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Reportagem em Gorringe

O Mar da mais alta Montanha

31 dez, 2024 - 16:08 • José Pedro Frazão (reportagem, áudio e vídeo) , Marta Pedreira Mixão (edição video) , Rodrigo Machado (ilustração) e Diogo Casinha (sonorização reportagem áudio)

O Monte Gorringe é a maior montanha subaquática da Europa Ocidental. Em 2024, a Renascença acompanhou uma expedição científica dinamizada pela Fundação Oceano Azul e outros parceiros públicos para cartografar a biodiversidade numa das mais singulares áreas protegidas portuguesas em pleno Atlântico.

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Portugueses à descoberta de Gorringe, a maior montanha subaquática da Europa
Portugueses à descoberta de Gorringe, a maior montanha subaquática da Europa

O mar está tão calmo que parece quase um lago, ouve-se no convés do Santa Maria Manuela. Em pleno Oceano Atlântico, 240 quilómetros a oeste-sudoeste do Cabo de São Vicente, os quatro mastros do veleiro sinalizam a presença do antigo bacalhoeiro da frota da Terra Nova. Um dos mais históricos navios portugueses do século XX está agora ancorado numa das mais importantes referências geológicas e oceânicas do país.

Nas águas do Gorringe, tudo parece único nestes dias de setembro. Quantas são as ocasiões em que um navio navega por cima de uma montanha, quantas vezes se escala um monte a partir do topo, quão raros são os lugares que juntam correntes de vários mares e cientistas de tantas disciplinas de um país cujo mar é maior que a terra?

Tudo é fascinação a bordo deste navio construído há 87 anos em pouco mais de dois meses. Foi reconstruído para servir de casa e laboratório a empreitadas como esta. Na maior expedição científica recente em Portugal, quatro dezenas de cientistas e mergulhadores de 14 instituições científicas juntaram-se durante três semanas ao projeto promovido pela Fundação Oceano Azul, Oceanário de Lisboa, Instituto da Conservação da Natureza e Florestas e Marinha Portuguesa, para conhecer melhor a maior montanha submersa da Europa Ocidental, situada em mar português.

O Monte ou Banco Gorringe é um sistema montanhoso oceânico com 200 quilómetros de comprimento e 80 quilómetros de largura, que se ergue por 5 mil metros a partir dos fundos oceânicos. Formou-se no Atlântico a partir da convergência das placas tectónicas Africana e Euroasiática. É uma zona de grande atividade sísmica e durante muitos anos foi-lhe atribuído o epicentro do terramoto de 1755, antes de novos estudos no século XX apontarem para outras alternativas possíveis.

Modelo 3D da montanha subaquática Gorringe
Modelação do Monte Gorringe, Marinha Portuguesa (2024)

As fitas métricas podem confundir quando as aplicamos no mar, para aferir a profundidade desta grande montanha. O Gorringe sobe dos 5 mil aos 200 metros de profundidade, onde se estabelece uma espécie de planalto de onde emergem vários picos.

Dois deles, separados por cerca de 55 quilómetros, chegaram a estar emersos na última glaciação e encontram-se agora muito próximos da superfície. Os picos Gettysburg e Ormonde estão a cerca de 25 metros e 35 metros abaixo da linha de água, respetivamente.

Se o mar não fizer grandes ondas, a maior montanha submarina portuguesa reluz em grande plano até onde o engenho humano consegue colocar (e fazer colocar) a vista e a audição.

É a 12.ª vez que José Tourais mergulha no Gorringe em quase 50 anos de carreira. "É incrível estar no meio do Oceano, saltar para a água e tocar no fundo do mar". O coordenador das operações de mergulho desta expedição tem 70 anos. A sua larga experiência não o impede de se maravilhar com o que vê, nem de demorar a compreender as correntes dos cumes submarinos. "Geram ali hidrodinâmicas que por vezes temos dificuldade em entender. São movimentos de águas que andam ali naqueles montes e que fazem fluir uma biodiversidade muito interessante".

Esta é uma das singularidades do Gorringe. Cruzam-se as correntes do Mediterrâneo com as do Atlântico Norte e Sul que sobem as vertentes da montanha numa coluna de águas frias, carregadas de nutrientes trazidos dos fundos oceânicos. São consequências dos afloramentos ou 'upwelling' dessas correntes que transformam o Gorringe num "hotspot de biodiversidade', na linguagem dos especialistas.

