Após tumultos de Hong Kong e uma pandemia, terão os portugueses futuro em Macau?

Esta terça-feira começa uma visita de cinco dias do chefe do executivo de Macau a Portugal. A Renascença falou com nove portugueses no território para analisar o que mudou nos últimos cinco anos. As opiniões divergem em quase tudo, mas há um número inequívoco: em dois anos, 1.600 pessoas com passaporte português abandonaram a cidade que, até 1999, teve administração lusa.

18 abr, 2023 - 07:00 • João Carlos Malta (texto), Salomé Esteves (infografias)



O jogo, principal motor da economia de Macau, gripou durante a pandemia da Covid-19. Foto: EPA
O jogo, principal motor da economia de Macau, gripou durante a pandemia da Covid-19. Foto: EPA

A vida em Macau mudou e muito nos últimos cinco anos. Primeiro, ainda que de forma quase impercetível, com os tumultos em Hong Kong. A pandemia, que se seguiu, foi o passo decisivo para uma alteração substancial no quotidiano do território que os portugueses administraram e onde marcam presença há quase cinco séculos. Em resultado destes fatores, nos últimos dois anos, segundo os dados oficiais do Census de 2021, regressaram a Portugal quase 1.600 pessoas com o passaporte português. E estes dados não contabilizam aqueles que saíram no ano passado.

No total, Macau perdeu 20 mil residentes desde 2019, mas há quem aponte para um número superior de saídas da cidade, na ordem das 40 a 60 mil pessoas, como consequência da Covid-19 e as perdas económicas que se seguiram.

As restrições sanitárias e a redução da atividade económica, que em Macau é sinónimo da quebra de atividade dos casinos, jogaram uma cartada determinante neste fenómeno. Aliás, terá sido mesmo a razão principal para a maior parte dos portugueses decidirem abandonar a cidade.

Mas a deterioração de algumas liberdades e garantias pode também ter desempenhado um papel relevante. Para algumas vozes da comunidade portuguesa, é impossível não ver as restrições crescentes às liberdades de expressão, de manifestação e políticas.


As mesmas são vistas como contribuindo para o isolamento de Macau no plano internacional, e que visam também reduzir ali o papel e a presença dos portugueses.

O chefe do executivo de Macau, Ho Iat Seng, inicia esta terça-feira uma visita Portugal, até sábado, 22 de abril, estando previstos encontros com o Presidente português, Marcelo Rebelo de Sousa, o primeiro-ministro, António Costa, e o ministro dos Negócios Estrangeiros, João Gomes Cravinho.

“É uma comunidade muito mais frágil. São muito poucas as vozes que se manifestam, que são vozes críticas”, Sérgio Almeida Correia, advogado.

A acompanhar o chefe do Executivo na primeira deslocação ao exterior após a pandemia de Covid-19 estará uma comitiva de 50 empresários locais, liderada pelo secretário para a Economia e Finanças, Lei Wai Nong.

A cair

É unânime entre as várias vozes ouvidas pela Renascença que os últimos cinco anos marcaram uma redução do número de portugueses em Macau e da perda de influência da comunidade.

“É uma comunidade muito mais frágil. São muito poucas as vozes que se manifestam, que são vozes críticas”, afirma o advogado Sérgio de Almeida Correia.

As medidas altamente restritivas do território na gestão da pandemia, e outras ao nível legal e burocrático, são vistas por este advogado como “uma vontade encoberta” de “reduzir a capacidade de intervenção da comunidade portuguesa em Macau”.


E exemplifica: “A forma perfeitamente inqualificável e, nalguns casos com custos sociais muito elevados, através da qual famílias ficaram impossibilitadas de se contactar durante largos meses ou anos, porque um dos membros da família tinha estatuto de residente, mas, por exemplo, o outro cônjuge ou filho não o tinham”.

As quarentenas, que chegaram a ser de mais de 20 dias, são vistas por Almeida Correia “como injustificadas do ponto de vista científico”, sendo que as mesmas, de um momento para o outro, terminaram quando na China Continental começaram os protestos mais violentos, que ainda puseram em causa o presidente Xi Jinping.

Também Filipe Duarte, que chegou a jogar nas seleções jovens de futebol por Portugal e que está há muitos anos radicado em Macau, refere que a redução de portugueses é muito evidente.

“Eu senti isso. Perdi muitos clientes”, diz o ex-jogador do Benfica de Macau que, atualmente, se dedica às aulas de exercício físico como “personal trainer”.


