“Se escolhi morar neste lugar, isso torna-me um vilão?” Como a família de Aya fugiu do Líbano para Portugal

Aterraram em São Félix da Marinha com a vida empacotada em malas de 15 quilos. Sem saber o que esperar do futuro, uma família brasileira e libanesa conta à Renascença como os ataques israelitas a obrigaram a fugir. “Não é o presidente que vai morrer nesta guerra, é a mãe que carrega o bebé.”

12 nov, 2024 - 08:00 • Lara Castro



“Se escolhi morar neste lugar, isso torna-me um vilão?” Como a família de Aya fugiu do Líbano para Portugal

Aya Kadoura ainda não tem palavras para descrever a sensação de abandonar tudo o que tinha. Vai tentando agarrar-se à esperança de regressar ao Líbano e de encontrar tudo bem. “Mas, bem no fundo do seu peito, da sua cabeça, tem aquele medo do ‘talvez ela [a casa] não esteja aqui depois’, ‘talvez nada disto esteja aqui depois’, ‘talvez isso tudo vire poeira e eu perca tudo isso para sempre’.”

Em Portugal há mais de um mês, a estudante de design teme que a vida que construiu nos últimos oito anos desapareça “com um simples apertar de botão e uma catastrófica explosão em chamas”. E não compreende a facilidade com que os ataques de Israel atingem civis. “Se escolhi morar neste lugar, isso me torna um vilão nessa história?”

Os ataques israelitas no Líbano fizeram mais de 3 mil mortos desde que a tensão entre Israel e o Hezbollah se intensificou, nos últimos 13 meses, de acordo com o Ministério da Saúde libanês. Entre as vítimas há mais de 580 mulheres e de 180 crianças. A UNICEF aponta para pelo menos uma criança morta por dia, no último mês.

Aos 23 anos, Aya lamenta sentir-se parte de um padrão repetitivo, pouco piedoso com danos colaterais: “é o que se lê nos livros de história, mas você pensa que não vai acontecer em 2024.”

Quando a jovem e a família aterraram na base aérea de Figo Maduro, a 4 de outubro, traziam a sensação de estar “a cometer um ato de traição” por terem fugido naquele voo de repatriamento que retirou 41 cidadãos do Líbano. A decisão de partir tinha sido tomada cinco dias antes, quando um bombardeamento caiu mesmo ao lado da casa onde viviam. “Foi a gota de água.”

Conseguiram vir para Portugal porque Aya tem raízes portuguesas, da parte da avó materna. Nascida em 2001 no norte do Brasil, em Manaus, a jovem é filha de um libanês e de uma brasileira. Em 2016, quando tinha 15 anos, os pais queriam dar “uma vida mais tranquila” à família, e por isso mudaram-se para o Líbano.

Explosão dos pagers foi “um massacre, um crime hediondo”

No Líbano, Aya vivia com a mãe, dois irmãos e os avós maternos em Joub Jannine, uma pequena cidade do interior do país, capital do distrito ocidental de Bekaa. Uma zona rural “onde todo o mundo se conhecia” e onde viviam mais familiares dos Kadoura.


Desde o verão que ouviam os caças israelitas passar e causar um barulho que fazia “as janelas e as portas estremecerem”. Aya conta que o som que ouvia era “como se tivessem jogado uma bomba, mas ela não existisse”.

“Dá medo, mas depois quando se acostuma você já sabe o que esperar.” Os libaneses chamam-lhes “jidar sawt” — uma “bomba sónica” —, que se tornou uma ocorrência diária. Foi mesmo criada uma página web para avaliar a força do “jidar sawt”. “É uma técnica de terror psicológico, eles querem te assustar, querem te ver com medo”

Sem coragem para sair de casa, a família de Aya sentia-se “em prisão domiciliária”.

A rotina começou a mudar aquando da explosão de centenas de pagers pertencentes a membros do Hezbollah, que causaram a morte a dezenas de civis. “Foi um massacre, um crime hediondo”, descreve a mãe de Aya, Fadileh Waked.

Os aparelhos explodiam "em todos os lugares": em mercearias, em hospitais, dentro de carros. Foi o ponto de viragem para o medo de ir à padaria e até ao mercado. “Vai que uma dessas pessoas era um alvo e explodisse do meu lado”, pensava a mulher.

“Não é o presidente que vai morrer nesta guerra, não é o ministro, ou um embaixador, é a mãe que carrega o bébé, o pai que saiu para o trabalho, o irmão que foi para escola. Somos ‘nós’ que perdemos com essas guerras, não ‘eles’.”