"São zonas ricas numa grande quantidade de biodiversidade porque, no meio da coluna de água, de repente encontramos substrato, ou seja, zonas rochosas onde se podem agarrar as espécies. Encontramos os corais, as esponjas, muitos animais com nomes muito diversos, que só vivem se tiverem uma zona onde é possível as espécies estarem fixas e não andarem na coluna de água", explica Ester Serrão, a coordenadora dos trabalhos científicos a bordo do Santa Maria Manuela. Cabe aos mergulhadores recolherem amostras de diversas espécies presentes nos picos Gettysburg e Ormonde, descendo até profundidades em torno dos 50 metros, dando bom uso aos 707 mil litros de ar comprimido nas garrafas que levaram.

"Gerardias, para ti, Márcio!" Com um sorriso nos lábios, o mergulhador Fred Curtaz acaba de trazer do Ormonde várias amostras de coral. Vão ser tratadas por Márcio Coelho e Duarte Frade, do Centro de Ciencias do Mar da Universidade do Algarve. As amostras de corais dourados e gorgónias (corais moles) são colocadas imediatamente num tanque e etiquetadas. "O objetivo é avaliar a diversidade de corais, tanto com a taxonomia tradicional como com ferramentas moleculares, DNA e RNA. Preservamos amostras para estudos de genética e de genómica", explicam os investigadores algarvios.

Uma das espécies recolhidas por Fred a 57 metros de profundidade chama a atenção do deck. É uma gorgónia roxa, de uma "floresta inteira lá em baixo", assegura o mergulhador francês. É daqui que Márcio Coelho pode retirar matéria para perceber porque aparece aqui esta espécie e até mesmo fazer um rigoroso 'bilhete de identidade' da mesma.

"Esta espécie foi chamada de Paramuricea clavata, considerada endémica do Mediterrâneo. Nós temos duas variantes em Portugal Continental, uma amarela e uma roxa. Demonstrámos com genética e estudos de biologia reprodutiva que, na verdade, o que aparece em Portugal são espécies distintas do Mediterrâneo. E dentro das que estão em Portugal, a amarela e a roxa são duas espécies diferentes. O passo seguinte é identificar se esta espécie roxa que está aqui [no Gorringe] é a do Mediterrâneo ou se é a roxa que aparece em Portugal Continental", detalha o investigador da Universidade do Algarve.

A bordo do Santa Maria Manuela, o processo de preservação destas amostras é essencial para depois poder extrair DNA e RNA e fazer a sequenciação para analisar os dados em laboratório nos meses seguintes. Da expedição saem 190 espécies para um algário e para o BioBanco Azul Português.

Investigadores encontram coral dourado no Gorringe
Investigadores encontram coral dourado no Gorringe

O cientista, por vezes, é também mergulhador. João Franco, investigador do Centro de Ciências do Mar e do Ambiente do Instituto Politécnico de Leiria, vai ao mar buscar as macroalgas que estuda. "Encontrei uma fusão de florestas de kelp (algas) misturadas com corais, neste caso gorgóneas. A mistura destas duas espécies não é muito habitual", relata, depois de mais um mergulho no pico Ormonde.

A vastidão de florestas de laminárias impressionou o cientista-mergulhador, habituado a encontrá-las em zonas menos profundas do Continente. "Aqui, a transparência da água permite que a luz chegue mais fundo e que elas consigam fazer a fotossíntese. Este acontecimento é único".

A transparência da água permite que a luminosidade penetre até profundidades incomparáveis face às turvadas zonas costeiras. "Até aos 80 metros ainda conseguimos encontrar aqui florestas de algas que conseguem viver apenas com a fotossíntese", complementa Ester Serrão, que vai acompanhando todos os movimentos da expedição.

No final dos trabalhos, contabilizaram-se 55 espécies de algas e 12 espécies de corais. Ao cabo de 172 mergulhos e 128 horas de imersão, os mergulhadores, guiados pela coordenação científica da Expedição e pelas salvaguardas de segurança definidas por José Tourais, fizeram a análise de 84 quadrículas de onde extraíram fauna e flora para análise.

A dois metros da zona onde chegam as algas e os corais, Marco Frade está sentado a manejar o seu implacável bisturi. Com bastante paciência e minúcia, este técnico do Aquário Vasco da Gama percorre as ramificações das algas recolhidas em busca de seres mais pequenos. Esponjas, anémonas e outros pequenos organismos vêm agarradas às estruturas trazidas do mar.

"Este é o primeiro processo. Depois segue lá para baixo para a parte de microscopia e lupa para poder identificar a espécie com mais informação", explica Marco Frade, referindo-se ao trabalho suplementar no piso inferior do Santa Maria Manuela conduzido por Duarte Frade, do Centro de Ciências do Mar da Universidade do Algarve, e Ana Hilário, do Centro de Estudos do Ambiente e do Mar da Universidade de Aveiro.

