Imigrantes em Odemira. Um ano depois, pouco ou nada mudou

Aquele que é o maior concelho do país em território lida há anos com o aumento do número de residentes estrangeiros. Em 2020, representavam já quase 40% da população. Vivem em casas sobrelotadas e trabalham horas a fio, de sol a sol, debaixo do calor das estufas para, ao final do mês, terem um baixo salário. Há um ano, o Governo decidiu avançar com medidas para a criação de habitação para os acomodar. Um ano depois, está praticamente tudo na mesma ou pior.

23 mai, 2022 - 11:00 • João Cunha (texto e fotos)



Túneis de estufas da Frutadivina Foto: João Cunha/RR
Túneis de estufas da Frutadivina Foto: João Cunha/RR

Há um ano, a pandemia escancarou a ferida. Portugal escandalizava-se com a falta de condições em que viviam milhares de trabalhadores imigrantes no sudoeste alentejano, apesar de a situação não ser nova para quem vive na região. Casas, armazéns e anexos estavam repletos de gente, a viver sem as mínimas condições de higiene, sobretudo devido à falta de habitação condigna.

O Governo interveio, criou legislação para acelerar a legalização das habitações temporárias instaladas pelos produtores de frutos vermelhos nas explorações e para instalar alojamento temporário e amovível que desse resposta às necessidades. Mas um ano depois, em matéria de habitação, está tudo na mesma.

Que o diga Harnek Singh, natural de uma aldeia no estado indiano do Punjab. Chegou há quase dois anos e, entretanto, conseguiu trazer a família para junto dele. Não tem sido fácil devido à falta de habitação.

"Um lugar para viver, sozinho, arranja-se", diz, encolhendo os ombros. "Agora, com família, é muito difícil", explica o trabalhador, enquanto aguarda pela abertura de uma loja no centro de Odemira onde espera poder imprimir uma foto da filha, para a inscrever na escola pública.

"Há um ano que tenho cá a minha família e, desde então, mudei de casa três vezes", revela Singh, que admite que chega a ganhar 1.400 euros por mês, graças a muitas horas extraordinárias que se dispõe a fazer. Sobretudo agora, que é mais difícil "suportar a família, porque está tudo mais caro" devido ao aumento do custo de vida.

Como tantos outros milhares de migrantes que vieram da India, Bangladesh, Nepal ou Tailândia, também entrou na rede de tráfico de pessoas para exploração laboral. Acontece, sobretudo, no recrutamento dos trabalhadores estrangeiros pelas empresas de trabalho temporário, muitas delas já lideradas por outros estrangeiros que, a troco de trabalho, prometem alojamento, transporte e salário. Só que a realidade quando chegam a Portugal é bem diferente.

"Todos pagam para chegar aqui, todos. E agora é mais caro", explica Singh. Mas quanto pagou este imigrante? Cinco mil Euros? Dez mil? Quinze? "Por aí...", responde.

Na costa alentejana, os imigrantes não falam das redes que se aproveitam da pobreza nos países de origem.


Harnek Sing, natural da Índia. Residente em Odemira há dois anos.
Harnek Sing, natural da Índia. Residente em Odemira há dois anos.

Habitação: muita procura, pouca oferta e escassas soluções

Logo à entrada de Vila Nova de Milfontes, as obras em curso na rua principal obrigam a um desvio. Poucos metros depois, oito imigrantes ocupam o interior de uma garagem, onde habitualmente não há cozinha ou casa de banho. Por isso, iluminados por uma lâmpada fluorescente cozinham num pequeno fogão de campismo.

Não muito longe, quase duas dezenas de imigrantes vivem num antigo restaurante da vila. A cozinha foi desativada e as salas foram transformadas em camaratas. A caminho de Alagoachos, nos arredores de Milfontes, outros 17 imigrantes vivem numa casa cuja construção não foi acabada. Por fora, a cor ainda é a do cimento e a cobertura - com lonas - ainda parece provisória.


