Abuso de menores. Instituições religiosas britânicas em mudança, mas com trabalho por fazer

Escândalo a envolver o apresentador da BBC Jimmy Savile abriu a porta à criação de uma comissão independente responsável por investigar crimes de abuso sexual de menores em Inglaterra e no País de Gales. À Renascença, líder da IICSA defende que parte de "um bom sistema de proteção infantil é fazer com que seja obrigatório reportar qualquer caso às autoridades”.

09 fev, 2023 - 18:02 • António Fernandes , correspondente da Renascença em Londres



Foto: EPA
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Esta história começa na BBC. Não por ter sido reportada pela BBC, mas porque o debate nacional sobre o abuso infantil tomou outras proporções depois da morte do Jimmy Savile, em 2011.

Savile foi, desde 1968, uma figura da referência da BBC, enquanto apresentador de rádio e televisão. Quando morreu, as alegações de abuso contra si começaram a aparecer, e um inquérito conseguiu estabelecer que pelo menos 60 crianças foram vítimas de abuso sexual por Savile, que aproveitou a sua posição (como apresentador de programas juvenis) e o seu trabalho de caridade para levar a cabo os abusos.

No rescaldo das investigações, que revelaram abuso generalizado e falhas na proteção de crianças por parte das instituições, a então ministra da Administração Interna, Theresa May, que mais tarde viria a ser primeira-ministra, criou o inquérito independente sobre abuso sexual de menores (IICSA) em 2015.


Documentário "Jimmy Savile: A British Horror Story" explora os crimes cometidos por Savile. Foto: DR
Documentário "Jimmy Savile: A British Horror Story" explora os crimes cometidos por Savile. Foto: DR

Oito anos depois, o inquérito chegará ao fim em abril, tendo pelo meio publicado 62 relatórios que fazem a radiografia do abuso sexual de menores em Inglaterra e no País de Gales.

Vários deles são dedicados às instituições religiosas. Sobre a Igreja Anglicana, a religião maioritária nos dois países, um relatório publicado em outubro de 2020 diz que a igreja promoveu uma cultura que a tornou “um sítio onde os abusadores se podiam esconder” e onde os “agressores eram mais apoiados do que as vítimas”, levantando obstáculos à denúncia “que muitas vítimas não conseguiram ultrapassar”.

Apesar da investigação, não foi possível estabelecer o número real de alegações ou denúncias feitas. Ainda assim, concluiu-se que, desde a década de 1940 até 2018, houve 390 condenações de agressores associados à Igreja Anglicana. No ano de 2018, registaram-se 490 possíveis incidentes de abuso sexual de menores que foram reportados à Igreja; o relatório indica que só 44% desses foram comunicados às autoridades.

A comissão dedicou também um relatório em exclusivo à Igreja Católica nos dois países. Nesse relatório, publicado em 2020, lê-se que “a Igreja Católica colocou a sua reputação acima do bem-estar das crianças durante décadas” e que o propósito moral da Igreja foi “traído tanto por aqueles que na Igreja abusaram sexualmente de crianças, como por aqueles que fecharam os olhos”.

Em causa estão cerca de 340 instituições católicas, onde se verificaram, entre 1970 e 2015, “3.072 incidentes de alegado abuso cometido por 936 alegados agressores”, estabelece o relatório.

Em entrevista à Renascença, a professora Alexis Jay, que liderou o inquérito, indica que daí resultaram apenas 133 condenações. Desde 2016, adianta, houve mais de 100 alegações reportadas por ano.

"Este não é um problema que vai desaparecer, longe disso."

Ainda a 31 de janeiro deste ano, Dennis Finbow, um padre católico que classificou como "absurdas" as alegações contra si, foi condenado a pena de prisão por abusar de uma criança nos anos 1980.


À Renascença, Alexis Jay fala em instituições que mudam “muito lentamente” e diz que, finalizado o inquérito, não está “completamente satisfeita”. Foto: DR
À Renascença, Alexis Jay fala em instituições que mudam “muito lentamente” e diz que, finalizado o inquérito, não está “completamente satisfeita”. Foto: DR

Para a líder da IICSA, há um problema de identificação e denúncia insuficiente de casos. Se olharmos para o caso de Ampleforth, um colégio católico privado de elite onde se descobriu abuso sistémico, o inquérito encontrou “várias alegações que nunca foram referidas à polícia, tendo sido resolvidas internamente”.

