Um fotógrafo de guerra em Kiev. "O que fica são as conexões humanas, ínfimas, efémeras. Para mim, duram a vida toda"

Onde há ucranianos a retirar placas das ruas para confundir os invasores e cidades com ar de cortar à faca. Gente estranha que percorre quilómetros para oferecer uma boleia e explosões que escapam a sonhos recorrentes de ansiedade. Em Kiev, onde se conta o fascínio de um repórter pelo ser humano, capturam-se fotos que são memória visual da Humanidade. É lá que reencontramos Carlos Barria, um Pulitzer na guerra da Ucrânia.

04 mar, 2022 - 08:41 • Maria João Cunha



- Pareces cansado, Carlos – a esta distância segura inquieta-nos o desconforto que trabalhar num cenário de guerra pode causar. - Sim, um pouco – confirma, sorrindo para o ecrã. Estranhamente dormiu bem nas últimas noites, conta-nos, ainda que de janela entreaberta, num estado de alerta latente, para poder ouvir os estrondos.

A saudação foi calorosa, de reencontro, depois de 12 anos. Carlos Barria conversou pela primeira vez com a Renascença no rescaldo do sismo do Haiti, em 2010, para contar como se pode fotografar a morte com elegância e respeito. Hoje reencontra-nos a partir de Kiev.

Prémio Pulitzer em 2019, o reconhecimento maior no jornalismo foi-lhe atribuído em conjunto com a equipa de fotógrafos da Reuters pela cobertura da crise migratória nos países vizinhos dos Estados Unidos. Mas quando recorda por onde andou estes anos, esse detalhe nem lhe merece menção.

Terramoto no Haiti, tsunami no Japão logo depois, mais cinco anos na China, dois anos da era Obama, em Washington, a fotografar a presidência, todo o mandato de Trump e um pouco de Biden. Agora vive na Califórnia, um dia há-de voltar ao sul. Bariloche, Argentina.

Foi fotógrafo do ano para a sua agência em 2021.

Por estes dias, fotografa a guerra que o mundo não esperava, nem desejava.

- Já estás a gravar? – a pergunta lembra que a conversa é para registar. E o registo, de conversa, também aqui na primeira pessoa, mantém-se até ao final.

[e está também disponível na íntegra, em vídeo, aqui]


Explosão na torre de televisão em Kiev, ao sexto dia da invasão russa da Ucrânia, 1 de Março de 2022. Foto: Carlos Barria/Reuters
Explosão na torre de televisão em Kiev, ao sexto dia da invasão russa da Ucrânia, 1 de Março de 2022. Foto: Carlos Barria/Reuters

A foto

Foi sorte. Não a procurei. Esse dia, para mim, não tinha sido de muitas fotos porque estava com outras tarefas, estava a ajudar os colegas da logística. Fomos atestar de combustível um dos veículos a uma estação de serviço, quando nos chegou o alerta de que possivelmente poderia haver um ataque.

Levamos o aviso a sério, como deveríamos. E, bom, fomos tratar do combustível, sempre atentos a tudo ao nosso redor. Esperando que nada acontecesse, mas sempre alerta.

E quando terminamos de abastecer de combustível, num local a cerca de quatro quilómetros do centro de Kiev, começámos a regressar. Eu estava com um “fixer” [morador contratado para servir de guia, motorista e intérprete] que estava a conduzir e vejo uma bola de fumo negro erguer-se por detrás de umas árvores.

E então apercebo-me que está mesmo na base de uma torre de comunicações e o meu “fixer”, que é local, diz-me que é a torre de televisão.

Então damo-nos conta de que o alerta era real e que estavam a atacar partes da infraestrutura importantes. Aproximamo-nos um pouco, estamos num veículo blindado, que nos permite estar um pouco mais próximos. De qualquer modo teríamos de passar perto dali.

E é aí que percebo que a torre não foi derrubada. E que pode haver um segundo lançamento.

Quando estamos a virar, peço ao condutor que manobre a camioneta para ficar com uma visão frontal da torre e, de repente, pfff… [a explosão].

Pego na câmara, que já trazia justamente com a lente indicada, que era uma 35mm, “full frame”. Dou três disparos e passou.p

Disse então ao condutor para regressarmos.

Entramos numa rua lateral a observar um pouco a situação e vemos pessoas a passar a estrada. Faço um par de fotos aí, imediatamente. Eu trabalho para um serviço de agência, então mandei uma foto, avisei que estávamos bem e o que estava a acontecer. Fiz um pouco de vídeo com o meu telefone e coloquei no sistema de envio.