Aya admite que não tinha “um conhecimento muito forte sobre o conflito até este ter escalado”. Pode não saber aprofundar todas as camadas históricas das sucessivas guerras locais, mas é rápida a responder quando questionada sobre a sua posição em relação à atual guerra entre Israel e Hamas: “Sim, dá para escolher um lado e o lado é ‘pró-humanidade’.”

Acredita que o conflito no Médio Oriente é um “complô político” com consequências sobretudo para os civis. “Não é o presidente que vai morrer nesta guerra, não é o ministro, ou um embaixador, é a mãe que carrega o bébé, o pai que saiu para o trabalho, o irmão que foi para escola. Somos ‘nós’ que perdemos com essas guerras, não ‘eles’.


Aya Kadoura tem 23 anos e está no terceiro ano da licenciatura em Design. Foto: Lara Castro/RR
Aya Kadoura tem 23 anos e está no terceiro ano da licenciatura em Design. Foto: Lara Castro/RR

Um limbo entre “começar uma vida aqui” ou esperar “e ver o que acontece”

Em Portugal, a família desfez as malas em São Félix da Marinha, onde um familiar os acolheu. Sentada na cama que agora partilha com o irmão de oito anos e a irmã de 14, Aya recua a 29 de Setembro de 2024.

Conta que foi a primeira vez na história “de todas as guerras que houve” que a cidade de Joub Jannin foi atingida. Até essa data viviam “num falso senso de segurança”. A duas horas da capital, e a uma hora do Sul do Líbano, achavam “estar longe de tudo”.

O ataque aconteceu dois dias depois da morte do líder do Hezbollah, Sayyed Hassan Nasrallah, quando Israel prometia intensificar a investida no Líbano e expandir o confronto aos aliados do Irão.

“Depois desse dia a segurança foi quebrada”. Aya diz ter sido um “ataque mirado”. “Eles [exército israelita] tinham um alvo, e acertaram no local exato onde ele estava”. Morreram três pessoas. Uma delas — amiga de um familiar dos Kadoura — tinha 26 anos. Era filho do alvo e tinha ido visitar os pais. Foi a primeira vez que Aya soube da morte de alguém da cidade “que não tinha nada a ver com nada”.

“Depois do barulho não sabíamos se o teto ia cair em cima da gente”, conta Aya. A mãe percebeu então que "era altura de sair dali".

Nesse domingo, Aya ia visitar as primas, tinham “combinado comer sushi”. Quando estava a acabar de se arranjar para sair de casa, ouviu um barulho. Achava que era o som de um “jidar sawt”, mas de seguida ouviu um estrondo “ainda maior”.

“Venham aqui!”, gritou a mãe. Juntaram-se no quarto abraçados. “Depois do barulho não sabíamos se o teto ia cair em cima da gente”. Assim que perceberam que era seguro sair de casa, foram para a rua e ouviram os vizinhos dizer que a explosão tinha sido na rua de cima.

Deixaram as crianças no quintal e subiram até ao telhado, viram o fumo “e foi surreal, foi logo ali.” Seguiram-se as chamadas de preocupação constantes e uma sensação “meio estranha ter que explicar para os seus amigos que você está viva.”


A decisão de partir foi tomada quando um bombardeamento caiu mesmo ao lado da casa onde viviam. “Foi a gota de água.”

“Foi desesperante”, descreve a mãe, Fadileh Waked. Durante cinco horas ficou “vagueando pela casa, sem saber o que ia fazer, quem era, o que era para ser feito, o que não era para ser feito.” Depois percebeu que “era altura de sair dali”.

Semanas depois desse ataque, a família recebe a Renascença na casa onde agora vive, a 17 km do Porto. É quase fim de tarde e a mesa está cheia. Há bacalhau com natas ou à Brás, a alimentar conversas que vão oscilando — por vezes bruscamente — entre temas. Fala-se de cultura libanesa e portuguesa, de religião e volta e meia há uma ou outra piada sobre bombas. A irmã do meio de Aya, Lina, responde revoltada que “isso não é assunto para brincar”.

Com apenas 14 anos, Lina estava animada por começar o 9º ano. Tinha feito um grupo de amigos com os quais se identificava e seria o primeiro ano escolar com eles, mas nem teve tempo de se despedir antes de sair do Líbano.

Fadileh conta que, no dia em que saíram do país, a filha do meio queria que todas as pessoas de quem gostava partissem com eles. “Mãe, queria tanto ter um avião e colocar todas as pessoas que eu amo dentro e levá-las embora daqui para saber que elas vão estar salvas”, recorda-se de a ouvir dizer.


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Deixar a cidade que os abraçou “foi uma coisa forçada”, “como arrancar uma planta da terra”, suspira Aya. “Demora para criar raízes de novo, demora para ela se habituar de novo.” Para trás ficaram os amigos que “para já estão bem e ainda estão vivos”.