A reabertura das fronteiras dá um novo fôlego à economia da região. Foto: Jerome Favre/EPA
A reabertura das fronteiras dá um novo fôlego à economia da região. Foto: Jerome Favre/EPA

“Vivemos numa cidade da qual não podíamos sair. Poder até podíamos, mas as quarentenas não deixavam”, lembra. “As pessoas estavam um bocadinho receosas e stressadas”, lembra.

Filipe afirma que o primeiro ano de grandes restrições, e testes em massa, “ainda se passou”. “Mas os outros dois foram bastante duros”, reconhece. “Muita gente não aguentou esta situação e muitos vieram embora”, acrescenta.

“Vivemos numa cidade da qual não podíamos sair. Poder até podíamos, mas as quarentenas não deixavam”, Filipe Duarte, personal trainer.

O mesmo diz Carlos Morais José, diretor do jornal em língua portuguesa “Hoje Macau”, um dos três diários do território que são escritos em português.

“Houve pessoas que não conseguiram aguentar as medidas que Macau impôs por causa da Covid”, relata. A isso, acrescenta, somou-se “uma grande queda de toda a economia de Macau e, obviamente, algumas pessoas da comunidade portuguesa foram atingidas e entenderam que era altura de voltarem a Portugal, porque não estavam a conseguir sobreviver dentro dos padrões de vida que tinham em Macau”.

O mesmo Censos de 2021, revela que 2.213 pessoas que vivem em Macau nasceram em Portugal, que representam 0,3% da população total da região administrativa especial chinesa.


Dá-se também conta que vivem no território 8.991 pessoas de nacionalidade portuguesa e que 13.021 pessoas possuíam ascendência portuguesa, representando 1,9% da população total.

“Houve pessoas que não conseguiram aguentar as medidas que o Covid impôs em Macau por causa da Covid”, Carlos Morais José, jornalista.

A pandemia a acelerar mudanças

Mas se as questões de saúde pública e económicas desempenharam um papel fundamental na reconfiguração da comunidade portuguesa em Macau, houve também mudanças sociais e políticas no território que não deixaram de ter consequências no dia a dia dos portugueses.

“A pandemia contribuiu exatamente para facilitar a aproximação do segundo sistema ao primeiro sistema. Essa aproximação tornou-se rápida tendo a Covid como pretexto”, afirma Almeida Correia.

Jorge Menezes, também ele advogado e uma das principais vozes críticas da comunidade portuguesa em relação ao Governo chinês e ao executivo de Macau, avança que, desde 2019, há “uma limitação profunda de algumas das liberdades e direitos fundamentais que são instrumentais para numa sociedade livre haver o Estado de Direito”.


“Foram praticamente proibidas todas as manifestações, portanto, o direito de manifestação está praticamente aniquilado em Macau”, identifica.

Sérgio de Almeida Correia entende mesmo que Macau “se transformou num mini-estado de natureza policial, em que a população é permanentemente vigiada”.

“As decisões relacionadas com direitos fundamentais, que deviam estar na mão de entidades civis, passaram para a polícia”, justifica.

Mas estas acusações de cerceamento da liberdade de manifestação e expressão não são unânimes entre os portugueses que vivem em Macau. O jornalista Carlos Morais José não podia estar em maior desacordo.


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"Perdi clientes individuais e em grupo, houve muita gente que se foi embora", Filpe Duarte, personal trainer em Macau.

Até reconhece que as manifestações passaram “a ser mal vistas ou condicionadas em Macau”, mas justifica-o com “o receio de que houvesse um contágio do que aconteceu em Hong Kong a Macau”.

Ainda assim, assegura que não houve proibição de manifestações. O que existiu, na ótica do diretor do “Hoje Macau”, foi “a criação de empecilhos para que acontecessem”.

Miguel Senna Fernandes, presidente da Associação de Macaenses, até admite que depois dos meses de manifestações contra o governo central em Hong Kong se tenha criado a ideia em Macau de que as liberdades de expressão e de manifestação ficariam comprometidas, mas garante “que pessoalmente não acredita que isso tenha acontecido”.

“É uma falsa questão”, diz, mas respeita as pessoas que saíram por sentirem que as “questões de índole política” poderiam ter influência no quotidiano.


