“Houve um abandono político desta zona.” Como o kibutz Be’eri recupera do trauma de 7 de outubro

Um ano depois dos ataques do Hamas terem feito mais de 100 mortos e levado 30 reféns do kibutz Be’eri, 70% dos sobreviventes ainda não conseguem voltar a casa. Comunidades atacadas e familiares de reféns não se associam a cerimónia evocativa oficial e exigem responsabilização do executivo de Netanyahu.

06 out, 2024 - 22:41 • Catarina Santos com Reuters



“Houve um abandono político desta zona.” Como o Kibutz Be’eri recupera do trauma de 7 de outubro

Um homem de 50 anos entra na sala de casa e vira à esquerda, em direção ao que costumava ser um abrigo. O espaço em volta está completamente queimado e a porta entreaberta está crivada de balas, sobretudo na parte inferior.

Avida Bachar recua um ano e recorda como tentou travar os atacantes naquele sábado de manhã, com a ajuda do filho de 15 anos. “Eu segurava o puxador junto à parede e o [meu filho] Carmel segurava do outro lado". Dentro da pequena divisão escondiam-se os dois há horas, juntamente com a filha Hadar, na altura com 13 anos, e a mulher, Dana, de 48 anos.

Há marcas vermelhas a escorrer no que resta da superfície branca da porta. "Este sangue é do Carmel. Ele estava a segurar e as balas atingiram-lhe os dois braços.” Avida foi atingido num braço e numa perna.

A família Bachar percebeu pouco depois que a casa estava a arder e o fumo foi entrando por baixo da porta. Os abrigos estavam preparados para ataques de rockets, não para fogo e tiros diretos. O ar foi ficando irrespirável e foram forçados a abrir a janela. Os infiltrados romperam as persianas e atiraram granadas para o interior, disparando sobre eles.


Avida Bachar perdeu uma perna nos ataques de 7 de outubro de 2023, no kibutz Be
Avida Bachar perdeu uma perna nos ataques de 7 de outubro de 2023, no kibutz Be'eri. A mulher e o filho foram mortos por militantes do Hamas. Foto: Amir Cohen/Reuters

Carmel acabaria por morrer, tal como a mãe. Sobreviveu Hadar e o pai, que ficou com uma perna amputada.

Com cerca de mil residentes, Be’eri foi a comunidade israelita que perdeu mais pessoas nos ataques de 7 de outubro. Foram mortos mais de 100 moradores e perto de 30 foram feitos reféns. Cerca de 150 casas ficaram destruídas.

O kibutz fica a 4,5 km da Faixa de Gaza e foi devastado por dezenas de membros e aliados do Hamas naquela manhã. “Não foi apenas um ataque terrorista. Foram 12 horas de terror. Pessoas a ir de casa em casa a aterrorizar, a matar e a fazer coisas horríveis”, recorda Iftar Celniker, gestor comunitário de Be’eri.

Às primeiras horas da manhã, milhares de rockets foram disparados de Gaza em direção a Israel. O Hamas abriu mais de 100 buracos na vedação que divide os dois territórios e perto de 6 mil homens irromperam por solo israelita. Atacaram 17 comunidades e o recinto onde decorria um festival de música. Morreram quase 1200 pessoas, mais de 4800 ficaram feridas e 251 foram levadas para Gaza. Foi o maior ataque de sempre em território israelita.

A resposta do governo de Benjamin Netanyahu iniciou-se de imediato e, no espaço de um ano, devastou grande parte do território de Gaza, matando mais de 40 mil palestinianos e forçando a maioria da população a consecutivas deslocações, de “área segura” em “área segura”, numa incursão sem fim à vista.


Há um ano, "não houve estado, mas houve cidadãos"

Um ano depois, quem viveu o ataque do Hamas na pele está bem longe de digerir o trauma. “Há ainda um caminho a fazer e cada dia festivo nos faz recordar [os famíliares que morreram], cada evento nos faz recordar. Cada fotografia que aparece no Google Photos às 7h da manhã nos faz recordar. A saudade é muito forte, muito forte”, conta Avida Bachar à Reuters.

Uma pergunta foi repetida incessantemente por muitos residentes há um ano – e reproduzida numa reportagem do New York Times que reconstitui o ataque a Be’eri: “Onde está o exército?”