Habitação de imigrantes em Vila Nova de Milfontes
Habitação de imigrantes em Vila Nova de Milfontes
Habitação de imigrantes em Alagoachos
Habitação de imigrantes em Alagoachos


"Mudou muito pouco, para não dizer que está tudo na mesma. O sistema continua o mesmo", diz Alberto Matos, presidente da Solidariedade Imigrante - Associação para a Defesa dos Direitos dos Imigrantes.

"As grandes empresas contratam durante o ano todo uma parte da mão de obra diretamente, que não chega para as alturas de pico. A população imigrante duplica, de oito mil para 16 mil, só nesta parte do litoral alentejano. Não havendo oferta habitacional decente."

E são os intermediários que os exploram no trabalho que lhes arranjam alojamento, em casas que já alugaram. "Casas sem o mínimo de condições", garante Alberto Matos, e numa altura em que a oferta é pouca e a procura é muita, o que faz disparar os preços.

"Se derem mil euros ao senhorio, é um bom negócio para muitos proprietários de casas abandonadas ou degradadas em vilas ou aldeias. E depois cobram 120 euros por cabeça, metendo lá 20 ou 30 imigrantes. Rapidamente fazem entre dois a quatro mil euros, obtendo margens de lucro absolutamente impensáveis só na habitação."

Para além das decisões tomadas pelo Governo para criar habitação em Odemira, Alberto Matos considera que são necessárias políticas "audazes" que visem o interior do concelho, onde casas abandonadas podiam ser recuperadas e utilizadas para alojamento destes imigrantes.

"Em Santa Clara, em Sabóia e no interior de todo o concelho era preciso investir a sério. E não ir para a solução fácil dos contentores, aprovada pelo Governo". Uma solução que mesmo fácil, ainda não teve o impacto esperado. Pois há meses que estes alojamentos temporários deveriam estar prontos.

Em junho do ano passado, o Conselho de Ministros aprovou uma resolução para agilizar a instalação de contentores para habitação nas explorações e para legalizar as habitações existentes. A resolução prevê que os pedidos sejam feitos à autarquia, que tem 15 dias para decidir. Se não decidir nesse prazo, as empresas podem instalar os contentores sem que tenham as condições necessárias.

Mas esse prazo não foi respeitado pela própria autarquia. "As próprias entidades públicas inviabilizaram o cumprimento desse prazo. Neste momento, para as instalações que foram submetidas e aprovadas, temos até ao final deste ano para as ter concluídas", assegura Luis Mesquita Dias, presidente da direção da Associação dos Horticultores, Fruticultores e Floricultores dos Concelhos de Odemira e Aljezur (AHSA).


Luis Mesquita Dias, presidente da Direção da Associação dos Horticultores, Fruticultores e Floricultores dos Concelhos de Odemira e Aljezur.
Luis Mesquita Dias, presidente da Direção da Associação dos Horticultores, Fruticultores e Floricultores dos Concelhos de Odemira e Aljezur.

Não sendo cumprido o prazo de 15 dias para a autarquia tomar uma decisão, as empresas esperaram sete meses para que as entidades públicas envolvidas na aprovação se pronunciassem. Mas, apesar da espera, investiram para criar outras condições de alojamento.

"O grande bolo - que até ao final do próximo ano, será de 12 a 15 milhões de euros - é suportado pelas empresas. Sendo que uma empresa que invista, por um exemplo, um milhão, ela recebe uma comparticipação do PDR sobre 40% de um máximo de metade do que investiu."

Contas feitas, num milhão de investimento, 800 mil serão suportados pelas empresas e 200 mil pelo Estado.

Até ao final do mês de maio, haverá 160 camas em IATAs - Instalações de Alojamento Temporário Amovível. Um nome pomposo para contentores. Ainda este ano, espera-se a criação de mais duas mil camas. E no próximo ano, mais mil.