Celebrações do Ano Novo Chinês do Coelho, em Macau, China. Foto: Gonçalo Lobo Pinheiro/Lusa
Celebrações do Ano Novo Chinês do Coelho, em Macau, China. Foto: Gonçalo Lobo Pinheiro/Lusa

Em relação ao fim das manifestações em Macau, confirma que são um facto, mas, quanto às motivações, lança uma frase lacónica: “Cada um entende como quer entender”.

Neste contexto, foi marcante a não realização da vigília em memória do massacre de Tiananmen, que em 2021 deixou de se realizar no Largo do Leal Senado. A proibição da Polícia com base em argumentos sanitários − impossibilidade de manter distâncias entre as pessoas − foi confirmada pelos tribunais.

O jurista Sérgio de Almeida Correia argumenta que estes episódios são a prova de que o poder judicial em Macau é “uma extensão do poder executivo e que passou a contribuir para a afirmação dos valores do executivo”. Isto, garante, contraria a Lei Básica (mini-constituição de Macau), que impede o setor judicial de ser a “transmissão dos desígnios e dos objetivos do poder político, designadamente em matéria de segurança nacional”.

O deputado José Pereira Coutinho, o único português que ainda se senta na Assembleia Legislativa em Macau, não atribui muita importância a esta questão.


“Nunca tive qualquer pressão de qualquer lado nas minhas intervenções”, começa por dizer. “E eu sou bastante crítico em relação às políticas sociais. Todos sabem que sou bastante interventivo”, acrescenta.

No entanto, adverte que “Macau é muito diferente de Hong Kong”. “É uma comunidade muito pequena, restrita, onde convivem várias religiões, mas onde todos se dão bem”, explica. Em relação às manifestações, assegura que acabaram por causa da pandemia.

Mas voltarão após se ultrapassar a Covid-19? “Isso depende da vontade das pessoas”, afirma, sem dizer que pessoas são essas.

“Nunca tive qualquer pressão de qualquer lado nas minhas intervenções (...) E eu sou bastante crítico em relação às políticas sociais”, José Pereira Coutinho, deputado da Assembleia Legislativa.

Ainda assim relativiza a importância da realização das mesmas. “O mais importante é resolver os problemas dos cidadãos, como as questões de habitação, as questões de aposentação e de segurança social”, enumera, garantindo que estes são os pontos fundamentais para a vida dos portugueses na cidade.

“Isto é muito mais importante do que as próprias vigílias, porque, como sabe, as vigílias são temas que extravasam os limites geográficos de Macau. Eu como deputado, fui eleito pelos cidadãos de Macau, e nunca encontrei uma pessoa que me dissesse que eu tinha de fazer uma vigília”, remata.


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"Não houve nenhum caso em que as pessoas tenham sido impedidas de exprimir a sua opinião ou de criar um órgão de comunicação social novo se o desejarem", Carlos Morais José, diretor do jornal Hoje Macau.

Jorge Menezes diz que as posições que toma publicamente lhe “secaram a clientela local”. Tudo começou quando decidiu patrocinar a defesa do então jovem deputado Sulu Sou − um político com posições pró-democratas. O caso judicial era motivado pela alegada desobediência à polícia numa manifestação. Sulu não arranjou advogado e Menezes avançou.

Mais tarde, em 2021, foi também representante da maior parte dos 21 deputados ligados aos movimentos democratas impedidos de irem a eleições. A argumentação usada pela Comissão para os Assuntos Eleitorais da Assembleia Legislativa baseava-se no facto de estes supostamente não serem patriotas.

Alguns desses candidatos candidataram-se em eleições anteriores sem que lhes tivesse sido levantado qualquer tipo de questão.


“O Ng Kok Cheong já era deputado há 30 anos, desde o tempo dos portugueses na administração, e foi proibido de se candidatar. Fizeram uma investigação ridícula. Isto é uma mudança clara depois dos incidentes de Hong Kong. Ou seja, o que era admissível antes para eles serem deputados, deixou de o ser. Não se tornaram de repente anti-patriotas”, garante.

E Menezes concretiza que ser patriota na China, é estar “alinhado com o Partido Comunista Chinês”.

Há liberdade de expressão em Macau?

Outro dos temas que geram polémica na comunidade lusa é o da liberdade de expressão. Carlos Morais José trabalha todos os dias com esta questão e é perentório em dizer que ela existe em Macau.

“Não houve nenhum caso que as pessoas tenham sido impedidas de exprimir a sua opinião ou de criar um órgão de comunicação social novo se o desejarem”.