“Sim, houve o que se chama um ‘abandono político’ desta zona", denuncia Avida Bachar, agricultor que sempre viveu em Be’eri. Mas a negligência do Estado israelita perante as ameaças de Gaza não se verificou apenas há um ano, considera, foi-se prolongando “durante 23 anos, porque os rockets do Hamas começaram em 2001. E culminou a 7 de outubro.”


Famílias de reféns protestaram na Begin Gate, em Telavive, este sábado. Foto: Yael Gadot
Famílias de reféns protestaram na Begin Gate, em Telavive, este sábado. Foto: Yael Gadot
Comunidades saíram à rua em todo o país para exigir a libertação dos reféns, depois de "365 dias terríveis". Foto: Aviv Atlas
Comunidades saíram à rua em todo o país para exigir a libertação dos reféns, depois de "365 dias terríveis". Foto: Aviv Atlas


Vários outros kibutzim vizinhos partilham da opinião de Avida e recusaram mesmo participar na cerimónia oficial organizada pelo governo israelita para assinalar o aniversário dos ataques, esta segunda-feira. “Em vez de um memorial de Estado, pedimos uma comissão de inquérito estatal”, afirmavam em agosto os representantes do kibutz Nirim.

Acusam o primeiro-ministro, Benjamin Netanyahu, de nunca ter visitado vários dos kibutzim mais afetados – locais com tendência de voto historicamente mais liberal – e de se esconder atrás de cerimónias e discursos pré-gravados para evitar ouvir críticas. O tributo organizado pelo executivo foi gravado em Ofakim, que perdeu 40 habitantes a 7 de outubro – e que foi um bastião do partido de Netanyahu nas últimas eleições.

Esta cerimónia, que terá transmissão televisiva esta segunda-feira, gerou polémica e dividiu a sociedade israelita, levando mesmo a que um grupo de familiares das vítimas e de reféns organizasse um evento alternativo para assinalar a data, num parque de Telavive. Desde que a iniciativa foi lançada, milhares de bilhetes foram reservados, mas a multidão não deverá ultrapassar as mil pessoas, uma vez que as forças armadas têm em vigor um limite para eventos públicos em grande parte do país, por causa do conflito crescente com o Hezbollah no Líbano.

“Este memorial vai contar a história do que vivemos no dia 7. Que não houve exército, mas houve soldados. Que não houve estado, mas houve cidadãos. E creio que o memorial do governo não vai referir os erros que aconteceram”, afirmou à Reuters Jonathan Shimriz, um dos organizadores do evento público.

Shimriz é natural do kibutz Kfar Aza, também violentamente atacado. O seu irmão foi raptado pelo Hamas e morto por fogo israelita, por engano, quando tentava fugir.

Netanyahu, no poder há 15 anos, tem enfrentado duras críticas por não assumir a responsabilidade pelos falhanços militares e dos serviços de informação que permitiram que acontecesse os ataques de há um ano. O governo recusou-se a abrir um inquérito, defendendo que as investigações só devem acontecer depois de a guerra terminar.


Primeiro-ministro Benjamin Netanyahu numa conferência de imprensa para jornalistas estrangeiros em Jerusalém, em setembro. Foto: Abir Sultan/EPA
Primeiro-ministro Benjamin Netanyahu numa conferência de imprensa para jornalistas estrangeiros em Jerusalém, em setembro. Foto: Abir Sultan/EPA

Comunidades e famílias de reféns acusam também o governo israelita de não ter colocado a libertação de reféns no topo das prioridades, no último ano. Há ainda cerca de 100 pessoas em cativeiro. O executivo acredita que 64 estejam vivas.

Um total de 117 regressaram vivas a Israel (109 foram libertadas no âmbito de uma troca de prisioneiros firmada em novembro e oito foram resgatados pelas Forças de Defesa de Israel) e 37 corpos foram recuperados.

Nem todos conseguem regressar. “Vai levar tempo a reconstruir a confiança”

Avida Bachar peneira as colheitas enquanto fala com os jornalistas da agência Reuters. Regressou ao kibutz e está determinado em reconstruir o seu modo de vida. A tipografia, um dos sustentos da comunidade, reabriu e os campos voltaram a ser cultivados. "Percebemos que o nosso modo de vida e o nosso trabalho faz parte da nossa reabilitação e estamos a seguir em frente com toda a força”, assegura o agricultor.