Dez minutos depois, digo ao meu companheiro para passar em frente para ver mais de perto. Quando nos aproximamos vi uns edifícios destruídos e saí, quatro, cinco minutos. Digo-lhe: “se estiver mais de cinco minutos grita-me, para voltar, posso perder a noção do tempo”. Saio, trato de fazer algumas fotos, ver se há feridos.

Não vejo ninguém. Soube depois que tinham morrido cinco pessoas, mas não as vi. E depois voltamos ao veículo e viemos embora, estava a ficar de noite, era melhor não ficar ali.


Uma coluna de fumo revela o local depois da primeira explosão. Foto: Carlos Barria/Reuters
Uma coluna de fumo revela o local depois da primeira explosão. Foto: Carlos Barria/Reuters
Já mais próximo, Carlos faz três disparos sobre a mesma cena, nos segundos em que a segunda explosão é visível nos céus de Kiev. Foto: Carlos Barria/Reuters
Já mais próximo, Carlos faz três disparos sobre a mesma cena, nos segundos em que a segunda explosão é visível nos céus de Kiev. Foto: Carlos Barria/Reuters


O sonho recorrente

Não gosto de dizer que uma foto é a foto mais importante para mim. Sei que é uma foto importante para a história porque era a primeira do primeiro bombardeamento, do primeiro objectivo na cidade de Kiev. Todos os combates e todas as fotos que estamos a ver são de outras cidades, mas Kiev é a capital.

E receber um míssil de longo alcance, ainda para mais dirigido a uma torre de comunicações no meio da cidade, é subir de tom, um pouco. Sabia que era uma foto importante.

Mas nunca ponho a etiqueta de fotos favoritas ou algo assim, porque não existem. Só os dias que vão transcorrendo e as fotos vão aparecendo. E se aparecem, aparecem; se não aparecem, não aparecem.

Às vezes tenho sonhos com isso, a que chamo sonhos de ansiedade. Temos sempre os mesmos sonhos e são um pouco repetitivos.

Acontece algo incrível à minha frente e não tenho câmara, ou a câmara não tem bateria, ou a lente não está colocada. Acontecem-me essas coisas, que são ansiedade, psicologicamente é ansiedade, por trabalhar ou por estar numa situação...

E desta vez estava tudo no seu lugar. Era para fazer a foto – e fi-la.

Podia não ter funcionado. Já perdi fotos porque não tinha câmara, porque estava no lugar incorreto. E antes, quando era jovem, isso incomodava-me muitíssimo. “Uh, olha a foto que perdi, eu…”.

E depois, com o tempo, aprendi que ao menos eu vi a foto, que isso é o importante. Porque há gente que não vê, nada. Que vai pela vida sem ver. Então o privilégio de ver já é qualquer coisa.


Um cartaz à beira da estrada perto de Tsarychanka, 18 Fevereiro 2022. Foto: Carlos Barria/Reuters
Um cartaz à beira da estrada perto de Tsarychanka, 18 Fevereiro 2022. Foto: Carlos Barria/Reuters

E sempre pensei que o cérebro é uma espécie de disco rígido. E os fotógrafos, nós que vemos por imagens, vamos absorvendo imagens o tempo todo.

As fotos que não tiramos, as fotos de outros… É um disco rígido que vai acrescentando à base de dados do nosso cérebro.

E chega um momento em que te cruzas com as mesmas. As imagens repetem-se.

É incrível, as situações não são as mesmas, mas as imagens e a estética repetem-se. E no futuro está-se preparado para fazer a foto. Às vezes funciona, outras vezes não, é uma questão de azar.


OuvirPausa
Com o tempo aprendi que ao menos eu vi a foto, que isso é o importante. Porque há gente que não vê, nada. Que vai pela vida sem ver.

Tirar placas das ruas para confundir os invasores

As pessoas aqui são muito criativas. É uma guerra onde as pessoas comuns estão a fazer coisas muito criativas. Há um departamento de transportes da Ucrânia que tem voluntários que estão a sair para tirar todas as placas, para que, pela cidade, as tropas russas não entendam para onde vão, porque não há nenhuma indicação.

E mudam os nomes das ruas e dos percursos para os confundir, parece-me. Do ponto de vista de um civil é um acto criativo para o bem comum: que não sejam invadidos por outra nação. Esse tipo de história é fascinante para mim.

