguma ajuda para o prejuízo que tenha. Se o Estado pudesse dar alguma ajuda a quem ficou mais sem nada, era bom.”


Foto: Inês Rocha/RR
Foto: Inês Rocha/RR
Foto: Inês Rocha/RR
Foto: Inês Rocha/RR


Ver voar o socorro

A situação do idoso de Almoster não é novidade para João Guerreiro. Desde que o incêndio, que consumiu quase 4.400 hectares no concelho de Alvaiázere, foi extinto, o presidente da Câmara eleito pelo PSD tem passado os dias a contabilizar os estragos: quatro casas de primeira habitação arderam e três ficaram parcialmente danificadas.

“Temos de arranjar solução para estas pessoas. Algumas ficaram sem nada ou pouco mais do que a roupa que vestiam”, diz o autarca à Renascença, adiantando que espera que o Governo avance com um programa de recuperação e apoios no curto prazo.

Na semana anterior, o município, “entalado” por duas frentes de fogo, uma vinda de Ansião, outra de Ourém, viu-se numa posição complicada.

“Eram muitas localidades em perigo. E os meios não chegavam a todo o lado. Mas felizmente, muito graças à população e a um espírito de entreajuda, não tivemos vítimas mortais, que foi a grande vitória desta nossa luta”, conta João Guerreiro.

O facto de tudo ter corrido pelo melhor, contudo, não faz o autarca esquecer-se do que correu mal. “Os meios [aéreos] que existiam não terão sido distribuídos de uma forma equitativa”, queixa-se. “Os fogos não têm limites administrativos.”

Em Pelmá, com a aldeia da Banhosa a arder, João viu aviões de combate a “atestar” no seu território e a “irem despejar ao concelho de Ourém”.

“Isso causou-nos alguma perplexidade. Custou-me estar a ver o meu concelho a arder, os nossos meios de abastecimento a serem utilizados, e a população ao lado a ser auxiliada.”


João Guerreiro defende que é preciso encontrar soluções para as famílias que ficaram sem teto. Foto: Inês Rocha/RR
João Guerreiro defende que é preciso encontrar soluções para as famílias que ficaram sem teto. Foto: Inês Rocha/RR

Estado tem de encontrar soluções

Do moinho da Aventeira, outra das localidades de Alvaiázere, situado a meio de uma colina esfolada pelas chamas, vê-se grande parte da área do concelho. A paisagem, salpicada de largas manchas pretas, estende-se por quilómetros e salta as fronteiras do distrito de Leiria. No horizonte, os olhos tocam já o território de Santarém.

Quando a Renascença visita a freguesia, a 18 de julho, dá-se a coincidência de três dos quatro deputados eleitos pelo PSD no distrito de Leiria nas últimas legislativas estarem também de passagem. A situação de contingência cessou há menos de 24 horas e os social-democratas vieram ver o “território fustigado” pelas chamas, explica Hugo Oliveira, deputado e vice-presidente da bancada do PSD.

O deputado repete a queixa do autarca de Alvaiázere, relativa à falta de meios aéreos, mas assume que a capacidade de resposta dos bombeiros e restantes autoridades foi melhor do que em 2017. Em muitos sítios, conta, “foram as pessoas que defenderam com garra e vontade as casas próprias e dos vizinhos”.

Em todo o caso, acredita que há culpas a atribuir pelo sucedido. Primeiro, à gestão florestal, em particular à empresa do estatal Florestgal. “A Florestgal devia ter a função da gestão da floresta, mas não faz nada de palpável. Dois ou três apontamentos, um protocolo. Mas aquilo que devia ser a sua função não se sente. E o resultado está à vista”, diz.

Segundo, ao próprio o Governo. Uma das prioridades do Executivo devia ser tornar a floresta “rentável”, de modo a incentivar os proprietários a tomar conta dos seus pedaços de terra e a cadastrá-los. “O facto de não se retirar o lucro da propriedade faz com que os próprios donos não tenham interesse em poder explorar o seu território. Há aqui muito trabalho a fazer”, atira.

Dados os 43 mil hectares ardidos em todo o país entre 7 e 18 de julho, 12.500 dos quais no distrito de Leiria, Hugo Oliveira defende que agora é essencial ajudar e apoiar os portugueses – como o idoso José Paixão – que viram as suas casas e terrenos transformarem-se em cinzas.

O vice-presidente da bancada do PSD toma esta posição quando ainda não passaram sete dias desde que António Costa afirmou que “o Estado não é segurador universal”, após ser questionado sobre os prejuízos causados pelos incêndios em eventos como o festival Super Bock Super Rock e a concentração motard de Faro, ambos deslocalizados pela situação de contingência. “A ideia de que o Estado tem de segurar qualquer eventualidade da vida, de pessoas ou empresas, é uma realidade que não existe”, disse o primeiro-ministro.

Tais declarações “foram infelizes”, diz Hugo Oliveira. No fim de contas, “o Estado tem a obrigação de, conjuntamente em parceria com os privados, garantir a segurança das pessoas. É necessário organizar, é preciso que as pessoas sintam essa segurança. E não sentem.”

“Devem ser encontradas soluções, como já foi feito no passado, de forma a garantir que as pessoas que tiveram prejuízos possam ser reembolsadas ou possam, de alguma forma, recuperar”, acrescenta.

Hugo Oliveira, vice-presidente da bancada do PSD. Foto: Inês Rocha/RR
Hugo Oliveira, vice-presidente da bancada do PSD. Foto: Inês Rocha/RR

O trauma que se repete

Falar de incêndios em Portugal, desde 2017, é falar de Pedrógão Grande. É rara a conversa em que esse episódio negro da história recente do país não seja evocado. Em parte, isso acontece porque estamos relativamente próximos dessa localidade, que também pertence ao distrito de Leiria.

Natural de Porto de Mós, Olga Silvestre confessa que o que viu, durante o périplo pelo distrito, a fez lembrar os incêndios de há cinco anos. “Nesta situação, felizmente, não houve vítimas mortais. Mas realmente houve um grande dano para a propriedade privada, o que nos faz lembrar a grande inércia do Governo no âmbito florestal”, diz a deputada do PSD.

O colega de bancada João Marques também faz a comparação. Em boa verdade, não tem como fugir-lhe. O deputado é natural da “terra mártir” de Pedrógão Grande, onde, durante muitos anos, foi autarca. “Não aprendemos com os erros, não aprendemos nada. Passaram cinco anos e o panorama é rigorosamente o mesmo.”

Se houve uma evolução “ao nível técnico e de meios”, o principal problema continua a montante: uma reforma florestal adiada há 20 anos, repete. “Continuamos com monocultura. Continuamos com os territórios abandonados. E naturalmente é pasto para o fogo, do melhor que pode haver.”

A memória da tragédia de 2017 parece destinada a voltar à superfície. Na prática, é um trauma que não se pode, não se consegue recalcar. Talvez nem se deva. Ou como diz João Marques: “São momentos que nos recordam outros fogos e que a mim recordam 2017. Momentos que nós devíamos estar a esquecer há muito tempo.”


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