O relatório aponta que, no caso das instituições católicas, 19% das queixas nunca foram passadas às autoridades. Como se pode combater essa falha na denúncia? Alexis Jay diz que “uma das condições para ter um bom sistema de proteção infantil é fazer com que seja obrigatório reportar qualquer caso às autoridades”.

No último relatório produzido pelo inquérito foi recomendada essa obrigatoriedade, para que “qualquer pessoa numa posição de confiança, como um padre, tenha de reportar qualquer indicação de abuso sexual de menores, com possíveis implicações na justiça se não se reportar”. Para a presidente do inquérito, essa medida é uma das sugestões “mais importantes” feitas pela comissão porque “acontece em várias áreas, mas no contexto religioso há em particular uma relutância extrema em reportar ou envolver alguém do mundo exterior nestes casos”.

A voz das vítimas

Para a professora Alexis Jay, as vítimas estiveram “no coração do inquérito” desde o princípio, uma visão que é partilhada por Helen Ryan, diretora de estratégia do Truth Project, que funcionou em paralelo com a comissão, porque “um inquérito tem de ter as vítimas no centro do que está a ser feito, garantir a sua voz durante os trabalhos para que sintam que contribuíram para o resultado final. Elas são o ponto final de um falhanço sistémico, percebem melhor que ninguém.”

À Renascença, Helen Ryan diz que o Truth Project “nunca foi um projecto centrado nos números”, mas adianta que no final foram ouvidas quase 6.500 pessoas. E ouvir não quer dizer “saber o que aconteceu e quando, mas o que significou para elas, que impacto teve nas famílias, na saúde, na sua vida”.

Depois de serem abordados grupos de vítimas já existentes, o projeto apostou numa campanha de publicidade nacional para chegar a mais pessoas e, com isso, “mudou a narrativa sobre o abuso de crianças, porque as pessoas começaram a falar sobre os anúncios, encorajou conversas”, explica Helen.

A campanha foi uma forma de alcançar mais pessoas, mas também de “fazer com que as pessoas sintam que é algo sobre o qual podem falar no dia-a-dia, e que serão ouvidas sobre alguém numa posição de autoridade”.

Todos os dados foram utilizados para informar e estabelecer as recomendações feitas pela comissão de inquérito, e “foi importante para as pessoas saberem que podiam partilhar e verem de que forma isso seria útil para o inquérito”. Essa, acredita Helen, é uma das razões que motiva vítimas:

“É uma coisa muito altruísta, vir a um inquérito; relembrar e partilhar a sua experiência não é fácil e somos muito agradecidos por isso.”

Os participantes partilharam a sua experiência numa só sessão, tendo apoio de terapeutas especializados nas quatro semanas anteriores e nas duas semanas seguintes. Durante a sessão, “a chave foi que não lhes fizemos perguntas, a experiência era do participante, por isso eles tinham controlo sobre o que partilhavam e onde paravam”.

Quando os participantes não sabiam onde começar, algumas perguntas básicas feitas por um “facilitador” davam o mote. Em qualquer caso, os participantes podiam falar só sobre o impacto ou sobre o que acham que devia mudar, mas não tinham de falar em específico sobre o abuso.

“Só tentámos retirar mais informações quando havia crianças em risco no presente, apesar de não termos poder para investigar”, conta Helen. Nalguns casos foram ouvidas pessoas de “60 ou 70 anos que nunca tinham contado a ninguém o que lhes aconteceu”.

Os testemunhos

Ouvidas mais de 6.500 pessoas, o Truth Project publicou um documento com os testemunhos de muitos dos que quiseram partilhar a sua história. Esses testemunhos permitiram estabelecer que 6% dos abusos foram cometidos num contexto religioso. Estes são alguns exemplos que incluem instituições religiosas, não podendo ser possível estabelecer através da leitura se os agressores pertenciam à Igreja Católica ou Anglicana.


Dados sobre composição do grupo de vítimas de abusos que participaram no Truth Project. Fonte: IICSA
Dados sobre composição do grupo de vítimas de abusos que participaram no Truth Project. Fonte: IICSA

Chloe conta como um pároco, próximo da família ao ponto de visitar a sua casa, a beijava quando os pais dela não estavam presentes e tentava aumentar as probabilidades de abuso aparecendo na escola para a levar até casa. Tinha 13 anos.

