Olhar nos olhos as crianças refugiadas num campo que é "praticamente uma prisão”

O Papa Francisco regressou a Lesbos cinco anos depois da sua primeira visita a um campo de refugiados naquela ilha grega. Quem lá trabalha reconhece algumas melhorias, mas poucas e pede mais solidariedade dos políticos.

13 dez, 2021 - 06:47 • Cristina Nascimento , André Peralta (sonorização)



Cerca de 2.200 pessoas vivem atualmente no campo refugiados de Lesbos.
Cerca de 2.200 pessoas vivem atualmente no campo refugiados de Lesbos.

Oiça a reportagem no campo de refugiados na ilha grega de Lesbos

Jéssica tem 23 anos e uma filha, Daniela, de quase dois anos. Veio do Congo, grávida de seis meses, viagem que diz ter sido “verdadeiramente terrível”. A filha já nasceu aqui, no campo a poucos quilómetros de Mitilene, capital da ilha grega de Lesbos, o sítio que pela segunda vez recebeu a visita do Papa Francisco.

“É muito importante para nós vê-lo. Não tenho palavras para exprimi-lo. A sua vinda é muito importante para nós. É a primeira vez que o vejo assim e é mesmo muito importante”, repete, em entrevista à Renascença no fim da visita papal.

O Papa esteve no campo cerca de duas horas e desafiou o mundo a olhar nos olhos das crianças refugiadas. Chegou e foi embora. Partiu com um lamento: “passaram-se cinco anos desde a visita que aqui fiz com os queridos Irmãos Bartolomeu e Jerónimo. Depois de todo este tempo, constatamos que pouca coisa mudou na questão migratória”.

Jessica e a filha Daniela ainda estão no campo onde chegaram há dois anos. Não exatamente o mesmo, pois primeiro esteve alojada no campo de Mória, consumido pelas chamas em setembro de 2020.

O campo mudou, mas a vida continua difícil.


Testemunho de Jessica, refugiada no campo do Lesbos, conta os sonhos que tem para a vida adulta
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“Sonho em ser uma pessoa adulta. Continuar os meus estudos, trabalhar para a minha filha, assegurar a sua escolaridade, a sua saúde."

“Não é fácil, não é fácil”, confessa, considerando que a situação em que se encontra “não é normal”. “Uma criança como a minha devia ir à escola. Nós devíamos trabalhar, mas não temos direito a isso”, num lamento abafado pelo choro da filha.

Jéssica tem família no Congo com quem nunca mais conseguiu contactar. Está no campo sozinha com a filha. É muito nova, tem uma vida pela frente e sonhos que, na realidade, são direitos humanos.


A maioria das pessoas vive em contentores ao longo vários meses, algumas durante anos.
A maioria das pessoas vive em contentores ao longo vários meses, algumas durante anos.
Os contentores não têm casas de banho e algumas pessoas vivem em tendas.
Os contentores não têm casas de banho e algumas pessoas vivem em tendas.


“Sonho em ser uma pessoa adulta. Continuar os meus estudos, trabalhar para a minha filha, assegurar a sua escolaridade, a sua saúde… é isso”, enumera.

Este é o testemunho de uma das cerca de 2.200 pessoas que atualmente vivem no campo. Diz quem sabe que o campo atual tem melhores condições, até porque aqui estão pouco mais de duas mil pessoas e em Mória chegaram a ser quase 20 mil. Mas este campo era para ser provisório e, um ano depois, ainda está de pé. Houve melhorias, mas não muitas, diz Anastasia Spiliopoulou, da Cáritas Grécia.

“A maior parte das pessoas agora vive em contentores que têm condições completamente básicas, não têm cozinhas, os contentores, lá dentro, não têm casas de banho, há algumas pessoas a viver em tendas”, descreve. Anastasia compara viver neste campo “como se fosse viver em condições de viagem durante um período de tempo muito prolongado”.

Já Augusto César, da organização não-governamental Médicos Sem Fronteiras (MSF), descreve o local “como se fosse praticamente uma prisão”.

“É uma área cercada, as pessoas não podem ir e vir quando querem e também não podem sair da ilha quando querem”, acrescenta.

