​O que é a operação "Dissuasão da Agressão" que ameaça relançar a guerra civil na Síria?

Ataque dos rebeldes islâmicos contra o exército de Bashar al-Assad estava a ser preparado há um ano, admite a oposição síria no estrangeiro e só foi adiada por causa dos conflitos contra Israel, em Gaza e no Líbano.

02 dez, 2024 - 22:56 • Miguel Marques Ribeiro



Soldados da Hayat Tahrir al-Sham, um grupo islamita radical, e outras milícias da oposição, tomaram de assalto Alepo, no nordeste da Síria. Foto: Mohammed Al-rifai/EPA
Soldados da Hayat Tahrir al-Sham, um grupo islamita radical, e outras milícias da oposição, tomaram de assalto Alepo, no nordeste da Síria. Foto: Mohammed Al-rifai/EPA

A guerra civil na Síria nunca conheceu uma conclusão formal, mas a relativa acalmia dos últimos anos deu a entender que o conflito poderia ter chegado a uma situação de congelamento, sem avanços nem recuos de qualquer uma das partes.

O ataque surpreendente dos últimos dias às posições do exército do ditador Bashar al-Assad no nordeste da Síria, por forças islamitas da oposição, relembrou o ocidente de que o conflito persiste e veio, definitivamente, contrariar essa expectativa.


A verificar-se o reacender, em larga escala, das hostilidades, a Síria fica de novo à beira do abismo. O desfecho do avanço rebelde é imprevisível. Pode tanto representar o início do fim do regime ditatorial de Bashar al-Assad, como o primeiro passo para o ressurgimento de um regime ultra ortodoxo semelhante ao califado que o Estado Islâmico ali proclamou em 2014.

O que se passou nos últimos dias?

Soldados da Hayat Tahrir al-Sham, um grupo islamita radical com um passado ligado à ISIS e à Al-Qaeda, e outros grupos da oposição ao regime do presidente de Bashar al-Assad, tomaram de assalto a maior parte de Aleppo, cidade situada no nordeste Síria e a segunda maior do país.

Relatos difundidos na imprensa internacional indicam que as forças rebeldes estão a avançar rapidamente desde que a Operação Dissuasão da Agressão teve início, a 27 de novembro, beneficiando do recuo das tropas do exército regular sírio.


As forças rebeldes controlam a maior parte de Alepo, incluindo o aeroporto da segunda maior cidade Síria. Foto: Bilal Al Hammoud/EPA
As forças rebeldes controlam a maior parte de Alepo, incluindo o aeroporto da segunda maior cidade Síria. Foto: Bilal Al Hammoud/EPA

As milícias rebeldes terão mesmo conseguido os maiores ganhos territoriais desde 2016, atingindo as imediações de Hamã, uma outra localidade situada a mais de 100 km de Alepo.

A reação do governo de Assad não se fez esperar e, com o apoio dos aliados russas, diversas posições rebeldes foram bombardeadas. Um balanço feito pelo Observatório Sírio dos Direitos Humanos indica que o retomar das hostilidades custou até agora a vida a 214 rebeldes, 137 membros das forças pró-regime de Bashar al-Assad e 61 civis, dos quais 17 mortos esta segunda-feira.

Quem dirige a Operação Dissuasão da Agressão (ODA)?

Segundo a Aljazeera, a operação militar está a ser coordenada por um grupo saído do Al-Fatah al-Mubin, o antigo comando de operações militares que agregou as fações islâmicas e nacionalistas que participaram na guerra civil síria contra o governo de Bashar al-Assad.


Este grupo é controlado pelo Governo de Salvação Nacional, uma autoridade estabelecida em 2017, em Idlib, no nordeste do país.

Quem é o Hayat Tahir al-Sham?

De todas as forças que participam na ODA, a maior é a Hayat Tahir al-Sham (HTS) ou “Organização para a Libertação do Levante”, um grupo islâmico que integra a lista das organizações terroristas do Conselho de Segurança das Nações Unidas e do Departamento de Estado Americano.

Deverá ter cerca de 30 mil guerrilheiros e administra de facto algumas partes do nordeste da Síria, como Idlib. O acesso a áreas de produção de petróleo é uma importante fonte de rendimentos da organização, que controla a passagem de Bab al-Hawa, para a Turquia.

As suas origens remontam primeiro ao ISIS, que criou o Estado Islâmico, e depois à Al-Qaeda, grupo responsável pelos ataques do 11 de setembro e do qual se desfiliou em 2017, mantendo, no entanto, a ideologia salafista e jihadista, de pendor ultraconservador e ortodoxo.


Nessa altura tinha o nome de Jabhat al-Nusra (grupo criado em 2012) e que, reunindo outras fações jiadistas, renasceu em 2017 com a designação atual.

Qual é a situação política na Síria?

O presidente Assad controla cerca de 70% do país, em grande parte graças ao envolvimento ativo da Rússia no conflito desde 2015. Putin domina, de facto, parte do território, sobretudo no sul do país.

Os outros 30% estão divididos por diversos grupos.

Há uma extensa zona controlada pelos curdos, na parte noroeste. Este grupo étnico luta há anos pela formação de um Estado próprio, que reúna áreas atualmente pertencentes à Síria, Irão e Iraque.