"Não chega", admite Luis Mesquita Dias, sublinhando que "o mercado não está parado, nem a Câmara nem o Ministério das Infraestruturas. Estão a ser feitas diligências nomeadamente na revisão do PDM para que seja facilitada a construção rápida de mais casas nos núcleos urbanos".


Hélder Guerreiro, presidente da Câmara de Odemira
Hélder Guerreiro, presidente da Câmara de Odemira

Hélder Guerreiro, autarca de Odemira, começa por se justificar. "Os atrasos no licenciamento ou de construção de alojamentos temporários tiveram na sua origem falhas na apresentação da documentação necessária" por parte das empresas.

As eleições autárquicas que resultaram na troca de presidência do município também não terão sido alheias à demora.

Seja como for, o autarca assegura que o Plano Diretor Municipal já está a ser alterado para dar força à Estratégia Local de Habitação. E que, até ao final do ano, haverá mais decisões. Por exemplo, vai ser disponibilizado mais património da autarquia, já construído. E está em curso o processo de legalização da área de fracionamento ilegal da propriedade rustica a norte de Vila Nova de Milfontes.

"Uma área que há mais de 50 anos tem tido problemas de construção ilegal. Já se conseguiu que as autoridades todas aprovassem uma proposta de plano de urbanização de cerca de duas mil casas ilegais."

Neste processo da Estratégia Local de Habitação, "também há um protocolo com o IHRU - o Instituto de Habitação e Reabilitação Urbana, que prevê que para além da recuperação das casas existentes, possam ser construídos 117 fogos".

Para Hélder Guerreiro, a questão da habitação será sempre um problema se não for constantemente acompanhado.

"Temos de fazer sucessivamente um trabalho para garantir que o que aconteceu", em matéria de habitação, não volta a acontecer. "Não está tudo resolvido, e vamos ter aqui ainda algum tempo para resolver o problema na totalidade do concelho".


A água - ou a falta dela

É um bem de todos. Só que nem todos têm acesso a ela. A gestão da água no Aproveitamento Hidroagrícola do Mira, que abrange os concelhos de Odemira e de Aljezur, foi alvo de uma queixa do Movimento Juntos pelo Sudoeste à Inspeção-Geral da Agricultura, do Mar, do Ambiente e do Ordenamento do Território, pelo modo como está a decorrer o cumprimento dos contratos de concessão dos recursos hídricos.

Alega o movimento que não estão ser cumpridos aspetos como a manutenção do caudal ecológico do rio Mira, e que não há reporte do tipo de culturas existentes no Perímetro de Rega do Mira.

Manuel Amaro Figueira, presidente da direção da Associação de Beneficiários do Mira, refuta qualquer incumprimento. O caudal ecológico é respeitado e na página na internet da Associação está o reporte de todas as culturas do Perímetro de Rega.

O único problema à mesmo a escassez de água na Barragem de Santa Clara, a principal reserva do Mira, que está a 40% da sua capacidade. "O que existe de disponibilidade de água em Santa Clara, neste momento, deve ter até ao final de junho. Mas estamos a desenvolver esforços para conseguir construir uma nova estação elevatória para ir mais abaixo na captação", revela Manuel Amaro Figueira.

Mas falta ainda autorização da Agência Portuguesa do Ambiente para captar água abaixo da cota 109.70, até à qual podem retirar água. Um bem tão escasso que tornou difícil, nos últimos anos, dirigir a associação.

Um dos momentos mais complicados foi a recente exclusão de pequenos produtores do acesso à água. "Para nós, há beneficiários e não beneficiários", explica o presidente da Associação de Beneficiários do Mira.

"Quem paga as despesas e as tarifas são os beneficiários, e é delicado gerir isto de uma forma diferente da que estamos a fazer. E há que levar em conta que a maior parte dos queixosos não são agricultores. É gente que têm água do município que não quer usar, por ser mais cara".