Augusto César gere uma clínica dos MSF especialmente dedicada às questões de saúde mental e diz que “todas essas restrições só aumentam essa sensação de que fizeram alguma coisa errada”.


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"Ao invés de dar um acolhimento humano e adequado, colocam as pessoas nessas condições de vida que não são dignas.” — Augusto César

Nesta clínica são seguidos neste momento cerca de 90 doentes. Estão de tal forma numa fase difícil da vida que Augusto nem consegue relatar uma história bonita dentro do campo.

“A nossa clínica é focada em saúde mental, casos complexos, problemas, como depressão, stress pós-traumático, ansiedade, pensamentos suicidas, são coisas muito comuns no campo. As histórias positivas são as pessoas que conseguiram o estatuto de refugiado, que conseguiram sair da ilha e seguir a vida em frente. Essas são as histórias positivas e que gostaria de contar e que eu gostaria de ver mais frequentemente”, diz.

Anastasia, da da Cáritas Grécia, lembra que “algumas pessoas já estão no campo há mais de dois anos e antes já viajaram durante algum tempo até chegar à Grécia. É como viver num período de espera prolongado”, descreve.

Augusto concorda e diz que esse impasse, a par das restrições de movimentos, “a parte legal, o processo de requerimento de asilo, é uma das principais causas de ter consequências negativas do ponto de vista do médico”.


Anastasia Spiliopoulou, da Cáritas Grécia, descreve condições de vida no campo de refugiados em Lesbos
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“A maior parte das pessoas agora vive em contentores que têm condições completamente básicas, não têm cozinhas, os contentores, lá dentro, não têm casas de banho, há algumas pessoas a viver em tendas.”

"As autoridades gregas têm tentado acelerar os processos, mas em média leva nove meses até que um processo de requerimento de asilo esteja terminado”, explica Anastasia, ressalvando que “depende muito de cada situação, dos procedimentos que são feitos. Pode ser mais rápido, pode ser muito mais demorado”, assegura.

O tempo de espera, a falta de liberdade e de uma vida normal. Augusto diz que quem aqui chega, não encontra o que espera.

“As pessoas vêm com essa bagagem, vêm em busca de apoio, em busca de serem acolhidas e ajudadas e na verdade o que elas encontram aqui é o oposto”, critica.

Este médico considera, por isso, que a vinda a Lesbos de pessoas como o Papa é importante, até porque, reconhece, do lado do poder político, os refugiados e migrantes muitas vezes são esquecidos e incentivados a não vir.

“Politicamente existe o esforço para evitar que essas pessoas venham para cá, para a Grécia, para a União Europeia. E quando elas chegam, ao invés de dar um acolhimento humano e adequado, colocam as pessoas nessas condições de vida que não são dignas”, reforça.

Também Anastasia considera que “a comunidade internacional, a Europa no seu todo e a comunidade internacional no geral, devia reconsiderar a forma como abordamos um assunto que está para ficar, não só na Europa, mas a nível internacional. As migrações não são uma coisa nova, existem há anos, desde sempre diria, e vai aumentar nos próximos anos devido às alterações climáticas”, prevê.


Visita do Papa Francisco ao campo de refugiados da ilha de Lesbos, na Grécia. Foto: Vatican Media
Visita do Papa Francisco ao campo de refugiados da ilha de Lesbos, na Grécia. Foto: Vatican Media

Por isso, adianta, seria preciso mais solidariedade.

“Nós [Cáritas] acreditamos que, tal como o próprio Francisco disse, que é o tempo para agir solidariamente. É isso que nós, na Cáritas, estamos a tentar fazer e é isso que gostaríamos de ver fazer a nossa sociedade, local, nacional e internacionalmente“, remata.

A Renascença quis saber o que pensa a União Europeia sobre o assunto. Questionando a representação dos 27 na Grécia, obtivemos um testemunho escrito no qual garantem que “as condições de vida nos campos são melhores” e sublinham que existe uma “forte redução do número de pessoas que chega à Grécia” pela rota oriental mediterrânica.

A UE diz ainda que está comprometida “na melhoria de vida das pessoas nas ilhas” e que a situação mostra que é preciso “uma resposta coletiva e eficaz”, lembrando que é nesse sentido que estão a “trabalhar de forma próxima com o Conselho e Parlamento Europeu”.


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