"Se não fizermos isto, não há floresta". Expedição indígena procura estabelecer fronteiras no seu território

Cinquenta indígenas do povo Munduruku abrem caminho pela floresta da Amazónia para marcar as fronteiras das suas terras e concluir uma tarefa que o governo brasileiro ainda não fez.

09 ago, 2024 - 00:19 • Lara Castro com Reuters



"Se não fizermos isto, não há floresta". Expedição indígena procura estabelecer fronteiras no seu território

Seis metros de largura, é o tamanho do caminho que 50 indígenas do povo Munduruk abrem com catanas pela vegetação densa e muitas vezes escurecida pelo dossel da floresta - camadas sobrepostas de ramos e folhas das árvores. A cada quilómetro, os Munduruku param e afixam nos troncos das árvores placas, onde se pode ler: "Governo Federal, Território Sawre Muybu, Terra Protegida".

É um ato silencioso, mas desafiante, de um povo que luta há décadas para exigir ao governo brasileiro o reconhecimento das suas terras - uma medida que garantiria proteção legal contra lenhadores, mineiros e até contra projetos de infraestrutura do próprio governo.


Um indígena Munduruku carrega um sinal de marcação durante uma expedição do povo Munduruku para marcar a fronteira terrestre de Sawre Muybu. Foto: Adriano Machado/REUTERS
Um indígena Munduruku carrega um sinal de marcação durante uma expedição do povo Munduruku para marcar a fronteira terrestre de Sawre Muybu. Foto: Adriano Machado/REUTERS
Antonio Akay Munduruku carrega para afixar nos troncos das árvores. Foto: Adriano Machado/REUTERS
Antonio Akay Munduruku carrega para afixar nos troncos das árvores. Foto: Adriano Machado/REUTERS


"Isto não é o nosso trabalho. É obrigação do governo demarcar as terras indígenas, mas eles não fazem isso", disse Juarez Saw - chefe da Sawre Muybu, uma aldeia Munduruku - depois dos seus homens afixarem a 20.ª e última placa da caminhada de oito dias, no mês passado.

A Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), que é responsável pelos assuntos indígenas no Brasil, diz estar com pouco pessoal, mas a trabalhar para estabelecer os limites das terras - um processo interrompido durante o último governo de Jair Bolsonaro.


Edmar Munduruku carrega o filho durante a expedição. Foto: Adriano Machado/REUTERS
Edmar Munduruku carrega o filho durante a expedição. Foto: Adriano Machado/REUTERS
Indígenas Munduruku na floresta amazónica durante a expedição. Foto: Adriano Machado/REUTERS
Indígenas Munduruku na floresta amazónica durante a expedição. Foto: Adriano Machado/REUTERS


Durante a expedição, os homens Munduruku são acompanhados por mulheres e crianças da aldeia. No acampamento comunitário na floresta, as camas de rede balançam entre as árvores e as mulheres preparam a comida: arroz e farinha de mandioca. Quando os caçadores não conseguem encontrar um porco selvagem para o jantar, comem macacos. Enquanto cozinham, os jovens Munduruku brincam no rio.

A última vez que os Munduruku desbravaram as fronteiras do território foi há uma década, tempo suficiente para que a maior floresta tropical do mundo apagasse essas marcas com o crescimento da vegetação.

"Há 25 anos que lutamos para proteger esta terra. Continuamos a limpar as fronteiras para as manter vivas", disse o chefe. "Se não o fizermos, lenhadores e mineiros vão invadir".

 Dimas Boro, indígena Munduruku, e a sua família. Foto: Adriano Machado/REUTERS
Dimas Boro, indígena Munduruku, e a sua família. Foto: Adriano Machado/REUTERS

Indígenas Munduruku preparam farinha de mandioca na aldeia Koro Muybu.Foto: Adriano Machado/REUTERS
Indígenas Munduruku preparam farinha de mandioca na aldeia Koro Muybu.Foto: Adriano Machado/REUTERS
Crianças Munduruku nadam num afluente do rio Tapajós durante a expedição. Foto:Adriano Machado/REUTERS
Crianças Munduruku nadam num afluente do rio Tapajós durante a expedição. Foto:Adriano Machado/REUTERS


Uma criança Munduruku nada num afluente do rio Tapajós. Foto: Adriano Machado/REUTERS
Uma criança Munduruku nada num afluente do rio Tapajós. Foto: Adriano Machado/REUTERS
Graciete Waru recupera numa rede depois de ter sido picada por um escorpião durante uma expedição. Foto: Adriano Machado/REUTERS
Graciete Waru recupera numa rede depois de ter sido picada por um escorpião durante uma expedição. Foto: Adriano Machado/REUTERS


O território Sawre Muybu representa cerca de 1.780 km2 da floresta e está localizado nas margens do rio Tapajós, um afluente do rio Amazonas muitas vezes chamado de “rio intocado” por ser um dos únicos grandes rios do Brasil sem uma barragem hidroelétrica.