Questionado sobre a situação da TDM − em que a administração da televisão estatal anunciou diretivas que proibiam a expressão de opiniões diferentes do governo central e do executivo de Macau − Morais José compara a situação à dos constrangimentos de quem trabalha órgãos de comunicação social em que o Estado é o acionista.


“Na BBC isso também existe. São condicionalismos de quem trabalha para o Estado e há pessoas que não os querem aceitar”, garante.

Todos os jornais, televisões, rádios, e demais órgãos de comunicação social em Macau são apoiados por subsídios do Estado, e têm a publicidade concentrada em poucos grupos económicos, que muitas vezes se resumem aos proprietários dos casinos, e entidades ligadas ao Governo.

“Em Macau, há muito mais liberdade de expressão do que a que existe em parte do mundo ocidental”, Carlos Morais José, diretor do jornal Hoje Macau.

É o que diz Almeida Correia. “A comunicação social em língua portuguesa é uma comunicação social profundamente dependente dos subsídios que recebe do Governo de Macau para a sua manutenção, e que depende em muito da publicidade que é feita por parte de entidades oficiais, de fundações, de empresas, muitas delas ligadas também ao Governo e à Administração Pública”.

Jorge Menezes contraria a tese de que há liberdade de imprensa no território. “Tem sido objeto de constrangimentos crescentes. Existem fenómenos endémicos de autocensura na comunicação social em Macau”, não tem dúvidas em afirmar.


Se, antigamente, os jornais procuravam ouvir os dois lados, os pró-governo e os críticos, isso mudou. “O grupo de pessoas que fazia críticas nunca mais foram convidados para comentar”, diz.

E repete que vozes críticas, de que faz parte, “desapareceram por causa deste clima de autocensura”.

"Existem fenómenos endémicos de autocensura na comunicação social em Macau", Sérgio de Almeida Correia, advogado.

Carlos Morais José rejeita estas ideias. Assume que houve “uma mudança editorial na TDM” e que “uns jornalistas não aceitaram e saíram e outros aceitaram e ficaram”.

Mas isola a televisão pública, e garante que nos outros media em língua portuguesa, nomeadamente o que dirige, “não vejo que tenha havido nenhuma mudança”.

Afirma que há linhas editoriais diferentes entre os jornais de Macau, e que os conflitos de Hong Kong nada mudaram. Morais José diz que quem fizer a história daqueles jornais escritos em português o confirmará.


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"Foram praticamente proibidas todas as manifestações, portanto, o direito de manifestação está praticamente aniquilado em Macau", Jorge Menezes, advogado.

E ainda diz mais, em Macau não há competição pelo mercado e que isso leva a que “exista muito mais liberdade de expressão do que a que existe em parte do mundo ocidental”. “Isto pode ser confirmado pelos outros diretores [de jornais]”, acrescenta.

“Nós fazemos jornalismo à nossa maneira, para a nossa comunidade, tendo em conta a cultura e a civilização em que estamos”, remata do diretor do “Hoje Macau”.

A língua portuguesa em crise

O português é uma das duas línguas oficiais de Macau. No Instituto Português do Oriente, o presidente Joaquim Ramos garante que há “um crescimento da procura” pela aprendizagem. Este é mesmo um dos principais focos daquela instituição. Há, neste momento, quatro mil inscritos em cursos, número que não tem sofrido alterações significativas desde 2018.

Há, no entanto, uma alteração do perfil de quem quer aprender a língua. “Tem havido um aumento da procura na área do português jurídico, portanto português para fins específicos, português jurídico, português para o turismo. Isso pode ter a ver com um reforço pragmático do lado dos atendentes das competências na área da tradução e da interpretação”, qualifica.


Tou Tei; Ópera Cantonesa. Foto: Gonçalo Lobo Pinheiro/Lusa
Tou Tei; Ópera Cantonesa. Foto: Gonçalo Lobo Pinheiro/Lusa

A isso soma-se a presença do português no pré-escolar, garante Joaquim Ramos. “Sabemos que há um crescimento nessa faixa, portanto o que nós fazemos é disponibilizar cursos com carácter mais lúdico que nós chamamos de oficinas em que as crianças, por iniciativa dos seus pais têm uma primeira abordagem à língua portuguesa”.

Já no que se refere ao uso da língua no quotidiano, e às instituições públicas em particular, Joaquim Ramos identifica uma crise.