Depois, das fotos que fiz… A mim as caras das pessoas encantam-me. Vi umas caras incríveis, cenas que me fizeram transportar a outra época. À União Soviética dos anos 60.

Na cidade de Mariupol, que é um porto industrial, fotografei um homem que estava a observar uma fábrica metalúrgica. Saía fumo por todos os lados, era um lugar de muita poluição. Ele estava sentado com uma cara, uma cara incrível, um cabelo comprido e a olhar para fora.

Quando me aproximei dele fez-me sinal como se não quisesse ser fotografado. E aqui é onde eu digo sempre que – e eu não falo ucraniano nem falo quase todas as línguas dos sítios para onde já viajei – mas existe uma língua universal que é a linguagem do corpo.

E um olhar e um sorriso, por vezes, fazem-te entrar em muitos lugares. E fiz-lhe um gesto como que a pedir permissão para fazer uma foto e ele acabou por dizer que sim e, num instante, deixou de me olhar.

E seguiu a sua contemplação desta fábrica e deu-me a oportunidade que foi, no lapso de tempo de um minuto, poder fotografá-lo. E há uma conexão incrível, em que ele sabe que eu estou ali mas me ignora e eu estou ali a fotografar. É uma coisa bela.


Antonoii à janela observa uma fábrica metalúrgica na cidade industrial de Mariupol, a 20 quilómetros das províncias separatistas reconhecidas por Vladimir Putin antes da invasão da Ucrânia. 20 de Fevereiro de 2022. Foto: Carlos Barria/Reuters
Antonoii à janela observa uma fábrica metalúrgica na cidade industrial de Mariupol, a 20 quilómetros das províncias separatistas reconhecidas por Vladimir Putin antes da invasão da Ucrânia. 20 de Fevereiro de 2022. Foto: Carlos Barria/Reuters

A deliciosa maçã entre bombas

Essas conexões em que não troco palavras são muito lindas. E passei por outros lugares onde tive gestos… Uma vez em Israel, durante um bombardeamento a partir do Líbano, meti-me num abrigo a correr e uma mulher – não falávamos a mesma língua – viu que eu estava assustado, era a primeira vez que me via numa situação assim.

Ofereceu-me uma maçã e pareceu-me do mais belo, de uma generosidade… Uma coisa louca. E lembro-me sempre. Comi essa maçã com umas ganas, uma maçã vermelha, intensa, deliciosa. São as pequenas coisas.

Eu tenho animais. Não tenho filhos, mas tenho um cão e um gato e de cada vez que vejo animais, isso toca-me profundamente. Então quando vejo gente com animais de estimação, peço sempre permissão aos donos para poder acariciá-los.

E há sempre uma conexão linda com os animais de estimação, os cães, os gatos. São animais que não pediram para estar ali nem se vão embora. Não têm nacionalidade, são cães e gatos. Então tenho uma conexão forte com os animais e enternecem-me muitíssimo.


Um gato no tabliê de um camião estacionado numa bomba de gasolina nos arredores de Dnipo, 25 Fevereiro 2022. Foto: Carlos Barria/Reuters
Um gato no tabliê de um camião estacionado numa bomba de gasolina nos arredores de Dnipo, 25 Fevereiro 2022. Foto: Carlos Barria/Reuters
Casal abriga-se numa estação de metro de Kiev, durante a invasão russa da Ucrânia, 2 Março 2022. Foto: Carlos Barria/Reuters
Casal abriga-se numa estação de metro de Kiev, durante a invasão russa da Ucrânia, 2 Março 2022. Foto: Carlos Barria/Reuters


O que se leva daqui... As fotos são o argumento para a Internet. E para os jornais. Hoje publica-se isto e amanhã é outra coisa. Para mim o que fica são as peripécias, essas conexões humanas, ínfimas, pequenas, efémeras.

São efémeras, mas para mim duram a vida toda. São as coisas que vou recordar, na realidade. As fotos são parte do arquivo da memória visual da Humanidade. Mas para mim, de forma pessoal, quando comecei a fazer este trabalho, tratei de pensar – e isto é um pouco egoísta – que eu não faço este trabalho para transmitir ao mundo o que está a acontecer.

Sim, isso é parte dele, é a consequência. E neste aspecto sou um pouco egoísta, mas eu faço isto por uma questão pessoal, também, para entender o ser humano. Vi o melhor e o pior do ser humano nestes anos de trabalho. As coisas mais belas e as coisas mais horríveis [tal como no Haiti, contava-nos em 2010].