No último dia no Líbano, antes do voo, as primas de Aya foram visitá-las. Não foi a primeira vez que saiu do país, mas foi a primeira vez que chorou ao despedir-se. Não sabia se seria o último abraço, ou a última vez que as via. “Torço para não ser, mas tenho esse medo, no fundo do peito, que talvez seja.”

A incerteza desta nova vida deixa a família “num limbo”: “a gente não sabe se começa uma vida aqui (...) ou espera para ver o que acontece”, confessam.

Faltavam seis meses para se mudarem para uma casa nova, que estavam há oito anos a construir. “A gente estava escolhendo a cor das paredes”, conta a mãe, que já tinha comprado o uniforme da escola dos filhos e os materiais escolares.


Aya tinha há oito anos a vida estabelecida no Líbano, onde fez amigos “de todos os lugares”.
Aya tinha há oito anos a vida estabelecida no Líbano, onde fez amigos “de todos os lugares”.

Uma vida inteira numa mala de 15 kg

Acabaram por ter de fugir, com a vida empacotada em malas de 15 kg para cada um. “Mesmo assim considero-me uma sortuda”, afirma Aya. No avião que trouxe os portugueses que pediram para sair do Líbano, a jovem de 23 anos diz ter visto quem chegasse com sacos de papel ou sacos de compras “porque era o que tinham naquele momento.”

Na mala houve espaço para roupa, mas também pequenas lembranças e objetos com os quais tinham “uma ligação de afeto”. Incluindo um bilhete da tour de Taylor Swift que Lina insistiu em trazer consigo. Já Aya trouxe os primeiros álbuns de K-pop. “Eu trouxe comigo porque pensei ‘eu vou precisar de um apoio emocional, então vai ser esse’”, conta.

“É uma sensação bizarra porque você quer levar tudo consigo, porque aquilo é a sua vida, o que você conquistou, e ao mesmo tempo nada parece ser suficiente para levar com você”, explica a estudante de design.

“Eu não quero morrer. Eu tenho 23 anos, ainda nem me formei, não viajei pelo mundo como queria, não abracei as pessoas que amo o suficiente, não consegui o meu primeiro trabalho, o meu primeiro salário, tenho tanta coisa para conquistar... Não estou pronta, nem quero largar isto.”

Para Aya, a vida no Médio Oriente era sinónimo de abertura e diversidade, onde fez amigos “de todos os lugares”. “O pessoal acha que o Líbano é um lugar árabe, mas a quantidade de estrangeiros que tem no Líbano é fantástica”, assegura.

Com mais de 5 milhões de habitantes em 2020, 67,8% da população libanesa é muçulmana, 32,4% cristã, 4,5% são drusos e os restantes são judeus, baha’is, budistas e hindus, segundo dados da Central Intelligence Agency (CIA).

“Há esse pote cultural maravilhoso lá, e não é só de pessoas ao redor do mundo, é também religioso”, assegura a jovem, que descreve o Líbano como o “berço que vai te acolher, os braços de uma mãe que vai te abraçar.”

“Inshallah”: a palavra que ampara o medo

Nos oito anos que viveu no Líbano, “só agora” é que Aya está a “desenrolar no árabe”, que diz ser “uma língua complicada, mas belíssima”.

Mas há uma palavra que a família repete mais do que todas por estes dias: “Inshallah”, que em português significa “se Deus quiser”.

“Inshallah vamos ficar todos seguros, inshallah as nossas casas vão continuar ali quando voltar”, afirma a jovem.


Aya descreve o Líbano como o “berço que vai te acolher, os braços de uma mãe que vai te abraçar.”
Aya descreve o Líbano como o “berço que vai te acolher, os braços de uma mãe que vai te abraçar.”

Para a mãe, “a fé é tudo o que resta” e Deus o único que os pode proteger neste momento. “Com quem mais a gente pode contar?”, questiona Fadileh Waked. Mesmo Aya, que diz não ser religiosa, confessa que se agarrou às orações para não entrar num “buraco de desesperança”.

“Eu não quero morrer”, afirma, como quem faz um apelo. “Eu tenho 23 anos, ainda nem me formei, não viajei pelo mundo como queria, não abracei as pessoas que amo o suficiente, não consegui o meu primeiro trabalho, o meu primeiro salário, tenho tanta coisa para conquistar... Não estou pronta, nem quero largar isto.”

Com o futuro nas mãos de “bombas sem olhos”, para já Aya e a família planeiam continuar em Portugal. Procuram agora uma casa para viver, Lina já começou a frequentar a escola e o irmão mais novo aguarda uma vaga. A começar o último ano da licenciatura, Aya continua os estudos através de aulas online.


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