Esse território tem sido surpreendido por invasões crescentes de lenhadores ilegais e mineiros que poluem os rios e envenenam os peixes que alimentam os Munduruku com níveis de mercúrio elevados que ameaçam a vida do povo.

A luta dos Munduruku para defender o seu território também faz parte da batalha para impedir que a Amazónia atinja um ponto sem retorno, de acordo com ambientalistas O conhecimento, as práticas e o estatuto legal dos povos indígenas do Brasil torna-os nos guardiões ideais da floresta: a chave para desacelerar o aquecimento global, garantem ambientalistas.

A marcação formal de um território indígena é um passo fundamental para garantir as proteções garantidas na Constituição brasileira. Lula da Silva, Presidente do Brasil, assumiu o cargo no ano passado e prometeu retomar o reconhecimento das terras indígenas, processo que o seu antecessor Jair Bolsonaro interrompeu.


Juquita Akay, indígena Munduruku. Foto: Adriano Machado/REUTERS
Juquita Akay, indígena Munduruku. Foto: Adriano Machado/REUTERS
Um motor usado na exploração mineira ilegal abandonado próximo da terra indígena durante expedição. Foto: Adriano Machado/REUTERS
Um motor usado na exploração mineira ilegal abandonado próximo da terra indígena durante expedição. Foto: Adriano Machado/REUTERS


Uma visão de drone mostra uma área de exploração de minerais clandestina ao lado de uma terra indígena. Foto: Adriano Machado/REUTERS
Uma visão de drone mostra uma área de exploração de minerais clandestina ao lado de uma terra indígena. Foto: Adriano Machado/REUTERS

A CAÇA DA ANACONDA

Para delinear as suas terras a expedição dos Munduruku começou por navegar lentamente com cinco longos barcos a motor entre a densa vegetação de rios sinuosos.

Um dia, a expedição encontrou uma anaconda no rio e preparou-se para matar a cobra, cuja gordura é usada pelos Munduruku por ter propriedades anti-inflamatórias. A cobra estava tão inchada por ter engolido a presa recente que não conseguiram tirá-la da água.


Os indígenas encontraram uma grande anaconda num afluente do rio Tapajós. Foto: Adriano Machado/REUTERS
Os indígenas encontraram uma grande anaconda num afluente do rio Tapajós. Foto: Adriano Machado/REUTERS
Indígenas Munduruku no rio Tapajós durante expedição que marca a fronteira da Terra Indígena Sawre Muybu. Foto: Adriano Machado/REUTERS
Indígenas Munduruku no rio Tapajós durante expedição que marca a fronteira da Terra Indígena Sawre Muybu. Foto: Adriano Machado/REUTERS


Indígenas Munduruku assam porcos selvagens, que caçaram durante expedição. Foto: Adriano Machado/REUTERS
Indígenas Munduruku assam porcos selvagens, que caçaram durante expedição. Foto: Adriano Machado/REUTERS

Quando no dia seguinte os caçadores voltaram com um macaco-prego, um rapaz Munduruku correu para salvar dois macacos bebés que se agarravam à mãe. Ele ficou encarregue deles e carregou-os durante o resto da caminhada de 36 quilómetros.

Durante a expedição, os Munduruku, que estavam armados com velhas espingardas de caça, também se depararam com acampamentos ilegais de minas de ouro - encontros que foram tensos mas pacíficos.


Boro Bijmepu está a segurar um macaco-prego bebé na floresta amazónica Foto: Adriano Machado/REUTERS
Boro Bijmepu está a segurar um macaco-prego bebé na floresta amazónica Foto: Adriano Machado/REUTERS
O rapaz Munduruku salvou dois macacos bebés. Foto: Adriano Machado/REUTERS
O rapaz Munduruku salvou dois macacos bebés. Foto: Adriano Machado/REUTERS


Desde que assumiu o poder, há mais de um ano e meio, Lula da Silva já reconheceu dez novos territórios. Ainda assim, há 62 terras indígenas à espera de uma assinatura e mais de 200 com fronteiras definidas, mas desprotegidas pelo governo, o que as torna vulneráveis a invasões.

Embora os defensores dos povos indígenas queiram que o governo acelere o processo, as promessas de Lula da Silva têm sofrido reações contrárias de um congresso conservador, de grupos agrícolas e de alguns aliados políticos, que dizem ser necessárias mais estradas, caminhos de ferro e centrais elétricas na Amazónia para gerar empregos.