"Há umas listas de espécies com as quais comparamos estes animais, para ver se há coisas novas e se todos os registos estão feitos", explica a investigadora especializada em ecologia do mar profundo, cujo microscópio e lupa estão alojados num canto do salão onde acontece de tudo, das 3.700 refeições e 2.626 cafés tomados na expedição às palestras diárias sobre disciplinas de ciência ou organização de trabalho.

Um trabalho de filigrana

Ana Hilário, habituada às profundezas do oceano, sobe ao convés para espreitar a recolha dos organismos de pouca profundidade que vai depois analisar.

"Para mim, esta expedição também está a ser uma aventura. É interessante, porque conseguimos fazer um bocadinho de tudo e não está desligado da base lá em baixo. Pessoas que trabalham em dois ambientes distintas estão juntas aqui a nível científico. Mesmo nos métodos de amostragem, nunca trabalhei com ninguém para fazer mergulho. Trabalho sempre com robôs e submersíveis. Portanto, isto para mim é tudo completamente novo".

Investigadores procuram novas espécies em Gorringe
Investigadores procuram novas espécies em Gorringe

A "vizinha científica" de Marco Frade faz bastante barulho. A bióloga Gabriela Borer, está a filtrar água para recolher DNA ambiental com recurso a uma ruidosa bomba peristáltica que faz a água passar pelo núcleo.

"Os organismos, quando estão na água, acabam sempre por libertar alguma fonte do seu DNA para a água. Filtrando essa água e extraindo esse DNA, podemos depois analisar através de uma técnica chamada 'DNA Metabarcoding', explica esta técnica do CIBIO - Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos da Universidade do Porto.

Se uma parte relevante de uma montanha tão grande passa por um microscópio, há ainda muito que se esconde na própria água do Gorringe, trazida em amostra pelos mergulhadores de profundidades em torno dos primeiros 50 metros da montanha.

O DNA que fica no filtro pode ser extraído mais tarde em laboratório, de onde podem vir notícias sobre a biodiversidade do Gorringe.

"O metabarcoding funciona mais ou menos como quando entramos numa loja e fazemos a leitura de um código de barras de um produto para o identificar. Nós conseguimos fazer isso também com os animais, plantas, algas, todos os organismos, em grande escala", explica Gabriela.

A Maternidade Gorringe

O confronto entre o DNA recolhido e as listas existentes de espécies complementam a identificação morfológica que é feita pelos cientistas a bordo. Vai permitir saber também se as populações de macroalgas, corais ou gorgónias do Gorringe reproduzem-se entre si ou se estão ligadas às mesmas espécies que se encontram na costa de Sagres ou na Madeira.

"Não se sabe se é tudo a mesma população, num contínuo entre estes montes submarinos, ou se cada monte submarino tem uma população única. Isso tem muita importância em termos de conservação. Se forem populações distintas, que não se reproduzem umas com as outras, e se uma delas desaparecer, as outras serão diferentes", sustenta Ester Serrão.

A professora da Universidade do Algarve compara as florestas marinhas do Gorringe a berçários para o crescimento das espécies que se encontram no estado adulto nesta zona do Atlântico. " As espécies que se vão reproduzir acabam por procurar zonas abrigadas, onde depois os juvenis permanecem durante essa sua fase até chegarem ao estado adulto. A proporção de juvenis que sobrevive até ao estado adulto é maior se tiverem abrigo e uma zona boa para se alimentarem".

Os mergulhos confirmaram a presença de muitas espécies em reprodução e muitos pequenos animais. As referidas gorgónias roxas, por exemplo, estavam em fase reprodutiva. Foi mesmo observada a emissão de gâmetas em vários corais para fecundação na água.

"Eles libertam gâmetas - os óvulos e os espermatozoides - para a água e, nalguns casos, é lá que se encontram. Noutros casos, eles retêm os óvulos, libertam apenas os espermatozoides para a água e depois as fêmeas emitem a larva já depois da fecundação", exemplifica Ester Serrão.

A deteção de coral a baixas profundidades com muitos indivíduos em estado reprodutivo é um bom sinal de estabilidade de uma população saudável desta espécie, conclui esta cientista. E podem ser mesmo muito antigas, como no caso do coral dourado. "Nalgumas destas espécies, como as savaglia, os indivíduos podem viver mais de 2000 anos. São colónias cujo crescimento se iniciou ainda antes de Cristo", complementa Emanuel Gonçalves, líder e co-Cientista-Chefe da expedição da Fundação Oceano Azul.