Mas estão em curso negociações com a autarquia com vista à resolução do problema. "Isto é uma matéria da responsabilidade do município. Quem tem de fornecer água a essas pessoas é a rede municipal. A nossa é uma rede com caraterísticas diferentes."


Túneis de estufas da empresa Frutadivina
Túneis de estufas da empresa Frutadivina



Zona de embalagem de framboesas na empresa Frutadivina
Zona de embalagem de framboesas na empresa Frutadivina


Esta empresa produz três mil toneladas para exportação
Esta empresa produz três mil toneladas para exportação

Apesar da escassez de água, há venda de quotas de água entre beneficiários, como admite Luis Mesquita Dias, presidente da Direção da AHSA. "Acho que era desejável que esse mercado de direitos de água fosse regulamentado e existisse de uma forma transparente e clara, como acontece noutros países. Aqui, infelizmente, não é permitida ou sequer está regulamentada essa troca de direitos. Ela acontece quando efetivamente temos um proprietário ao lado de outro, um não precisa de agua, o outro precisa e chegam a acordo entre si."

A Associação de Beneficiários do Mira "imagina" que isso aconteça. Manuel Amaro Figueira diz que a cedência, neste caso, a venda da água é feita pela cedência das áreas. A quem critica, deixa um pedido: "Que arranje uma alternativa melhor".

"Aparece aqui o Sr. Joaquim das Iscas a dizer que quer alugar a terra que tem ao senhor Manuel das Iscas. O que é que podemos fazer? Quer alugar aluga"...

A associação exige, nestes casos, um documento "a dizer que Sr. Joaquim cedeu aquela área ao Sr. Manuel e a partir desse momento, há uma outra pessoa a ter direito aquela área". Tanto o perímetro de Rega do Mira como o seu alcance - ou seja, a terra que permite cultivar - têm de ser revistos, na opinião de Sara Serrão, do Movimento Juntos pelo Sudoeste.

"Não é sustentável pensar que, com o decréscimo de precipitação consolidada dos últimos anos, se pode continuar com este grau de cultura intensiva. E todas as explorações", em pleno Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina, "pelo seu efeito cumulativo, deviam ser sujeitas a impacto ambiental, e não são."


Barragem de Santa Clara, em Odemira. Foto: Associação de Beneficiários do Mira
Barragem de Santa Clara, em Odemira. Foto: Associação de Beneficiários do Mira
Manuel Amaro, presidente da ABM. Foto: Associação de Beneficiários do Mira
Manuel Amaro, presidente da ABM. Foto: Associação de Beneficiários do Mira


"O Estado abandonou o Alentejo"

Por isso, Sara Serrão não hesita: "O Estado abandonou o Alentejo. Deveria acautelar a questão da imigração e integração social, como a questão dos efeitos ambientais, do uso da água, da compatibilização entre atividades económicas e um Parque Natural." Mas não o faz.

"O Estado produz regulação para tudo, mas para a agricultura intensiva menos. O que faz com que, do dia para a noite, surjam explorações de agricultura intensiva sem que se entenda, num cenário de escassez progressiva e grave de água, continuem a proliferar novas explorações", lamenta Sara Serrão.

A água, ou a falta dela, é talvez o único fator que pode vir a travar esta cultura intensiva. "A continuação deste modelo de agricultura á absolutamente insustentável, ainda para mais porque, segundo dizem, pode triplicar", teme Alberto Matos, da Associação para a Defesa dos Direitos dos Imigrantes.

"Espero que isto não rebente pelo lado pior para todos, que é a falta de água. Mas vamos a caminho disso".

Também o autarca de Odemira espera uma boa gestão do uso da água. "Há um cenário de escassez e os estudos apontam para uma diminuição da chegada de água á barragem, todos os anos. Sabendo disso, a saída de água também tem de ser reduzida", espera Hélder Guerreiro, para quem o custo da água e a rentabilidade económica que dá às empresas obrigaria a que estas investissem no uso circular da água.


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