O esforço dos Munduruku para delinear a terra dos Sawre Muybu tem como base o plano de construção de uma barragem hidroelétrica que pode vir a inundar grande parte do território. O projeto de 8.000 MW foi arquivado em 2016 pelo Ibama por não ter consultado os Munduruku ou não ter feito estudos de impacto adequados.

Em maio, a recém-privatizada Eletrobras pediu a atualização desses estudos, segundo a agência reguladora Aneel. A Eletrobras não respondeu nenhum pedido de comentário.

"Isso mostra que eles não desistiram do projeto", disse Suely Araújo, que arquivou o plano quando era presidente do Ibama.


Os indígenas Munduruku pintam-se uns aos outros com tinta de urucum, como parte de uma prática cultural. Foto: Adriano Machado/REUTERS
Os indígenas Munduruku pintam-se uns aos outros com tinta de urucum, como parte de uma prática cultural. Foto: Adriano Machado/REUTERS

Robson Paes sentado na floresta da Amazónia durante a expedição. Foto: Adriano Machado/REUTERS
Robson Paes sentado na floresta da Amazónia durante a expedição. Foto: Adriano Machado/REUTERS
Daniela Waru sentada numa rede a durante expedição do povo Munduruku. Foto: Adriano Machado/REUTERS
Daniela Waru sentada numa rede a durante expedição do povo Munduruku. Foto: Adriano Machado/REUTERS


O território Sawre Muybu também enfrenta uma ameaça indireta de planos do governo para construir uma ferrovia de 1.000 km para exportar grão de Mato Grosso para um porto no Tapajós, onde barcaças transferem as colheitas para navios maiores.

Os líderes indígenas temem que o projeto ferroviário, apoiado por agricultores e multinacionais de cereais para reduzir os custos de transporte, possa facilitar o acesso de lenhadores e mineiros às suas terras.


Uma criança Munduruku nada num afluente do rio Tapajós. Foto: Adriano Machado/REUTERS
Uma criança Munduruku nada num afluente do rio Tapajós. Foto: Adriano Machado/REUTERS
Uma criança indígena Munduruku olha para a aldeia Karo Muybu durante uma expedição. Foto: Adriano Machado/REUTERS
Uma criança indígena Munduruku olha para a aldeia Karo Muybu durante uma expedição. Foto: Adriano Machado/REUTERS


Deka Munduruku pinta o rosto de Mondria Munduruku como parte de uma prática cultural em que os Munduruku se pintam para a guerra e defendem o seu território. Foto: Adriano Machado/REUTERS
Deka Munduruku pinta o rosto de Mondria Munduruku como parte de uma prática cultural em que os Munduruku se pintam para a guerra e defendem o seu território. Foto: Adriano Machado/REUTERS

Mondria Munduruku indígena Munduruku durante expedição. Foto: Adriano Machado/REUTERS
Mondria Munduruku indígena Munduruku durante expedição. Foto: Adriano Machado/REUTERS
Ivanice Parawa, é chefe da aldeia Karo Muybu, a nadar antes da expedição do povo Munduruku. Foto: Rodrigo Machado/REUTERS
Ivanice Parawa, é chefe da aldeia Karo Muybu, a nadar antes da expedição do povo Munduruku. Foto: Rodrigo Machado/REUTERS


Hoje em dia, cerca de 13 mil indígenas pertencem ao povo Munduruku que vive há milhares de anos ao longo do rio Tapajós. Dos 11 territórios onde habitam apenas dois têm pleno reconhecimento e proteção legal do governo.

Em 2013, a Funai concluiu um estudo que confirmou a terra Sawre Muybu como território dos Munduruku, mas o governo não deu o passo seguinte de estabelecer oficialmente as fronteiras do território.

Alessandra Munduruku, membro da tribo e ativista, disse no acampamento que a falta de fronteiras marcadas encorajava mineiros e lenhadores à “invasão das nossas terras".

"Não estamos a pedir esmola, estamos a defender os nossos direitos", disse. "E não vamos desistir".

Um indígena Munduruku assiste a uma reunião na floresta amazónica. Foto: Adriano Machado/REUTERS
Um indígena Munduruku assiste a uma reunião na floresta amazónica. Foto: Adriano Machado/REUTERS
Indígenas Munduruku pintam-se uns aos outros com tinta de urucum.Foto: Adriano Machado/REUTERS
Indígenas Munduruku pintam-se uns aos outros com tinta de urucum.Foto: Adriano Machado/REUTERS


Davison Munduruku observa a floresta da Amazónia. Foto: Adriano Machado/REUTERS
Davison Munduruku observa a floresta da Amazónia. Foto: Adriano Machado/REUTERS

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