Em alto mar com os mergulhadores

Entramos num semi-rígido da Marinha em alto mar, ajudados por uma ondulação de pouco mais de um metro. Conseguimos molhar as mãos na imponente massa de água do Atlântico, poucos metros acima do pico Ormonde do Gorringe.

Vamos ao encontro dos botes Maria e Manuela onde são feitos mergulhos ao largo do Santa Maria Manuela, navio a que pertencem estes dois zodíacos - em rigor, embarcações Zodiac. Dos mergulhos do Maria sairão as amostras de algas e corais esperadas para análise no convés.

Com água límpida e a uma temperatura próxima de 20 graus, os mergulhadores têm boa luminosidade em toda a profundidade da sua operação, até cerca dos 50 metros. Entre mergulhadores científicos e técnicos, há profissionais experimentados em ambientes menos favoráveis.

"É uma equipa de Cristianos Ronaldos do mergulho", dizia-nos José Tourais. "Às vezes é difícil gerir um bocadinho um aspecto ou outro, o ego. Mas são mergulhadores acima da média, habituados a ambientes mais escuros, com água mais fria".

A principal preocupação é a interpretação das fortes correntes do Gorringe, tendo em conta os efeitos que a montanha submarina provoca. Nos dias anteriores, Tourais chegou a cancelar ou adiar mergulhos. "Tive que trocar equipas porque não estavam bem preparados para lidar com aquilo". Durante a expedição, as correntes obrigaram alguns mergulhadores a subidas mais rápidas, o que levou ao uso de oxigénio preparado a bordo do Santa Maria Manuela, apetrechado ainda com uma câmara de descompressão e a presença permanente de uma equipa médica especializada.

Câmara, Oasis, ação

Depois de observarmos o início dos mergulhos no Maria, o semi-rígido da Armada leva-nos ao Manuela, onde se prepara o lançamento ao mar de uma estrutura preperada para registar em video espécies a profundidades entre os 50 e os 100 metros. São os chamados LANDER, onde as câmaras estão instaladas de forma calibrada de modo a obter imagens "em estéreo" que permita fazer medições completas da fauna e flora em zonas onde os mergulhadores não conseguem ir.

Este método permite ainda a aproximação de espécies que se afastariam dos mergulhadores.

"A capacidade de medir o comprimento exato de um animal reduz a quantidade de peixes que temos de matar para medir o tamanho da população. Normalmente, os gestores da pesca pescam peixes, medem-nos e aprendem algo sobre o crescimento populacional com base nas distribuições de tamanho. Agora podemos fazê-lo debaixo de água ", explicaria mais tarde Rick Starr, do Moss Landing Marine Laboratories, da State University de São José, na Califórnia. No total foram colocadas 43 estações com câmaras junto ao fundo marinho nas três semanas de expedição. embora limitadas a 15 dias, por via de uma tempestade que obrigou a expedição a abrigar-se por 3 dias em Portimão.

Fotos: Jordi Chias (clique na seta para ver a fotogaleria)
Fotos: Jordi Chias (clique na seta para ver a fotogaleria)

Antes de lançar o aparelho, os técnicos aguardam a melhor compreensão das correntes. A descida do Lander até aos cumes ou zonas onde possa "aterrar" na montanha implicam o risco de poderem ficar presos ou mal colocados na superfície onde vão assentar durante algum tempo.

"É raro, mas aprendi há muitos anos que quando se coloca algo no oceano, deve esperar perdê-lo.A água salgada pode entrar, um selo pode romper-se, é algo que acontece. Mas, no geral, tivemos muito sucesso a desativar os sistemas de câmaras e a recuperá-los", contaria Starr no regresso.

À medida que nos aproximamos do semi-rígido Manuela, uma melodia ecoa neste pequeno ponto do mar, nos minutos que precedem o lançamento dos Lander ao mar. "You're my wonderwall", cantam os Oasis. Mas os irmãos Galagher não são sereias do Gorringe. Saem de uma coluna sem fios ligada ao telemóvel de Emerson, o piloto-DJ do barco dos Lander.

Quente e Frio

Ainda nessa tarde, havia uma outra missão de médio prazo a cumprir. A partir do semi-rígido Manuela, os mergulhadores depositaram no pico Ormonde do Gorringe instrumentos de alta precisão que durante um ano vão registar as temperaturas nesta zona da montanha submarina.