Uma outra faixa autónoma é ocupada no norte, junto à fronteira com a Turquia, por rebeldes sírios, com o apoio do regime turco.


O Hayat Tahrir al-Sham é um grupo islamita radical com um passado ligado à ISIS e à Al-Qaeda. Foto: Mohammed Al-rifai/EPA
O Hayat Tahrir al-Sham é um grupo islamita radical com um passado ligado à ISIS e à Al-Qaeda. Foto: Mohammed Al-rifai/EPA
No seu auge, o Estado Islâmico chegou a controlar um terço da Síria. Foto: Mohammed Al-rifai/EPA
No seu auge, o Estado Islâmico chegou a controlar um terço da Síria. Foto: Mohammed Al-rifai/EPA


Ainda nessa fronteira com a Turquia subsiste um último reduto de grupos armados islâmicos, que controla Idlib, e de onde terá partido a operação militar em curso.

No sul, junto à fronteira com a Jordânia e o Iraque, há uma zona administrada pelos rebeldes ligados à oposição síria reconhecida internacionalmente, cuja presença também se faz sentir no norte do país, em aliança com o HTS.

No centro do país, há bolsas do Estado Islâmico que se mantém ativas.

Porquê agora?

A preparação para a operação militar terá começado há um ano, mas foi suspensa devido ao início da guerra Israel-Hamas.


“Há cerca de um ano, os rebeldes começaram a mobilização e o treino de uma forma mais séria”, afirmou à Reuters o presidente da Coligação Nacional da Revolução Síria e Forças da Oposição, Hadi Al Bahra, que representa a oposição Síria reconhecida internacionalmente.

As guerras em Gaza e depois no Líbano obrigaram as milícias a adiarem os seus planos. “Sentiram que não era correto existirem combates no Líbano ao mesmo tempo que eles estavam a combater na Síria”, disse o responsável desde o seu escritório em Istambul.

Essa posição manteve-se até à assinatura de um cessar-fogo entre Israel e o Hezbollah. No próprio dia em que teve início o acordo, os rebeldes lançaram a operação de reconquista de Alepo.

Como se estão a posicionar os países vizinhos?

A Rússia está a apoiar militarmente o regime de Assad. Aviões de guerra russos bombardearam esta segunda-feira as posições rebeldes no norte do país, em conjunto com a aviação síria.


 Aviões de guerra russos bombardearam esta segunda-feira as posições rebeldes no norte do país, em conjunto com a aviação síria. Foto: Mohammed Al Rifai/EPA
Aviões de guerra russos bombardearam esta segunda-feira as posições rebeldes no norte do país, em conjunto com a aviação síria. Foto: Mohammed Al Rifai/EPA

O porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov classificou a situação em Alepo de “ataque à soberania síria” e disse estar “a favor de que as autoridades sírias restaurem a ordem constitucional o mais rapidamente possível”.

O regime iraniano também mostrou solidariedade com o país vizinho. Massoud Pezeshkian acusou os EUA e outros países ocidentais de tentar “redesenhar o mapa” da região.

A Turquia, por seu turno, defendeu que era um erro explicar os eventos recentes com uma eventual “interferência estrangeira”, negando assim que esteja por detrás da operação.


Estados Unidos, Reino Unido, França e Alemanha, numa declaração conjunta, pediram uma “solução política” para o conflito, tal como previsto numa resolução do Conselho de Segurança de 2015, e apelaram a uma “desescalada do conflito”.

Começou começou a guerra na Síria?

A guerra civil na Síria teve início em 2011, no contexto da chamada “Primavera Árabe”, quando manifestações populares pró-democracia invadiram as ruas de diversos países árabes.


Manifestações anti-turcas em Teerão, associam a operação militar na Síria a uma ingerência turca no país vizinho. Foto: Abedin Taherkenareh/EPA
Manifestações anti-turcas em Teerão, associam a operação militar na Síria a uma ingerência turca no país vizinho. Foto: Abedin Taherkenareh/EPA
Turcos recusam ter participado nas hostilidades que tiveram início no nordeste da Síria. Foto: Abedin Taherkenareh/EPA
Turcos recusam ter participado nas hostilidades que tiveram início no nordeste da Síria. Foto: Abedin Taherkenareh/EPA


O ditador Bashar al-Assad reprimiu fortemente os protestos pacíficos no seu país, dando início à formação de grupos de oposição armada.

Desde então, guerra civil provocou mais de meio milhão de mortos e pelo menos seis milhões de deslocados, muitos dos quais arriscaram a vida para chegar à Europa nos anos seguintes.

Em breve, rebeldes curdos e extremistas islâmicos juntaram-se aos combates estilhaçando o país em pedaços. No seu auge, em 2014, o Estado Islâmico chegou a controlar um terço da Síria e 40% do Iraque.

Depois de anos de conflito, Bashar al-Assad conseguiu estabilizar a situação a seu favor, com a ajuda militar do Irão e da Rússia, mas sem nunca ter sido capaz de eliminar, em definitivo, as forças rebeldes, como ficou comprovado com a operação lançada nos últimos dias.


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