E isso faz-me tentar ser melhor ser humano e tentar que todas essas experiências e coisas que vi façam de mim uma pessoa mais compreensiva, mais aberta.

Imagens de outra época

Estamos a chegar ao nível em que as imagens de gente a fugir em comboios para o outro lado da Europa são de filme. O caos nas estações de comboio e o desespero. Não presenciei as imagens porque não estive na fronteira, poderei fazê-lo à saída. Mas as imagens de famílias a separarem-se, os maridos que têm de deixar as suas mulheres porque têm que voltar para combater...

É de outra época. Vi isto nos filmes e agora estou a ver de forma real. Até nas batalhas, não? Com paraquedistas atirando-se de helicópteros para assaltar um aeroporto no meio da cidade. Coisas que na Europa não se via desde a Segunda Guerra Mundial.


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Para mim o que fica são as peripécias, essas conexões humanas, ínfimas, pequenas, efémeras. As fotos são parte do arquivo da memória visual da Humanidade. Faço este trabalho para entender o ser humano.

Ucraniano caminha numa rua deserta depois do fim do recolher obrigatório, durante a invasão russa da Ucrânia, em Kiev. 28 Fevereiro 2022. Foto: Carlos Barria/Reuters
Ucraniano caminha numa rua deserta depois do fim do recolher obrigatório, durante a invasão russa da Ucrânia, em Kiev. 28 Fevereiro 2022. Foto: Carlos Barria/Reuters
Ucraniana dentro do carro depois de fazer as malas para sair da cidade portuária de Mariupol, 24 Fevereiro 2022. Foto: Carlos Barria/Reuters
Ucraniana dentro do carro depois de fazer as malas para sair da cidade portuária de Mariupol, 24 Fevereiro 2022. Foto: Carlos Barria/Reuters


A atmosfera neste lugar é diferente do que vi antes. Sempre me fascinou o Leste da Europa. A estética de regiões que fizeram parte da ex-União Soviética. Tenho um fascínio estético muito grande para fotografar. Agora tive oportunidade de fazer isso e muito mais.

Então, sair à rua é uma descoberta constante, de coisas, de imagens, de gentes, de rostos.

Bem-vindo a Bagdad

Para além disso, saio à rua e dou-me conta de que eu sou castanho. Para mim não é uma questão racial. Eu vivi na China cinco anos e com esta cara não podia passar despercebido. E aqui é um pouco assim também.

As pessoas olham-me. E acontecem coisas muito engraçadas, como no outro dia. Estávamos parados num “checkpoint”, numa caravana, eu conduzia um carro atrás, o carro que ia à frente era de uma pessoa que falava ucraniano e obviamente ela tentava resolver: “o carro que está atrás vem comigo, deixem-no passar”.

Vem um guarda e pede-me os documentos. Ele olha-me e eu digo: “Argentina”. Ele: “Maradona” [e um gesto de força].

E é muito engraçado, não é a primeira vez que me acontece. Aconteceu-me em Bagdad, ao aterrar. O oficial das migrações olha para o meu passaporte e diz “Argentina… América do Sul… Ah! Maradona! Bem-vindo a Bagdad!”.

Não é que goste necessariamente que seja assim, mas que ajuda, ajuda.

Empatia universal ou consequência da proximidade

Vi através de outros meios, não vi pessoalmente, mas inclino-me a pensar que sim, podemos estar perante crimes de guerra. Não sei quais os parâmetros a que se pode chegar.

O que tenho a certeza, sim – e isto é o que me surpreende, surpreende-me muitíssimo – é que há uma reação universal contra a Rússia, que é fascinante. Nunca vi uma reação desta forma. Empresas que decidem cortar laços, corporações que tinham ligações à Rússia, que cortam laços na Suíça, congelando algumas contas de bancos russos. Há realmente hoje uma espécie de sentimento universal, de que isto está errado.


Prateleiras vazias nos supermercados de Kiev, 28 Fevereiro 2022. Foto: Carlos Barria/Reuters
Prateleiras vazias nos supermercados de Kiev, 28 Fevereiro 2022. Foto: Carlos Barria/Reuters
O interior de um jardim de infância destruído por bombas russas, de acordo com militares ucranianos, em Stanytsia Luhanska, região de Luhansk, Ucrânia, 17 Fevereiro 2022. Foto: Carlos Barria/Reuters
O interior de um jardim de infância destruído por bombas russas, de acordo com militares ucranianos, em Stanytsia Luhanska, região de Luhansk, Ucrânia, 17 Fevereiro 2022. Foto: Carlos Barria/Reuters


E as pessoas estão a reagir. Hoje falava com um companheiro alemão que está na fronteira, estávamos a falar de histórias e coisas e ele disse-me que há gente comum, mães e pais, da Alemanha, Bélgica, Áustria, que estão a pegar nos seus carros pessoais, conduzem até à fronteira da Polónia, sozinhos, páram e oferecem boleia às mulheres com filhos e perguntam-lhes “aonde te posso levar?”.

