Foi uma vez o SEF. Capítulo 5: Casos polémicos

Entidade que tem a missão de avaliar e decidir sobre a entrada e permanência de estrangeiros em Portugal, ao longo da sua existência o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) acumulou algumas polémicas.

31 mar, 2023 - 06:30 • Celso Paiva Sol , André Peralta (sonoplastia)



Foi uma vez o SEF. Capítulo 5: Casos polémicos
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Foi uma vez o SEF. Capítulo 5: Casos polémicos

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Sendo uma entidade que tem a missão de avaliar e decidir sobre a entrada e permanência de estrangeiros em Portugal, é natural que ao longo da sua existência tenha acumulado polémicas.

A forma como esse poder foi exercido, terá sido contestado centenas ou milhares de vezes, mas alguns casos saltam à vista pela mediatização que tiveram. Ou, como é o caso da morte de um cidadão ucraniano no Aeroporto de Lisboa, em 2020, não só pela mediatização, como sobretudo pelas consequências – pelo peso que teve no próprio destino do Serviço.

Na década de 90, alguns bons exemplos. Em 1994, a angolana Vuvu Grace viu a sua entrada em Portugal recusada.

Vinha, na companhia da filha de seis anos de idade, visitar o marido - o também angolano João Sousé -, mas os documentos que trazia, e aquilo que disse que vinha fazer, não convenceram os inspetores do SEF do Aeroporto de Lisboa.


José Pestana, na altura diretor-geral adjunto do SEF, explicou numa declaração à imprensa que “o cidadão que afirma ser Sousé João Bruno tem-se apresentado perante as autoridades portuguesas desde que chegou a Portugal, com duas diferentes identidades e com duas distintas nacionalidades. Também a cidadã, supostamente angolana, a quem foi recusada a entrada em Portugal, não tem neste momento identidade confirmada nem estatuto nacional definido”.

Considerando que a questão estava a ser colocada numa perspetiva errada, João Pestana garantia que “o impedimento de entrada não significa menor respeito pelo princípio do reagrupamento familiar”.

Em causa estava a “necessidade de não ignorar, e muito menos premiar, práticas fraudulentas claramente indiciadoras do cometimento de falsas declarações, usurpação de identidade, e uso de documento falsificado”.

O SEF acabou por descobrir que o marido também já tinha entrado com documentos falsificados, e que ao abrigo do estatuto de asilo que lhe foi concedido já tinha recebido pelo menos mil contos – qualquer coisa como cinco mil euros em ajudas do Estado português.

Em protesto contra a decisão do SEF, Sousé João, o marido, iniciou uma greve de fome à porta do Aeroporto – iniciativa que contou com a adesão de associações de imigrantes e outras ligadas à Igreja Católica, mas sobretudo de diversas figuras de relevo do Partido Socialista.


Vuvu Grace. Braço de ferro à porta do aeroporto

Dia após dia, durante quase uma semana, houve quem também se juntasse à greve de fome – como o padre Firmino Cachada, houve quem por ali pernoitasse durante uma semana – como alguns elementos do SOS-Racismo; quem por lá passasse em solidariedade – como Maria Barroso, mulher de Mário Soares, o Presidente da República da altura; e quem se envolvesse de forma mais ativa – como o advogado Vera Jardim, e o seu jovem colaborador António Costa.

Foi aliás Vera Jardim que anunciou que o Tribunal de Instrução Criminal tinha contrariado o SEF, permitindo a entrada de Vuvu Grace no país, o que acentuou ainda mais as diferenças entre a oposição socialista e o Governo liderado por Cavaco Silva, em matéria de imigração.

Numa declaração sobre este caso, Dias Loureiro, o ministro da Administração Interna da altura, vincava essas diferenças: “enquanto nós defendemos uma integração com base no controlo das entradas, a política do PS nesta matéria foi, mais uma vez, que Portugal deve abrir as portas, escancarar as portas”.

Telletxea Maya. Dez anos de mal-estar diplomático com Espanha

Ainda na década de 90, outro caso mediático, mas desta vez com implicações sobretudo diplomáticas. O cidadão basco José Luis Telletxea Maya foi protagonista de um autêntico braço de ferro político e judicial, que se prolongou por quase uma década. Praticamente todo o tempo dos mandatos dos primeiros-ministros António Guterres e Durão Barroso, provocando sistemático mau estar com os vários governos de Espanha, liderados por Jose Maria Aznar.