“Antigamente, as instituições de matriz portuguesa recebiam esses ofícios em língua portuguesa. Agora, as comunicações passaram a ser feitas só em língua chinesa. Fiz algumas perguntas a algumas instituições com as quais trabalhamos mais diretamente e disseram-me que isso tinha que ver com uma falta de quadros ao nível da tradução”, concretiza.

O mesmo problema “de desvalorização sistemática da língua portuguesa dentro da administração pública e dos tribunais” é identificado pelo advogado Sérgio de Almeida Correia, com consequências que considera gravosas.


“Os advogados são notificados de acórdãos, decisões judiciais com dezenas e centenas de páginas em chinês sendo que os destinatários são advogados falantes de português. Muitas vezes, as próprias partes também são falantes de português” e “não se dão sequer extensões de prazo de resposta que permitam a que sejam feitas traduções adequadas”.

“Estão-se a cercear os direitos das pessoas, nomeadamente em sede de recurso”, critica.

“Está-se a fazer isso propositadamente. Pura e simplesmente, isto está a tornar mais difícil não só o exercício da profissão do advogado, como a própria defesa dos direitos e dos interesses dos residentes de Macau”, acrescenta.

Autocensura das instituições

Ainda em relação às liberdades em Macau, o presidente do IPOR diz que a cultura portuguesa mantém ali forte presença, apesar das restrições sanitárias da pandemia e os problemas financeiros que daí resultaram.


Joaquim Ramos não sente “que haja uma imposição e contenção daquilo que era a liberdade de comunicação a todos os níveis, nomeadamente artística e cultural, que existia antes do período de pandemia”.

Ainda assim, nota, de facto, que há “um fenómeno que não reconheci nos meus primeiros anos em Macau”.

Qual? “Um fenómeno de autocensura, nomeadamente junto de algumas entidades de entidades do Governo. Noto que algumas pessoas têm uma dimensão de autocontrolo, que depois tem repercussões, nomeadamente ao nível da tomada de decisão que são um pouco mais complexas e demoradas”, concretiza o presidente do IPOR.

Neste domínio foi emblemática com o encerramento sem pré-aviso da exposição do World Press Photo, em outubro de 2020.


O facto de, entre as fotos expostas, estarem retratadas as manifestações em Hong Kong contra o poder central chinês, levou a que se levantassem suspeitas de que o encerramento seja resultado de pressões políticas. A organizadora, a Associação Casa de Portugal, justificou o sucedido com “um problema de gestão interna”.

Expetativa em relação à visita de Ho

Neste contexto, a visita de Ho Iat Seng, líder do executivo da Região Autónoma Especial de Macau, ganha especial relevância. No seio da comunidade lusa é vista com expectativa apesar de por motivos diferentes.

“Um país que não critica a China, é um país ótimo para visitar. Portanto, eu acho que não é por mérito de Portugal”, Jorge Menezes, advogado.

O jornalista Carlos Morais José diz que a escolha de Portugal para a primeira saída de Ho, no período pós-pandemia, “é bastante importante para a nossa comunidade”. É sinal, assegura, de que “Pequim dá uma importância grande ao papel de Macau como ligação aos países de língua portuguesa e a Portugal”.

No entanto, alerta que esta visita terá um caráter “mais simbólico” do que “propriamente concreta”.


O advogado Jorge Menezes vê-a de forma radicalmente diferente. “Portugal tem sido um país muito manso, com governos muito mansos e, portanto, com falta de carácter político relativamente à China”, avança.

As críticas que o China tem recebido internacionalmente, nos últimos anos, tornam na perspetiva do jurista tornam Portugal um país apetecível.

“Um país que não critica a China, é um país ótimo para visitar. Portanto, eu acho que não é por mérito de Portugal”, defende. “A motivação por detrás desta escolha não honra Portugal”, avalia.

Sérgio de Almeida Correia olha com expetativa para este encontro entre líderes. “Tem havido uma série de situações relativamente à comunidade portuguesa e ao papel dos portugueses em Macau que, do meu ponto de vista, deviam ser esclarecidas por parte das autoridades nacionais”, avança.


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"Um fenómeno de autocensura, nomeadamente junto de algumas entidades de entidades do Governo. Noto que algumas pessoas têm uma dimensão de autocontrolo", Joaquim Ramos, presidente do IPOR em Macau.

