06 nov, 2018 - 06:30 • Tiago Palma
Quase podia ser uma segunda à noite no Cais como outra qualquer. O relógio marcava a hora precisa, meia-noite, e já se recolhem mesas em tascos de esquina e alguns bares.
Nas discotecas, do Copenhaga ao Viking, escuta-se música, a música convidava a dançar, mas dançava-se pouco, quase nada. Metade da não lá muito extensa Rua Cor-de-Rosa apresenta-se timidamente composta, a outra deserta de gente. Ruído? Suave. Quase podia ser uma segunda à noite no Cais, como outra qualquer, não fosse esta a primeira noite da Web Summit, conferência que habitualmente preenche, a semana inteira, os espaços de diversão noturna lisboetas, do Bairro Alto à Bica, da Bica, lá está, ao Cais do Sodré. Sobretudo aqui.
Chover, não chovia mais. Mas este frio, de tanto, perpassava as finas roupas de quem veio a Lisboa veranear e fazia tiritar os que procuravam ali boémia.
Percorramos, em busca de websummistas, a metade que havia a percorrer da rua, pois para lá do túnel do Musicbox só os cantoneiros recolhiam lixo. Mas, antes mesmo disso, falemos de probabilidade: a probabilidade pode ser entendida como a chance de que algo ocorra. Qual, portanto, a probabilidade de, abordagem após abordagem, encontrar gente de diferentes nacionalidades? Enorme. Há mais de 170 nacionalidades diferentes na Web Summit, do Suriname a Porto Rico.
Alex é russo. 28 anos. Veste um hoodie azul berrante com o nome da empresa impresso em letras nada discretas: Arcadia Software. Mas até dá mais ares de ter estado no Meo Rip Curl Pro em Peniche do que de empreendedor numa conferência tecnológica em Lisboa. “Não, não é a primeira vez que venho a Portugal. Costumo ir surfar para o Algarve. Conheces Lagos? Costumo ir para lá.” Por cá, na Web Summit, é a primeira vez que assenta arraiais com a Arcadia Software. O que faz? “Muita coisa. Bem, essencialmente, a Arcadia Software faz consultoria a várias empresas, desde farmácia a finança, educação também. A empresa é russa, o escritório é no Reino Unido, mas trabalhamos muito da Escandinávia”.
A vinda à Web Summit tem um intuito. Ou melhor, dois. Alex explica: “O que é penso disto? Gosto. Gosto muito. Nós estamos aqui sobretudo à procura de contactos, à ‘caça’. Amizades? Tinha um amigo aqui comigo antes mesmo de chegares. Mas não sei dele. Foi-se embora com uma rapariga que conheceu aqui o ano passado…”. Alex ri-se. Parte e parte com ele o hoodie azul berrante, à caça. De um contacto ou do amigo que perdera no Cais.
E agora? Um alemão? Belga? Quiçá gabonês, mongol. Não.
Uns passos mais adiante, Peter é russo também. Tem 30 anos. A primeira aborgem não é do jornalista nem tão pouco é de Peter. Chega de um outro fundador da startup Vidart. “Tu… és… és… tu és… jornalista?”, interroga-se, observando, olhar semicerrado e reluzente, a identificação verde que sobre o peito diferencia os jornalistas dos restantes participantes na conferência. “Rrrrrê-nás-zen-za! It’s like renascence, right? Nice name!”, atira, bonacheirão, propondo-se de imeadiato a “vender-nos” a Vidard.
Um imediato a que acabaria por retirar imediatismo, avançando Peter para um breve “pitch”, ali mesmo. E explica-nos: “Nós achamos que há mercado para arte moderna e artistas modernos. Tu através da nossa app podes escolher o quadro que quiseres de jovens artistas russos – e comprar diretamente com a app. Nós começámos a desenvolver isto em abril e a app ficou concluída em agosto. Em setembro foi lançada e agora estamos aqui para perceber se é popular e encontrar investidores”.
[Peter é interrompido por um taxista que vai observando a conversa, encostado sobre o velhinho 190D. E atira logo de chofre, em macarrónico inglês: “Strip clube! Very good! Strip clube!... Want? Queres? Hmmm?!” Peter desvia o olhar e responde. “Nice approach, but not now…” E a approach não prossegue.]
É a terceira vez que os fundadores da Vidart estão presentes na Web Summit, ainda que só agora com uma app para apresentar. “Antes viemos sentir a atmosfera”. Sentida, o que fazer agora? “Eu e o tipo bêbado ali somos os fundadores disto. E isto agora, bem, é abordar pessoas. Não tanto na Web Summit mas sobretudo aqui, à noite. Como? Fifty-fifty: às vezes entregas cartões pessoalmente, outras vezes já tens alguns contactos prévios no Telegram e agendas um copo. A app da Web Summit? Para ser honesto, está uma porcaria. Está sempre a crashar. Tens que estar sempre a instalar e a desinstalar, a desinstalar e instalar. Não nos serve para nada", lamenta.
OK, um russo, dois. À terceira abordagem surgirá um qualquer irlandês como o Paddy. Só que não. Grigory, 35 anos, é russo. Como russos eram Peter e Alex. Traz consigo debaixo do braço os press-release da Olimp. Dezenas e dezenas deles. Mas ainda não tinha distribuído nem um para amostra. “Podes tratar-me por Greg ou Gory”, desarma-nos de imediato, naquele tu-cá-tu-lá do vocabulário do novo empreendedor.
Apesar de russo, apesar de nado e criado em São Petersburgo e de ainda lá viver, a empresa (“uma espécie de airbnb da camionagem e transporte de mercadorias”, diz) está sedeada em Chicago e só opera nos Estados Unidos. Porquê? Grigory hesita na resposta. “Bem, eu sou russo, não é?” É. “Sabes: os negócios são muito complicados na Rússia, o Estado controla tudo. Percebes? [A Olimp] foi criada há ano e meio. Se queres fazer dinheiro rápido e sem problemas tens que escolher a América. Percebes?”, interroga, retoricamente.
Gregory pousa sobre um caixote do lixo um copo de vodka já vazio. “É a primeira vez que estamos aqui. Já conhecemos muita gente, investidores. Tudo esta noite. Como? É simples: alguma cerveja, algum whiskey, algum vodka, e ganhas coragem para abordar as outras pessoas e começar a falar do teu negócio. É assim.”
Uma derradeira abordagem, sem cerveja, whiskey ou vodka, só abstémia e curiosidade para ver até onde a probabilidade nos levará. O rosto denuncia puberdade. As identificações, a nacionalidade: Filipe e Pedro. O andar trôpego denuncia, bom, o que Filipe atira: “Epá, eu até falava contigo, ele até falava contigo, mas já não estamos bem. Mas, olha, é assim, a gente troca aí os QR codes e explica-te tudo da empresa, não sei, amanhã... Amanhã?”. Despedem-se e entram no Roterdão.