O caso começa em 1994, quando a Polícia Judiciária detém Telletxea Maya para interrogatório na sua casa de Mem Martins, concelho de Sintra, no âmbito de um mandado de detenção da justiça espanhola. Constava da lista de suspeitos de pertencerem à ETA e Madrid queria a sua extradição.

Sem documentos, porque dizia que lhe tinham sido roubados quando veio viver para Portugal, Telletxea Maya sempre garantiu que nunca tivera qualquer ligação ao terrorismo. Numa das muitas entrevistas que concedeu, neste caso à RTP, o basco dizia: “não quero deixar Portugal nunca. Tenho aqui a minha família, os meus amigos, o meu emprego, e se for expulso para outro país será contra a minha vontade”.


José Luis Telletxea Maya. Fotos cedidas por Global Imagens
José Luis Telletxea Maya. Fotos cedidas por Global Imagens


A extradição foi negada em 1994, mas tudo muda dois anos depois, quando tenta embarcar num voo para Caracas com um passaporte falso.

É detido pelo SEF, e aí começa um longo circuito de decisões administrativas e judiciais, recursos, e muita pressão do Governo de Madrid.

Pelo uso do passaporte falso cumpriu sete meses de prisão. Pela inexistência de documentos – que a Espanha nunca lhe revalidou - o SEF também nunca lhe deu autorização de residência, o que determinou várias ordens de expulsão de território nacional, sempre contrariada por recursos judiciais. Do risco de extradição só se livrou muitos anos depois, quando a justiça portuguesa acabou por dar razão ao argumento de que não podemos extraditar pessoas para países que torturam detidos, como se dizia ser o caso da Espanha em relação a suspeitos da ETA.

Fernando Gomes, um dos vários ministros da Administração Interna que teve que gerir este caso - e foram pelo menos cinco - reconhecia no ano 2000 que pouco mais se podia fazer: “de recurso em recurso, esse cidadão espanhol foi procurando protelar a decisão de expulsão, e num Estado de Direito tivemos que aceitar esse longo percurso de recursos aos tribunais”.

Vistos Gold. Detenção inédita do diretor de uma Polícia

Já bem dentro do século XXI, em 2014, o SEF volta a dominar o espaço mediático pelas piores razões. O Departamento Central de Investigação e Ação Penal chamou-lhe "Operação Labirinto", embora rapidamente se tenha popularizado como o caso dos "Vistos Gold".

Dia 13 de novembro de 2014, coadjuvados pela Unidade de Combate à Corrupção da Polícia Judiciária, os procuradores do Ministério Público lançaram 60 buscas em diversas zonas do país.

Procuravam provas de corrupção, tráfico de influências, peculato e branqueamento de capitais; crimes alegadamente praticados no âmbito de processos de obtenção de Autorizações de Residência para Investimento.

Os investigadores diziam já ter indícios suficientemente fortes de que António Figueiredo – então presidente do Instituto de Registos e Notariado (IRN) – tinha montado um esquema de corrupção, colocando o organismo ao serviço de pessoas e empresas.

Uma autêntica rede de troca de favores, dizia o Ministério Público, que envolvia os vistos Gold, cursos em Angola, tratamento de doentes líbios e concursos públicos viciados.

Nesse dia, foram detidas 11 pessoas. António Figueiredo, como principal arguido, outros cinco funcionários do IRN, a secretária-geral do Ministério da Justiça, três cidadãos chineses e o diretor nacional do SEF. Manuel Jarmela Palos tornava-se no primeiro diretor de um serviço de segurança português a ser detido.


Manuel Jarmela Palos, ex-diretor nacional do SEF. Foto: Mário Cruz/Lusa
Manuel Jarmela Palos, ex-diretor nacional do SEF. Foto: Mário Cruz/Lusa

Era acusado de ter cedido a pedidos do presidente do IRN e do então ministro da Administração Interna Miguel Macedo para encurtar prazos de 33 processos, e de ter aceitado duas garrafas de vinho oferecidas por um cidadão chinês.

Manuel Palos esteve uma semana em prisão preventiva, durante a qual pediu a demissão do cargo, quase quatro meses em prisão domiciliária, e mais dois anos como arguido suspenso de funções, à espera do início do julgamento.

"A montanha nem um rato pariu"

Em julgamento, o coletivo de juízes arrasou a acusação do Ministério Público, o que ficou bem claro na sentença. Dos 21 arguidos julgados (17 individuais e quatro empresas), apenas quatro foram condenados, e mesmo esses por crimes que não estavam propriamente na génese desta investigação.

Miguel Macedo e Manuel Palos foram ambos absolvidos de todos os crimes de que eram acusados, tanto na primeira instância, como em sede de recurso na Relação de Lisboa.