Essas situações, esclarece, são o cumprimento da Declaração Conjunta assinada por Portugal e a China, e depositada na ONU, na qual há um compromisso escrito para os 50 anos de transição do território para a administração chinesa.

Almeida Correia diz que a manutenção das várias liberdades vertidas nesse documento e depois transcritas para a Lei Básica não está a ser cumprida.

Os dois advogados afirmam que as questões económicas e da “real politik” têm passado sempre à frente dos direitos no território, e que Macau é vítima das relações de Portugal com a China que as autoridades nacionais não querem comprometer.

Mais médicos para Macau

Noutro campo, o presidente da Associação de Macaenses, Miguel Senna Fernandes, diz que esta visita também vai lançar pontes para a contratação de mais médicos portugueses para Macau, motivadas pela abertura de um segundo hospital público no território. A presença da Secretária dos Assuntos Sociais é disso reflexo. “Uma comunidade portuguesa sem apoio médico em português é algo desconcertante”, identifica.


E se nesta comitiva do chefe do executivo vêm 50 empresários a Portugal, a verdade é que as relações económicas não têm sido fáceis de aprofundar. Se é verdade que têm estado presentes na maior parte das declarações e encontros entre responsáveis políticos, a verdade é que poucas vezes têm saído das meras intenções protocolares.

E mesmo quando tal acontece como quando foi criado o Fórum Macau, em 2003, os resultados têm sido pífios. “Não se sente a ação dele na criação da plataforma. Não se conhece nada desse Fórum”, diz.

A plataforma de que Miguel Senna Fernandes fala é entre os países lusófonos e a China, tendo Macau como intermediário ou pivot.

Um futuro incerto

Todo este caldo social, económico e político, leva a que se questione qual o papel que os portugueses terão nos próximos anos. Carlos Morais José pensa que “esta comunidade que está ali há 500 anos, ainda não é desta que vai ser extinta, ainda não é desta que vai desaparecer”.


Vigília sobre massacre de Tiananmen proibida em Macau. Foto: Jerome Favre/EPA
Vigília sobre massacre de Tiananmen proibida em Macau. Foto: Jerome Favre/EPA

Os atrativos financeiros, de uma economia alimentada pelo jogo, na ótica deste jornalista continuarão a servir de fator de atração para muitos portugueses.

No entanto, alerta que Macau se está sempre a transformar, “a comunidade também se tem de transformar de acordo com a própria cidade”. Defende que a ideia é “tentarmos ser úteis e desempenhar funções que sejam úteis à cidade”.

Para o diretor do “Hoje Macau”, a política económica para a Grande Baía, criada pelo governo central chinês para a região de Guandong onde habitam cerca de 126 milhões de habitantes, deve ser olhada com muito interesse.

“As oportunidades são cada vez maiores para as empresas que aqui se instalem. Há uma classe emergente muito grande, de pessoas pobres que chegam à classe média com uma sede de consumo muito grande”, analisa.


O “PT” Filipe Duarte é menos otimista. Diz que gostava de acreditar que em breve haverá mais portugueses no território, mas o que a realidade mostra é que “está a ser cada vez mais difícil” trabalhar para Macau.

“Estão a dar preferência aos locais de nacionalidade chinesa”, avança.

Jorge Menezes acredita que Macau pode ser ainda um “refúgio económico” para quem quer viver na Ásia, mas alerta para o cerco de medidas restritivas às liberdades tornam a cidade menos atrativa para estrangeiros.

Almeida Correia pensa o mesmo e queixa-se da falta de apoio das autoridades nacionais em relação aos portugueses que vivem naquela cidade.


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“Durante muito tempo, a interpretação que eu fiz de muitas das decisões e das disposições que foram tomadas, é a de que havia uma vontade encoberta de reduzir o peso e a capacidade de intervenção da comunidade portuguesa em Macau", Sérgio de Almeida Correia, advogado.

“Durante muito tempo, a interpretação que eu fiz de muitas das decisões e das disposições que foram tomadas, é a de que havia uma vontade encoberta de reduzir o peso e a capacidade de intervenção da comunidade portuguesa em Macau”.

Em relação ao futuro, o advogado olha “com muita apreensão”. “Eu já não terei muitos anos pela frente, mas preocupam-me as pessoas que nasceram em Macau e estão na casa dos 25 e 30 anos e são portugueses. Não sei que perspetiva é terão de continuidade em Macau”, remata.


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