As variações de quente para o frio são reflexo da mistura de correntes. No espaço de 30 metros, entre a superfície e o topo do Ormonde, as temperaturas podem variar até 7 graus, de acordo com João Franco, do MARE do Politécnico de Leiria. Genericamente, a água do mar à superfície no Gorringe esteve em torno dos 20 graus centígrados.

Os cientistas querem saber mais sobre as variações de temperaturas, até porque nos Açores as ondas de calor no mar foram particularmente graves, com impactos na fauna e no desaparecimento de grandes florestas de algas. Particularmente intrigante foi a descoberta de um pico no Gorringe onde não se encontrou nada mais que rocha, sem qualquer vegetação e a presença apenas de corais mortos no topo.

"Não estávamos cá para saber o que aconteceu nessa altura. No entanto, podemos propor a hipótese de que o efeito destas ondas de calor que ocorrem no oceano Atlântico, terá causado este desaparecimento mesmo nesse pico", sugere Ester Serrão da Universidade do Algarve.

Uma questão de densidade

Esta especialista acredita que, devido à radiação solar, a água superficial aquece muito, ficando menos densa, flutuando sobre uma camada mais densa de águas mais frias no fundo.

"Esse aquecimento forte faz com que haja uma barreira para a mistura entre as águas fundas com as da superfície. A barreira é simplesmente a diferença de densidade. Como a riqueza deste monte submarino deve-se às correntes de águas frias, que vêm dos fundos e que trazem nutrientes dos fundos para a superfície, se encontrarem uma barreira de densidade no meio da coluna de água muito forte, isso pode impedir a mistura das águas e fazer com que as águas frias não cheguem mesmo ao topo da montanha".

Ester Serrão acredita que esta barreira provocada pela água superficial muito quente pode explicar a ocorrência de um dos picos com corais mortos, sabendo que existem florestas marinhas mais abaixo.

Defender os mais velhos do mar

A profundidade do Gorringe servirá portanto de refúgio climático para determinadas espécies mais intolerantes ao calor como as florestas de algas castanhas.

"Tal como nos meios terrestres, o topo da montanha pode ser um refúgio para as espécies que não suportam calor, aqui, ao contrário, as espécies que não suportam calor ocorrem mais fundo, se ainda tiverem neste caso luz suficiente para viver, que é o caso aqui no Gorringe."

Ester Serrão lembra que na história das alterações climáticas, há avanços e recuos na extinção e colonização de espécies que vão alterando a diversidade das populações de cada espécie.

"São as populações mais antigas que retêm a maior diversidade genética dentro da espécie e existem em zonas onde, apesar das alterações climáticas do passado mais quente ou mais frio, persistiram sempre, não se extinguiram localmente. É o caso do Gorringe. As populações mais antigas têm muito valor de conservação que não é recuperável , se extinguir algo que demorou milhares ou milhões de anos a evoluir. Não vai recuperar dentro da escala de tempo das gerações atuais. E portanto é uma urgência conservar os refúgios climáticos que ainda restam."

ROV em ação

Para conhecer mais o fundo numa escarpa de 5 mil metros, a única opção é usar um veículo remotamente operado. Esperava-se que o ROV da Universidade do Algarve pudesse operar até aos 200 a 300 metros de profundidade, mas um acidente no primeiro dia cortou o cabo na hélice e, depois de uma reparação em alto mar, a operação foi limitada ao máximo de 155 metros.

Os trabalhos documentaram habitats prioritários de conservação já estudados em expedições passadas como os recifes. Nova foi a informação recolhida sobre os bancos de areia submersos, listados também na diretiva Habitat.

"Há uma diversidade de habitats de sedimento biogénico, de areias resultantes de coral, de conchas e de algas calcárias", explica Jorge Gonçalves, do CCMAR, daquela Universidade. O coordenador dos trabalhos do ROV sublinha o registo da existência de grutas, que não estavam documentadas e também fazem parte dos habitats da diretiva europeia.

Ficaram documentadas espécies prioritárias de conservação como as florestas de macro-algas castanhas, os bancos de maerl, e os jardins de coral. "E uma coisa que é quase o ex-líbris do Gorringe, que são os corais negros. Negros só por dentro, por fora são brancos".

Entre as descobertas mais eletrizantes da expedição estão as raias que ali se reproduzem. "Já estava reportado noutras expedições, mas, de facto, agora chegou-se à conclusão que as raias elétricas ou tremelgas ali eram só fêmeas , ficando registada a associação a um habitat essencial para os peixes". As imagens ficaram gravadas para a posteridade.