à porta do Tribunal, Castanheira Neves, o advogado de Miguel Macedo, sublinhou que “o dr. Miguel Macedo foi atingido por um vendaval desencadeado pela acusação, que o aniquilou civicamente”, para concluir que “a montanha nenhum um rato conseguiu parir”.

Já António Figueiredo foi condenado em primeira instância a quatro anos e sete meses de pena suspensa, veredito que a Relação de Lisboa agravou para cinco anos.

No SEF, o único envolvido, Manuel Palos, voltou ao trabalho em 2017, quando acabou a medida de coação de suspensão de funções, e depois, em 2019, já absolvido pelo Tribunal, foi reintegrado na carreira de inspetor.

Dois anos depois, em setembro de 2021, viria a ser nomeado oficial de ligação em Madrid, e logo de seguida processou a Estado português, pedindo 147 mil euros de indeminização por vários anos em que esteve impedido de receber ordenados.

Ihor Homeniuk. O princípio do fim do SEF

O dia 12 de março de 2020, vai ficar para a história como aquele em que começou o fim do SEF. Ihor Homeniuk, um cidadão ucraniano de 40 anos, casado e pai de dois filhos menores, foi encontrado morto numa das salas do Espaço Equiparado a Centro de Instalação Temporária do Aeroporto de Lisboa.

Tinha chegado a Portugal dois dias antes, oriundo da cidade turca de Istambul, na posse de um visto de turismo. Na primeira linha de controlo, pouco depois das 11h00 da manhã, foi remetido para uma entrevista mais pormenorizada, que viria a ocorrer já por volta das 19h30 e na sequência da qual ficou a saber que a sua entrada em território nacional tinha sido recusada.


 Fotomontagem: Ricardo Fortunato/RR
Fotomontagem: Ricardo Fortunato/RR

As cerca de 40 horas que se seguiram incluíram uma ida ao Hospital Santa Maria com queixas de dores nos membros inferiores e no flanco esquerdo do abdómen; duas recusas do próprio para embarcar em voos que o levariam de volta a Istambul; o isolamento numa das salas - separado dos restantes passageiros que se encontravam no Centro; e uma sucessão de visitas que foi recebendo – de inspetores do SEF, de uma assistente da Cruz Vermelha, de seguranças privados, de mais inspetores do SEF, e finalmente de uma equipa do INEM, que viria a declarar o óbito às 6h30 da tarde de dia 12.

Judicialmente, o caso desenvolveu-se com relativa rapidez. Seis meses depois, no final de setembro desse ano de 2020, o Ministério Público acusou três inspetores do SEF de homicídio qualificado. O julgamento começou em fevereiro de 2021 e a sentença foi conhecida três meses depois. Dois inspetores foram condenados a nove anos de prisão, o outro a sete anos e meio.

Todas as partes recorreram para o Tribunal da Relação de Lisboa, que decidiu aumentar uma das penas, alinhando-as todas nos nove anos de prisão, e depois para o Supremo Tribunal de Justiça onde se manteve o resultado. Os processos transitaram em julgado e os três inspetores do SEF deram entrada na prisão de Évora, em agosto de 2023, para cumprir a pena.

Depois da condenação dos três inspetores que estiveram dentro da sala com o imigrante ucraniano, nas instalações do aeroporto de Lisboa, em março deste ano surgiram novos desenvolvimentos. O Ministério Público acusa o ex-diretor de Fronteiras de Lisboa, dois inspetores coordenadores e dois vigilantes.

A esta distância, e salvo decisões que ainda venham a ser tomadas noutras instâncias – como o Tribunal Constitucional -, o advogado da família ucraniana considera que este caso mostrou que no Aeroporto de Lisboa “não havia controlo, e não havendo controlo havia uma muito maior discricionariedade e liberdade por parte dos inspetores para agirem da forma que achassem mais conveniente para - não me esquecerei das palavras de foram ditas numa sessão do julgamento - diminuir o risco, para eliminar o risco”. O jurista não tem dúvidas em afirmar que “este era o pensamento das pessoas que ali trabalhavam”.

Sobre a gravidade dos factos, José Gaspar Schwalbach lembra que “existem convenções europeias que claramente definem as práticas de tortura, e aqui foi o que sucedeu”. O advogado não procura outras palavras e diz que, “a partir do momento em que temos alguém que está manietado, algemado, e continua a ser vítima de agressões, não existem outras definições melhores para tortura do que essas”.