Numa dessas ocasiões, Chloe tinha faltado à escola por estar doente. O pároco foi até sua casa e, no quarto, mandou-a despir-se. Chloe recusou e o pároco foi-se embora. Os pais perceberam que algo estava errado e Chloe contou-lhes o que tinha acontecido. Depois de apresentarem queixa na igreja, o pároco foi transferido para outra região. Quando mais casos se tornaram públicos, Chloe voltou a contactar a igreja e, depois de apresentadas provas, o pároco foi condenado a prisão. Chloe quer ouvir um pedido de desculpas.

Também Abbie partilha a história de um padre que usou a grande ligação da sua família à igreja para abusar dela, entre os sete e os 11 anos. O padre visitava a família e ficava na casa várias vezes por ano, durante alguns dias. Passava dias com Abbie, tocando-a de forma imprópria. Já na casa dos 60, Abbie fala numa vida repleta de problemas mentais como consequência do abuso que sofreu. A sua experiência não diminuiu a sua fé, mas diz que nunca encontrou apoio dos membros da Igreja.

Já Dylan, que cresceu numa família de membros ativos da igreja local, virou as costas à religião não só por ter sido abusado por um pároco mas, principalmente, pela ausência de resposta por parte da Igreja. Depois de ter sido abusado enquanto criança, Dylan leu uma notícia sobre uma condenação do seu agressor.

Depois de contar aos pais comunicaram à igreja, tendo o Bispo garantido que o pároco tinha sido transferido e demovido. Quando Dylan soube que o pároco tinha voltado a mudar de igreja depois de alguns rumores, dirigiu-se à polícia. O caso foi a tribunal mas, depois de protegido por outros clérigos, o pároco foi absolvido.

Anos mais tarde a polícia pediu a Dylan para testemunhar de novo, depois de mais uma acusação. O pároco, Jacob, foi condenado a cumprir pena de prisão. Depois de cumprida a pena, Dylan descobriu que a igreja continua a garantir alojamento e salário a Jacob.

Dylan conta que esteve perto de acabar com a própria vida como consequência. Procura um pedido de desculpas da Igreja pelo seu abuso e por ter permitido o abuso de outros.

Trabalhos em curso para proteger menores

Contactada pela Renascença, a Igreja de Inglaterra disse não ter disponibilidade para uma entrevista, mas refere por email que “foi feito muito trabalho em termos de prevenção e protecção de menores”.

A Igreja Anglicana indica que tem implementado as recomendações feitas pela IICSA e acrescenta que em cada uma das suas 42 dioceses há um consultor especializado em proteção de menores. Em resposta ao relatório final do inquérito, a Igreja de Inglaterra esclarece no seu website que continuada “dedicada a estabelecer um esquema de compensação para sobreviventes de abuso no seio da Igreja”.

Até à data da publicação não foi obtida resposta por parte da Igreja Católica em Inglaterra e no País de Gales, mas as informações disponíveis no site da Agência Católica para Proteção de Menores e Pessoas Vulneráveis (CCSA) apontam para “alterações na forma como a Igreja recruta e forma em matérias de protecção de menores”.

Nesse texto, é garantido que os membros do clero têm sessões regulares para “atualizar o seu conhecimento e competências em relação à proteção de menores" e a própria CCSA faz parte disso, tendo sido criada em 2021 "com o intuito de garantir que os padrões são cumpridos, através de auditorias feitas nos dois países".

Em 2019, o Cardeal Vincent Nichols, arcebispo de Westminster e figura máxima da Igreja nos dois países, pediu “perdão pela nossa lentidão e pela nossa negligência em prevenir e fazer emendas”.

Alexis Jay fala em instituições que mudam “muito lentamente” e diz que, finalizado o seu trabalho no inquérito, não está “completamente satisfeita” com a reação das duas igrejas, reforçando que é preciso ver “que progresso será feito” em termos da implementação das recomendações feitas pela comissão de inquérito no seu relatório final.

Nazir Afzal, presidente da agência católica CCSA, diz que o relatório “vai moldar o trabalho da Igreja” e destaca que é muito importante, porque “a Igreja Católica não terá muitas mais oportunidades de acertar nesta matéria”.


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