Mil quilómetros ao volante fugindo da guerra. "Desejo voltar e não quero fazer um trabalho qualquer aqui"

É uma gestora de recursos humanos ainda a trabalhar de forma remota para o seu escritório em Kiev. Da capital ucraniana a Budapeste, na Hungria, encetou uma fuga de carro, apenas com a filha de 5 anos. Irina foi evitando o trilho dos bombardeamentos e dos alarmes de defesa antiaérea até que chegou à fronteira húngara. Em Budapeste procura alojamento para não ter que dormir no carro com uma criança pequena. E tenta reorganizar a vida, com o objetivo de voltar rapidamente a Kiev, evitando assumir tarefas na Hungria para as quais não se sente preparada.

22 mar, 2022 - 16:30 • José Pedro Frazão José Pedro Frazão, enviado especial ao Leste da Europa



Irina deixou a Ucrânia e a guerra com a filha Sofia, de 5 anos. Foto: José Pedro Frazão/RR
Irina deixou a Ucrânia e a guerra com a filha Sofia, de 5 anos. Foto: José Pedro Frazão/RR

Veja também:


Numa das alas da estação de Nyugati, situada no lado Pest da capital da Hungria, os voluntários vão prestando assistência a quem precisa de roupa, alimentação, produtos de higiene, até cartões para o telemóvel.

Uma mulher alta, vestida com um bom casaco, com um saco amarelo a tiracolo, procura informações na zona de acolhimento aos refugiados ucranianos. Traz pela mão uma criança de gorro e casaco polar azul, com os atacadores desapertados na bota esquerda. Chama-se Sofia, tem 5 anos e sabemos disso pela mãe, Irina, recém-chegada da Ucrânia, não de comboio mas ao volante.

"Vim de carro. É uma sorte ter um carro porque ele funciona como a minha casa. Passámos mesmo duas noites no carro já depois da fronteira. E ainda bem que temos carro. O nosso carro é a nossa casa. E é sempre um pequeno espaço onde podemos estar e descansar", explica esta ucraniana que atravessou a Ucrânia ao volante durante duas semanas até passar a fronteira com a Hungria.

A decisão de abandonar Kiev foi tomada quando as primeiras explosões foram escutadas no centro da capital onde vivia. As sirenes ecoaram e o medo instalou-se na família. Irina sentiu que não havia segurança também fora de Kiev e avançou para uma fuga familiar.

"Decidi retirar os meus pais de Kiev para o centro da Ucrânia, não muito longe de Mykolaiv. Não penso que estejam tão seguros no Inverno, mas os meus pais são idosos e não se conseguem movimentar. Se pudessem eu pegava neles, mas eles não podem", conta à Renascença esta natural de Kiev, enquanto a voluntária do acolhimento recolhe os seus dados para uma base de dados que vai permitir encaminhar Irina e a filha para o sistema húngaro de gestão de refugiados.

Ao longo desta fuga foi mantendo o contacto com os pais e com os amigos que permanecem não apenas em Kiev mas também em Kharkiv. Contam-lhes das vidas em subterrâneos, dos controlos militares, das bombas que caem nas cidades.


Apoio aos refugiados ucranianos Budapeste. Foto: José Pedro Frazão/RR
Apoio aos refugiados ucranianos Budapeste. Foto: José Pedro Frazão/RR


Sem plano, sem rumo, Ucrânia fora

E "viemos para aqui", suspira Irina. Como se Budapeste fosse apenas a cidade onde conseguiu finalmente pôr travões a uma jornada imprevista de mais de mil quilómetros.

"Vínhamos com amigos, mas eles decidiram ir para outro lugar e agora estamos aqui. E não sabemos exatamente o que fazer. A nossa vida mudou dramaticamente e foi destruída. É inacreditável", emociona-se naquela manhã de sol e céu limpo na capital da Hungria.

Irina ainda experimentou ficar uma a duas noites na Ucrânia Ocidental, onde a acalmia tem permitido acolher deslocados internos em massa com origem das zonas bombardeadas e invadidas pelas tropas russas.

"Mas ouvíamos sempre as sirenes e a pedirem para as pessoas irem para lugares seguros. Vim-me embora porque não quero que a minha filha fique assustada e tenha problemas do sistema nervoso. É horrível...", confessa antes de apertar os atacadores da pequena Sofia.

A mãe elogia a sua menina, pela forma como encarou a anormalidade de ser arrancada ao seu quarto em tão tenra idade. "Diz-me sempre que quer voltar para casa, para a sua cama, para brincar com os seus brinquedos", explica Irina.

Foi tudo muito rápido na saída de Kiev. Apesar de virem de carro, transportaram pouco mais que uma pequena mala com roupa para ambas.

"Nada é planeado. Não há tempo para planear, para estar calmo e com um pensamento claro. Movimentamo-nos de forma rápida de forma reactiva", conta agora de uma forma mais eloquente.

Trabalho novo e incerto longe de casa

Budapeste deixa para trás mais uma noite de temperaturas negativas e há vagas de ucranianos a chegar de comboio às duas estações principais da cidade.

À chegada estão montadas bancas com refeições quentes, roupas, cartões de telemóvel e comida para animais. Os voluntários juntam-se aos serviços oficiais de imigração que apontam as necessidades dos ucranianos.


Foto: José Pedro Frazão/RR
Foto: José Pedro Frazão/RR

A agente Fony mostra o formulário que vai preenchendo para casos como os de Irina. Aponta o número de pessoas de cada agregado, se trazem animais, quantas noites de alojamento são necessárias. Indicam onde podem encontrar habitação gratuita e até onde podem fazer um teste PCR à Covid-19.

É nesta fila que Irina procura obter mais apoio para as suas primeiras horas na Hungria, mesmo se a cabeça está constantemente ainda em Kiev.

"Quero voltar. É o meu país e eu adoro a minha terra. Tenho a minha vida organizada, por isso quero voltar à Ucrânia quando for seguro. Mas nesta situação não consigo prever quando isso vai acontecer. Talvez tenha que ficar aqui por um ou dois meses" , admite esta gestora de recursos humanos que ainda está a trabalhar de forma remota para a sua empresa.

A companhia é ucraniana, mas os recursos humanos e financeiros caíram a pique para um nível 10 vezes abaixo do normal. Irina questiona-se onde poderá haver um lugar seguro para trabalhar na economia ucraniana.

"Não sei quanto tempo a empresa vai poder continuar. Preciso de encontrar algum emprego. Não sei como poderei encontrar um trabalho aqui . Porque não quero fazer um trabalho qualquer. Quando se tem formação e um determinado estilo de vida, não se quer fazer um trabalho que nunca se fez na Ucrânia . Mas não sei, sabe, a vida está a mudar", volta a suspirar Irina enquanto fecha a burocracia do novo alojamento.

Será um choque de realidades. Os empregos à vista para as mulheres na Hungria estão em fábricas, em empresas de limpeza, nos supermercados e a tratar de crianças. No início da crise, o governo de Budapeste garantiu um cheque de 160 euros aos empregadores por cada refugiado que empregarem, mas a crise migratória ainda só agora ter começado numa altura em que a moeda local está fortemente abalada pelo impacto económico da guerra.


Artigos Relacionados