Razão pela qual o advogado não aceita que se diga que a indemnização de 834 mil euros paga pelo SEF à família Homeniuk é demasiado elevada. Pelo contrário. “A verdade é que não é assim tão alta. É pouco. E é pouquíssimo para aquilo que fizeram uma pessoa passar ali no aeroporto. Dir-me-ão, globalmente foi é uma indeminização alta, mas foi baixa de mais para tudo o que fizeram”.


Três inspetores do SEF foram condenados no caso da morte de Ihor Homeniuk. Fotos: Lusa
Três inspetores do SEF foram condenados no caso da morte de Ihor Homeniuk. Fotos: Lusa

Uma opinião, como outras da mesma natureza, que o penúltimo diretor do SEF diz não corresponderam à realidade. Fernando Silva lembra que é “do tempo em que no aeroporto nem sequer existiam centros de instalação. Fui eu que montei as unidades de segunda linha para as entrevistas autónomas, e estou também quando é criado o Espaço Equiparado a Centro de Instalação Temporária”.

Com mais de 15 anos de trabalho no aeroporto, Fernando Silva diz que não pode subscrever “dois terços do que ouviu sobre o caso do aeroporto”.

A acusação judicial, o julgamento, a decisão política de avançar para a extinção do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, a opinião pública e publicada, a pressão partidária, tudo junto contribuiu para que houvesse uma quase unanimidade na condenação e aceitação das consequências. Quase porque nos vários tribunais por onde o processo já passou, os advogados que defendem os inspetores do SEF disseram sempre que Ihor Homeniuk não morreu por ter sido espancado, nem a fatalidade pode ser atribuída apenas àquelas três pessoas.

Ricardo Sá Fernandes, advogado de um dos inspetores, diz que a verdadeira história ainda está por contar, porque “o que aconteceu neste processo foi que sobre estes três cidadãos carregou a responsabilidade de uma morte, que na nossa avaliação não é deles”.

Enquanto defensor de um dos condenados, Ricardo Sá Fernandes admite “que alguma coisa correu mal nas circunstâncias em que este homem esteve detido à guarda do Estado português. Nós não queremos absolver o Estado português das responsabilidades que tem, e, no que diz respeito ao meu cliente, nas responsabilidades que ele possa ter também".

Mas o que não é verdade, acrescenta, "é aquilo que está vertido na sentença que os condenou, atribuindo-lhes uma responsabilidade - agora já não com a intensão de matar o cidadão ucraniano – mas com todas as outras circunstâncias, de terem agredido e batido, coisas que temos sempre sustentado que não aconteceram”.

Não negando a gravidade do assunto, mas recusando liminarmente que resulte de um comportamento sistémico dentro do Serviço, Acácio Pereira – presidente do Sindicato da Carreira de Investigação e Fiscalização – foi outra das pessoas que sempre se bateu pela clarificação do caso.

Lamenta que “ninguém tenha tido a coragem de dizer que este foi um caso isolado”, tal como consta do relatório da Inspeção Geral da Administração Interna (IGAI). Uma das versões “foi muito mediatizada e muito repetida, até porque estávamos em confinamento, mas depois não foi dada a mesma importância ao relatório da IGAI que dizia que não era um problema sistémico no SEF”.

Acácio Pereira considera que a IGAI foi pressionada pelo poder político que tentava justificar a extinção do SEF”, e embora tenha produzido um relatório que “não me enche de orgulho, porque isso só acontecia se dissesse que não havia lá nenhuma situação, deixa-me pelo menos satisfeito porque diz que é um caso isolado, e que não é uma situação sistémica”.

Já o penúltimo diretor do SEF, cargo que assumiu precisamente na sequência da restruturação lançada pelo Governo, admite que o caso do aeroporto pode ter precipitado o destino do Serviço, mas não acredita que seja a única explicação.

Fernando Silva considera que “o SEF já era muito contestado, nomeadamente pela falta de resposta ao aumento da dimensão da comunidade estrangeira em Portugal”.

Olhando para trás, Fernando Silva nota que “pelo menos desde 2012 que já havia alguma resistência relativamente à existência do serviço como serviço de segurança que conhecemos”.

Seja como for, apesar de muitas incidências, críticas, duvidas, adiamentos, negociações, até umas eleições antecipadas pelo meio, a restruturação lançada em dezembro de 2020 não teve retrocesso.

E embora a justificação oficial seja outra, é inevitável que este último caso, o da morte do ucraniano Ihor Homeniuk no Aeroporto de Lisboa, fique para sempre associado ao princípio do fim do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras.


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