Gorringe, estação de serviço para baleias

Há mais video nesta expedição, concretamete mais 268 horas de gravações.

Gravitando na órbita do Santa Maria Manuela, uma outra equipa concentrava-se nas áreas adjacentes aos picos do Gorringe. A bordo do catamarã "Feelgood", quatro cientistas procuravam monitorizar toda a actividade de aves e de mamíferos marinho,as chamadas "espécies pelágicas", ou seja, que se movimentam na coluna de água.

Para captar melhor a mega-fauna, como golfinhos, baleias , tubarões ou tartarugas, usaram-se câmaras com isco, denominadas BRUV (Baited remote underwater video) que atraem as espécies a um isco colocado junto a câmaras que os filmam na totalidade.

A 10 metros de profundidade, as câmaras ficavam a gravar durante duas horas numa zona periférica face aos picos do Gorringe. Este trabalho ficou a cargo de Julien Magne, especialista de uma das parceiras internacionais da expedição, o Marine Futures Lab, da Austrália.

Por câmaras ou por observação em mar aberto, os cientistas encontraram tartarugas e mais de sete espécies de cetáceos, como golfinhos oceânicos. E baleias, muitas baleias.

"As grandes baleias utilizam esta área como uma zona de descanso e de alimentação durante as suas migrações. Uma das grandes surpresas que tivemos nesta expedição foi a observação de muitas baleias-de-bico. São dos animais menos conhecidos em termos de cetáceos, porque são grandes mergulhadores de profundidade. Passam horas, quase quatro horas debaixo de água. Quando estão à superfície, tomam muito pouco tempo. Vimos três espécies diferentes observadas durante a campanha", explica Joana Castro, da Associação para a Investigação do Meio Marinho, responsável por monitorizar as espécies de mamíferos marinhos e tartarugas.

Sabe-se mais sobre estas baleias, por norma, quando vão morrer à costa. No alto mar, a opção é estudá-las acusticamente. Entre os cliques e assobios de baleias e golfinhos, a expedição recolheu 40 registos acústicos.

No âmbito das aves, foram identificadas 12 espécies, algumas prioritárias para a conservação, como a cagarra e o roque -de-castro, registadas por um elemento da Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves.

Golfinho comum avistado durante expedição à montanha subaquática Gorringe. Foto: Fundação Oceano Azul
Golfinho comum avistado durante expedição à montanha subaquática Gorringe. Foto: Fundação Oceano Azul
Cagarra avistada durante expedição à montanha subaquática Gorringe. Foto: Fundação Oceano Azul
Cagarra avistada durante expedição à montanha subaquática Gorringe. Foto: Fundação Oceano Azul

Os tubarões não morderam o isco

Não foi por falta de isco que os tubarões não apareceram ( na verdade apenas nos 28 pontos de amostragem de câmaras a flutuar em 139 imersões. 111 quilos de isco - e muito mais não saiu das câmaras frigoríficas, sobretudo de sardinha - não chegaram para atrair mais do que um único tubarão.

A falta destes predadores de topo esteve no topo das conclusões preliminares da expedição. Emanuel Gonçalves, da Fundação Oceano Azul, lembra que o tubarão azul é das espécies mais capturadas em todo o Atlântico Norte e também em Portugal.

"Muitos destes organismos são juvenis, portanto ainda não sequer chegaram à idade de reprodução. E, portanto, a ausência de predadores é um sinal de alerta de facto de que aqui nesta área, apesar dos enormes valores naturais existentes, faltam alguns componentes importantes da biodiversidade", afirma o líder da expedição.

Palangre foi a palavra que atravessou toda a expedição como símbolo da ameaça sobre as espécies deste santuário. As atividades de 'pesca de palangre' implicam a colocação de extensas linhas que podem ter algumas dezenas de quilómetros, onde os anzóis estão suspensos. "Tradicionalmente eram dirigidas ao espadarte e ao atum. Mas hoje apanham, essencialmente, tubarões", explica Emanuel Gonçalves.

Ao longe, a partir do veleiro Santa Maria Manuela, vemos a silhueta branca do navio hidrográfico Dom Carlos I, da Marinha Portuguesa. Para além de transportar jornalistas e cientistas e até um bote de apoio para os mergulhadores ao longo da expedição, a sua missão mais relevante foi executada antes do arranque das operações.

Sentado no seu camarote, o comandante da embarcação, Antunes Nunes, aproveitou uma fase de ondas menos pronunciadas para explicar como se pode fiscalizar uma zona tão sensível.