“Não temos outra escolha. Continuar a vida e reconstruir tudo do zero”, acrescenta. “E vamos fazê-lo. Be’eri vai ser reconstruído de novo. Vamos destruir 150 casas e construir novas.”

Mas nem todos os residentes estão capazes de dar esse passo. A filha de Aviva está a viver com uma tia a 40 km, em Hatzerim. De acordo com o gestor comunitário Iftah Celniker, cerca de 70% dos antigos habitantes mudaram-se para ali desde o início do ano escolar, em setembro, e instalaram-se em casas temporárias.

“Vai levar tempo, não só a reconstruir Be’eri, mas a reconstruir a confiança de que é um lugar seguro”, antecipa o responsável.

Soldados israelitas no kibutz de Be
Soldados israelitas no kibutz de Be'eri, dias depois do ataque. Foto: Reuters

Vista aérea de casas destruídas no ataque do Hamas de 7 de outubro de 2023, no kibutz Be
Vista aérea de casas destruídas no ataque do Hamas de 7 de outubro de 2023, no kibutz Be'eri. Imagem: Reuters
Em setembro deste ano, várias obras de reconstrução decorriam no kibutz Be
Em setembro deste ano, várias obras de reconstrução decorriam no kibutz Be'eri. Imagem: Reuters


O tempo não se mede em calendários comuns desde que aconteceram os ataques. Emily Hand tinha oito anos quando foi levada de Be’eri pelo Hamas. Foi libertada durante a trégua de novembro, oito semanas depois, mas quando o pai lhe perguntou quanto tempo achava que tinha estado em Gaza, ela respondeu “um ano”.

Thomas Hand, irlandês e israelita, vive agora com a filha em Hatzerim e não tenciona regressar tão cedo. “Vamos estar aqui pelo menos mais dois anos, até conseguirmos sequer imaginar regressar a Be’eri”, assegura, em entrevista à Reuters.

As memórias daquele sábado e as reviravoltas que se seguiram vão demorar a encontrar repouso. Emily tinha ficado a dormir em casa de uma amiga naquela noite. Durante o ataque, Thomas não conseguiu chegar perto dela.

Quando, dias depois, os líderes da comunidade lhe disseram que a filha também tinha sido encontrada entre os mortos, respondeu com um sonoro “Yes!”.

Naquele contexto, a morte parecia-lhe uma benção. “Foi puro alívio. Não foi felicidade, foi simplesmente alívio”, recorda agora. Tinha passado aqueles dias atormentado a imaginar o horror que os reféns teriam de suportar. “Não queria isso para ela”.

Quando o exército israelita lhe disse, 30 dias depois, que afinal era “altamente provável" que Emily estivesse viva e em Gaza, Thomas experimentou “a sensação horrível de saber que ela estava lá”. Explicava na altura à CNN que o pior era “o desconhecido” e “a espera”.


O momento em que Thomas Hand se reencontra com a filha. Emily esteve oito semanas em cativeiro em Gaza. Foto: Israel Defense Forces via REUTERS
O momento em que Thomas Hand se reencontra com a filha. Emily esteve oito semanas em cativeiro em Gaza. Foto: Israel Defense Forces via REUTERS

Quando Emily regressou – mais magra e pálida, já com nove anos feitos em cativeiro –, o encontro com o pai também foi inesperado. “Ela presumiu que eu estivesse morto. Estava surpreendida quando me viu na entrega de reféns. Ela pensava que todos os habitantes do kibutz seriam mortos, todas as casas destruídas”.

Onze meses depois, Thomas está a dobrar um pijama de menina e a ajeitar um edredom numa cama cheia de peluches. “Ela nunca faz a cama dela”, queixa-se, entre sorrisos. “Tenho de fazer com que aprenda a fazer isto.”

Emily tem feito terapia para lidar com o trauma, frequenta a escola em Hatzerim e fez novos amigos. O pai acredita que, “de certa forma, ela está mais forte do que antes”, mas as marcas psicológicas ainda se manifestam. “Ela consegue estar no exterior sozinha, já vai para a escola sozinha, mas dentro de casa não. Se eu não estiver em casa, ela não entra.

Depois de meses entre alojamentos temporários, carregando apenas alguns bens e o cão da família, Thomas quer estacionar em Hatzerim por uns tempos. “Só em dois ou três anos poderemos calcular se será seguro levar os nossos filhos de volta, para viver perto dos nossos vizinhos árabes”, acredita.