Esse tipo de coisa, essa reação civil parece-me fascinante. Que não tem de ser só dos governos. Os governos são feitos por cidadãos. A consciência cidadã é uma coisa fortíssima e que tem muito poder. E voltando ao mesmo: é ver o pior do ser humano, mas vês também nisto as reacções mais lindas e mais humanas do ser humano.

É difícil ver o horror no quintal atrás da tua casa

Julgo que é difícil ver o horror no quintal atrás da tua casa. E sentir que tens de fazer algo. Isto também é uma realidade. Há sociedades que não reagem porque as coisas acontecem longe. Acho que há uma empatia porque há um sentido de pertença e de proximidade. Oxalá fosse assim com os conflitos que acontecem em África, que acontecem noutros lugares, com os migrantes que vêm da Síria.

Oxalá houvesse essa empatia. Mas há agora e ainda bem que existe. Oxalá essa empatia seja universal e não uma consequência da proximidade. E da identificação.


Mulher ucraniana caminha junto da câmara de Kiev durante o recolher obrigatório, depois da invasão russa, 27 Fevereiro 2022. Foto: Carlos Barria/Reuters
Mulher ucraniana caminha junto da câmara de Kiev durante o recolher obrigatório, depois da invasão russa, 27 Fevereiro 2022. Foto: Carlos Barria/Reuters

É um pouco assim, a rua está… podes sentir uma vibração estranha e um pouco desolada.

Há imagens que se repetem. Filas de gente para levantar dinheiro, filas de gente para as gasolineiras, filas de gente para as farmácias. Há supermercados que já começam a ter pouca comida.

Há recolher obrigatório. À noite não se pode andar e é perigoso. Não pelos crimes mas porque uma parte da população foi equipada com armas pelo governo para defender a sua pátria e receberam algum tipo de “instrução militar”, mas são basicamente civis, com armas, com pouca experiência, nervosos, stressados, cansados e com medo. Então isso é que faz com que seja perigoso.

Creio que há uma ansiedade, uma ansiedade de antecipação, como se o mundo todo estivesse à espera: “não sei o que vai acontecer amanhã, vamos ver o que vai acontecer amanhã”. A cada dia: “vamos passar uma noite tranquila? Vamos passar a noite no 'bunker' ou em nossa casa?” Essa ansiedade vai-se acumulando e vai ficando pesada. Sinto que o ambiente está pesado, o ar podes cortá-lo com uma faca.

Espero o melhor, preparo-me para o pior

Sim, é um pouco uma frase "cliché", mas parece a calma antes da tempestade. Não sei. Oxalá que não, oxalá me engane. Tento pensar este tipo de coisas. Não gosto de me enganar, mas oxalá que em tudo isto me esteja a enganar. Porque isso me prepara. Espero o melhor, mas preparo-me para o pior.

Sair daqui, quando? No final? Como definimos o final? Trabalho para uma empresa grande que tem muitos recursos e muitos companheiros e fotógrafos. Cada um tem o seu papel e eu estou a cumprir o papel do primeiro. E depois vem mais gente. E eu também devo pensar que tenho de voltar a casa. Tenho de descansar a cabeça e tenho de descansar o corpo.

Porque depois quero voltar cá. Há milhares de histórias que quero fazer depois.

Agora, calculo que serão mais dez dias. Quinze. Mas ainda não sei como vou sair. Não tenho ideia.

Talvez através da Polónia, Roménia, não sei. Já perdi a minha passagem. O voo foi cancelado, devolveram-me o dinheiro. Basicamente tive forma de vir e não tenho forma de ir. Depois procurarei uma. Mas por agora estou bem. Estou são e com uma boa equipa e à espera que as coisas corram bem. À espera de ter de sair e que, de alguma forma, isto não termine num massacre, mas num acordo de paz. E que as pessoas se possam entender, esperemos.

Senão, logo veremos o que fazer.



"Haiti: Olhar a tragédia", a primeira conversa com Carlos Barria.



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