"A Marinha tem radares ou sistemas de rádio que permitem fazer o acompanhamento e a fiscalização neste espaço. Existe atualmente um forte investimento no desenvolvimento de veículos aéreos não tripulados, que podem ajudar na fiscalização e que ampliam as capacidades dos navios que andam permanentemente no mar a fiscalizar distâncias superiores e a manter a ordem dos preceitos legais no espaço marítimo nacional", exemplifica o homem que comanda o Dom Carlos I.

"Num cenário hipotético, caso se justifique, existem meios como, por exemplo, hidrofones que permitem fazer caracterização de assinaturas acústicas, para verificar, por exemplo, os navios que passam nestas áreas e que exercem atividades de pesca ou outro tipo de atividades. Existem dados, por exemplo, de AIS ( Sistemas de Identificação Automática) que permitem correlacionar e saber as localizações dos navios ou o seu 'não uso' ser detectado como completamente suspeitos", complementa o capitão-de-fragata Antunes Nunes, que comanda o navio desde Fevereiro.

A ajuda da Marinha

Em Julho, ao longo de 130 horas de trabalhos, o NRP Dom Carlos I completou os levantamentos batimétricos do Banco do Gorringe, com recurso a sondas multifeixe, que permitiu fazer um modelo tridimensional desta montanha submarina.

"Antes de poder planear as zonas onde se pode ou não mergulhar, de acordo com as diferentes gamas de profundidades, foi necessário fazer levantamentos hidrográficos. Já existiam algumas campanhas feitas mas, como é uma área muito grande, não existia um levantamento completo do Gorringe", explicao comandante do navio.

É uma missão que se integra no esforço de mapeamento do mar português, nomeadamente no programa SEAMAP 2030, do Instituto Hidrográfico, que pretende fazer a cobertura batimétrica completa de todo o espaço marítimo português até 2030.

O Dom Carlos I - a par do navio hidrográfico "gémeo" Gago Coutinho - foi cedido pelos EUA na segunda metade dos anos 90 e transformado em navio científico, depois de ser utilizado pelos norte-americanos como navio de vigilância anti-submarina a partir de 1989.

Para fazer o mapeamento do mar, está equipado com sensores debaixo do casco que permitem fazer a recolha de informação batimétrica de alta densidade em grandes fundos ( operando para profundidades dos 20 aos 11 mil metros) e elementos oceanográficos como informação de correntes, recolha de amostras de água e parâmetros físicos de circulação do oceano.

O nome desta montanha submarina está ligada a este tipo de trabalhos. Gorringe é o apelido do comandante do navio hidrográfico que referenciou esta montanha submarina pela primeira vez a 6 de Setembro de 1875. Henry Gorringe comandava o navio "Gettysburg" que transportava uma equipa do Serviço Hidrográfico dos Estados Unidos no âmbito de uma operação de mapeamento do fundo oceânico.

Mais lixo, mais pressão humana

No Atlântico mais límpido, os mergulhadores também encontraram lixo marinho. "Numa hora ou duas, encontrei uma tampa de sanita, uma tábua, meia dúzia de sacos de plástico e de embalagens, como uma garrafa de água, tudo à superfície", diz José Tourais, o veterano coordenador das operações de mergulho.

Plásticos à superfície e restos de linhas de pesca debaixo de água, são exemplo das peças que não deviam estar no cenário. "Estamos à espera de chegar a um sítio com umas águas puras e pristinas e damos com aquilo. Choca um bocadinho".

Antigamente Tourais não via disto no Gorringe. "Nestes 26 ou 27 anos, que eu já lá vou, claro que aumentou a pressão da pesca, do ambiente que há nos mares, que estão cada vez mais cheios de plásticos, com mais coisas a flutuar. São coisas que antigamente não via e que agora observei".

As marcas da pesca estavam lá, mas não vieram sozinhas para o Gorringe. Apesar de uma área de exclusão de 20 milhas decretada pela Marinha, os cientistas encontraram companhia logo no primeiro dia de trabalhos.

"Quando chegámos aqui no primeiro dia, estava cá uma embarcação de pesca que, aliás, tinha o sistema de posicionamento desligado. Após comunicação, afastaram-se imediatamente e, desde então, não voltaram a aproximar-se outras embarcações", conta Emanuel Gonçalves.

Os passos seguintes

Ao fim de 12 dias, a ondulação tornou-se mais forte e impediu a saída dos botes para mergulho. A partir dos 2 metros, a operação torna-se arriscada e as previsões aconselharam o regresso ao Continente, ainda que dentro do cronograma planeado.