Se vier a equacionar um regresso a Be’eri, antecipa três fatores que vão condicionar essa decisão: “quem continuará no governo; quem continuará à frente do exército; e quão forte estará o Hamas”.

Para já, diz, não vê “nenhum caminho para a paz”.

Carmel Gat já não regressa, mas o irmão quer lutar por Be'eri

Vai ser preciso mais do que os tijolos das casas recuperadas para reagrupar a comunidade. Dez dos residentes do kibutz estão ainda reféns. Alguns morreram e os corpos foram recuperados. Como o de Carmel Gat, de 40 anos, encontrada morta num túnel do Hamas no sul de Gaza com cinco outros reféns, em agosto.

Um cartaz com o rosto de Carmel está pendurado à porta do que resta da casa dos pais. Em cima do fogão há ainda cebolas e alhos. Or Gat, o irmão mais novo, vasculha entre livros e objetos perdidos no entulho, acumulado numa das divisões, entre paredes esburacadas.


Manifestantes empunham um cartaz estilizado com o rosto de Carmel Gat, em Jerusalém. Milhares de pessoas saíram às ruas por todo o país no início de setembro, a exigir ao governo um acordo que assegurasse a libertação dos reféns, depois de os corpos de Carmel Gat e cinco outros reféns terem sido resgatados em Gaza. Foto: SOPA Images via Reuters
Manifestantes empunham um cartaz estilizado com o rosto de Carmel Gat, em Jerusalém. Milhares de pessoas saíram às ruas por todo o país no início de setembro, a exigir ao governo um acordo que assegurasse a libertação dos reféns, depois de os corpos de Carmel Gat e cinco outros reféns terem sido resgatados em Gaza. Foto: SOPA Images via Reuters

No dia do ataque, Or estava numa despedida de solteiro em Ashdod, a 50 km. Carmel e o irmão do meio, Alon, estavam em casa dos pais, onde se deveriam reunir todos nesse fim-de-semana. Quando se apercebeu do que estava a acontecer no kibutz, Or tentou ligar à família e ninguém atendeu. Chegou a pensar que seria o único sobrevivente daquela casa.

“Quando os terroristas chegaram, perto das 10h30, o meu pai conseguiu trancar-se na casa-de-banho do quarto. Foi resgatado na noite de sábado. Mas ouviu e viu, da janela de trás, toda a sua família a ser levada”, conta Or Gat.

A mãe morreu e a irmã, que vivia em Telavive e estava de visita em casa dos pais, foi levada para Gaza, juntamente com a cunhada (libertada em novembro).

Numa entrevista ao jornal israelita Haaretz em janeiro, quando a irmã ainda estava viva, Or questionava a atuação das forças de segurança naquele dia. “Se não tinham percebido a magnitude do que estava a acontecer às 8h da manhã, o que aconteceu às 10h? E às 12h? Assim que foram mortas pessoas, deviam ter sido tomadas medias para prevenir mais mortes. É inaceitável que os que deveriam lidar com o choque estivessem em choque. Não há desculpa. Não é suposto que um médico desmaie quando vê sangue”, afirmou, revoltado.


A morte da irmã não afastou Or Gat do movimento de solidariedade que se formou entre todos os que têm entes queridos em cativeiro. A 20 de setembro, integrou uma comitiva de familiares de reféns recebidos por António Guterres nas Nações Unidas, em Nova Iorque, e mostrou ao secretário-geral um vídeo do túnel onde o corpo da irmã foi encontrado. Guterres garantiu-lhes que a situação dos reféns continua no topo das suas prioridades e garantiu que os referiria nos seus discursos e nas reuniões com os líderes mundiais.

Apesar de tudo o que a família passou, Or continua a ver Be’eri como o seu lugar. “É a minha casa, é onde quero viver, é onde quero criar os meus filhos, com confiança, com segurança e é onde planeio estar para o resto da minha vida”, assegura.

Como o vizinho Aviva Bachar, quer fazê-lo agora, “quando a situação é mais difícil”, quer fazer parte da reconstrução. "Quero voltar e tentar melhorá-la, para que eu possa viver aqui e pela minha comunidade.”

Aviva assume a mesma postura. “Só nos resta seguir em frente. Não temos outra escolha. Continuar a vida e reconstruir tudo do zero. E vamos fazê-lo.”


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