Nas 44 horas de viagem do Alfeite ao Gorringe, nem sempre o mar deu tréguas aos tripulantes, sobretudo nas 22 horas no sentido inverso, já de regresso ao Continente, onde a ondulação mais forte até partiu alguns pratos na messe de oficiais.

Tudo o que foi recolhido no Gorringe, incluindo os estudos das amostras analisadas em terra, vão ajudar no processo de definição das restrições que vão ser aplicadas a esta Área Marinha Protegida. Embora esteja há quase 10 anos integrado na Rede Natura 2000, ao abrigo da diretiva Habitats, o Gorringe precisa de um plano de gestão para fazer valer o seu estatuto de Zona Especial de Conservação.

O Instituto de Conservação da Natureza e Florestas (ICNF) é a autoridade de classificação que tem a responsabilidade de criar esse plano. " Estamos ainda a iniciar as discussões com outras entidades que também têm responsabilidade de gestão desta área, como a Direcção Geral de Recursos Naturais, Segurança e Serviços Marítimos e a Autoridade Marítima", explica Marisa Batista, bióloga marinha do ICNF, presente a bordo.

Não será apenas a área da conservação da natureza a determinar o que se pode ou não fazer no Gorringe, embora a Fundaçao Oceano Azul faça força para que o monte submarino faça parte dos 10% de áreas marinhas protegidas com a chamada "proteção estrita", onde não podem ocorrer operações extrativas e as atividades humanas serão muito reduzidas.

"No alto mar também se podem implementar medidas restritivas, como impedir a pesca ou determinados tipos de pescarias em toda a área ou em algumas partes consideradas mais sensíveis", sustenta a representante do ICNF, lembrando que as entidades que gerem o setor das pescas terão que ser envolvidas na discussão do plano de gestão.

O exemplo californiano

Trazer a pesca para a solução? Obviamente, responde Emanuel Gonçalves, da Fundação Oceano Azul. "Não há pesca sem peixe e as Áreas Marinhas Protegidas são soluções em que todos ganham". O coordenador da expedição acredita que o processo de gestão destas áreas pode levar a 'reestruturar' a forma como a pesca é feita. "Só essa reestruturação é que permite que todos ganhem. A recuperação de stocks que vamos ter dentro das Áreas Marinhas Protegidas vai também beneficiar a própria atividade da pesca. Isso está demonstrado do ponto de vista científico, há muitos bons exemplos de como é que isso pode ser feito a nível internacional".

A convocação de uma equipa dos 'Moss Landing Marine Laboratories", da State University de San José, está também ligada à experiência californiana que ligou a ciência e as políticas de pescas e conservação da natureza. Rick Starr lembra que a costa oeste dos Estados Unidos assistiu a um 'declínio vertiginoso' da população de peixes até cerca do ano 2000.

"Depois foram postas em prática algumas regras muito rigorosas de gestão das pescas e temos assistido à recuperação das populações desde então. É um caso de precaução. Facilmente se pesca demasiado nestas áreas de 50 a 200 metros de profundidade. Mas se protegermos esses peixes, eles podem voltar", conta-nos Rick, na sala de operações do Santa Maria Manuela.

Um isco lançado ao Governo

O exemplo californiano seria depois repetido pelo próprio na presença da Ministra do Ambiente numa mesa redonda na sessão de apresentação de resultados promovida no Oceanário de Lisboa, um dia após o fim dos trabalhos de mar. Starr associou a falta de grandes predadores no Gorringe à pressão da pesca e lembrou que o colapso dos stocks pesqueiros na Califórnia levou a 20 anos de proibição de capturas em mais de 2 mil quilómetros de costa.

"Isso causou todo o tipo de problemas sociais e económicos para as populações da costa. Tivemos a capacidade de criar uma legislação que criou uma rede de áreas protegidas marinhas ao redor da costa da Califórnia. E a maioria das populações de peixes e de invertebrados voltou por causa dessa proteção. E agora observamos mais oportunidades de pesca comercial e recreacional, abertas às comunidades locais, mostrando um método viável para manter um bom equilíbrio entre a conservação e o uso de recursos dos oceanos", declarou na presença da ministra Maria da Graça Carvalho.

"O Ministério do Ambiente avaliará os dados e se estes revelarem, como esperamos e é quase certo, o grande valor ecológico da zona, iremos propor um estatuto de conservação deste sítio, que hoje é apenas parte da Rede Natura 2000", afirmou a governante no encerramento dessa sessão.


A Renascença viajou a convite da Fundação Oceano Azul.

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