O “lado B” da China. O grande êxodo chinês está mesmo a criar “cidades fantasma”?

04 dez, 2018 - 06:31 • João Carlos Malta

Prédios que quase tocam os céus, réplicas da Torre Eiffel e estradas a perder de vista mas sem pessoas. O imobiliário é o motor de uma nova China que quer ser mais urbana, mas há danos colaterais cujas consequências são ainda difíceis de prever.

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Mover mais de 100 milhões de pessoas de este para oeste, da costa para o interior, em menos de uma década. É este o plano chinês de urbanização do país, que serve uma mudança profunda: a de uma economia virada para o exterior que quer agora alimentar o crescente mercado interno. O fenómeno está a criar profundas mudanças no país.

Uma delas são as cidades fantasmas que encheram manchetes em grande parte da imprensa internacional e que servem para ilustrar a megalomania falhada do projeto de Pequim. As imagens de réplicas de cidades, como Nova Iorque e Paris, completamente vazias foram largamente documentadas como símbolo de uma distopia.

Liderado pelo Presidente Xi Jinping, que começa esta terça-feira uma visita de dois dias a Portugal, o Governo chinês diz que é ridículo pensar que uma ideia desta dimensão se concretiza em menos de seis anos e alega que este processo gigantesco ainda vai a meio.

Mais cimento gasto em três anos do que os EUA num século

O modelo de desenvolvimento urbano chinês não foi baseado na procura, mas na projeção futura das necessidades que o êxodo do campo para a cidade vai criar. Há números impressionantes que demonstram esta obsessão chinesa. Um deles? Entre 2011 e 2013, o país gastou mais cimento do que os EUA em todo o século XX.

No entanto, o reverso da medalha de toda esta euforia é que vários estudos têm apontado que mais de 20% dos apartamentos em toda a China estão vazios. Um desses estudos é assinado por Gan Li, professor na Universidade de Finanças e Economia de Chengdu, que contabiliza mais de 50 milhões de casas inabitadas.

Grande parte das casas que estão desocupadas foram adquiridas por proprietários que já possuem uma casa e que fazem um novo investimento. São investidores imobiliários ou somente especuladores à espera de fazer muito dinheiro.

Este fenómeno está a gerar uma grande preocupação, porque há o receio de que uma corrida à venda de casas num curto espaço de tempo gere um processo acelerado de desvalorização imobiliária. A hipótese da criação de um imposto sobre segundas habitações faz crescer ainda mais esse temor.

“Não há outro país com um nível de desocupação tão elevado”, reitera Gan Li, citado pela Bloomberg. “Mas ninguém quer ser culpado pelo estoirar de uma bolha imobiliária.”

Os governos regionais, no final de 2015, estavam sentados num vulcão de dívida no valor de pelo menos dois triliões de euros.

O nível médio da dívida era de 31%, segundo dados oficiais. As províncias de Guizhou e Yunnan, além da metrópole de Chongqing, registaram uma carga de dívidas de mais da metade do PIB.

Outra das consequências imediatas é o disparar dos preços. Cresceram de forma galopante e criaram um outro problema: a dificuldade dos jovens em comprar casa.

“O desespero talvez seja particularmente agudo para as crescentes legiões de jovens que não conseguem encontrar uma companheira porque não podem pagar por uma casa", refere Ruchir Sharma no livro "Breakout Nations". "70% das mulheres chinesas solteiras dizem que a primeira coisa que procuram num homem é que tenham uma casa. Enquanto isso, os chineses financeiramente ricos estão a comprar várias casas."

Um dos resultados desta realidade é que a idade média de casamento subiu dos 29 para os 34 em menos de cinco anos.

Um peso gigante

O imobiliário tem sido uma das alavancas do portentoso crescimento do dragão do Oriente. Segundo dados do Fundo Monetário Internacional, se em 1997 o investimento na construção valia 4% do PIB, em 2014 já valia 15%. Deste valor, dois terços são destinados ao segmento residencial.

Os bancos estão a alimentar este ciclo e a exposição que têm ao imobiliário é neste momento muito significativa. Num relatório de 2017, o FMI escrevia que 25% dos empréstimos se destinam à compra de casas.

As cidades fantasma que em 2013 eram uma realidade galopante, hoje parecem divididas em duas realidades distintas. Há investigadores que revelam que algumas, como Zengdong, lentamente estão a ficar cheias de pessoas.

Outras, pelo contrário, continuam sem ninguém, um fenómeno que decorre de uma estimativa de crescimento “muito otimista” no passado.

Por exemplo, Tianducheng – uma réplica de Paris– e Ordos, no interior da Mongólia, permanecem só parcialmente habitadas. Esta última tem como ambição ter um milhão de habitantes, sendo que atualmente alberga apenas 100 mil moradores.

Há dois anos, um estudo de um think tank controlado pela Comissão Nacional de Desenvolvimento e Reforma do Governo central sugeriu que os 3.500 novos distritos na China seriam capazes de abrigar 3,4 mil milhões de pessoas. A população atual do país é de 1,4 mil milhões.

Acrescem a isto os impactos sociais deste processo de urbanização desenfreada, como aponta o “South China Morning Post”.

Uma mudança radical

Há relatos de agricultores residentes em aldeias em mais de 20 províncias a quem foram retiradas as suas terras. Em nome da urbanização, as autoridades locais forçaram-nos a abandonar as casas e a mudarem-se para as cidades.

Um proprietário de Pingyi, na província de Shandong, suicidou-se, imolando-se pelo fogo em 2015 depois de as autoridades locais terem demolido a casa em que vivia.

O documentário “The Land of Many Palaces” mostra mesmo que esta passagem do campo para a cidade não se concretiza apenas na mudança de casa e que há uma alteração profunda do estilo de vida. Os agricultores têm de se acostumar a viver na cidade e lidar com novas realidades.

Há funcionários públicos a trabalhar neste processo de reeducação e de adaptação a uma rotina em que a vida em comunidade é mais deslaçada.

O mais difícil continua a ser encontrar um novo emprego, porque os conhecimentos que estes novos citadinos adquiriram na pastorícia e na agricultura de pouco lhes servem quando querem trabalhar como cabeleireiros ou administrativos.

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  • Manuel
    04 dez, 2018 Alentejo 11:16
    A China enveredou pelo modelo de desenvolvimento mais aberrante que se pode imaginar. A frase «gastou mais cimento em 3 anos que os EUA num século» retrata bem o estado deplorável deste país. E o pior está para vir. A construção massiva de imóveis devolutos irá levar a um novo "crash" imobiliário com inevitável queda acentuada de preços que podem até nem ser vendáveis pois há uma grande franja da população que vive em zonas rurais e que não se identifica com a "vida" dos grandes centros urbanos. O desastre ambiental criado pela China já está a ter consequências na falta de qualidade de vida nas grandes cidades onde se registam níveis nunca imaginados de poluição atmosférica. E o perigo espreita um mundo ocidental ávido de dinheiro duma China, que mais não quer que centrar os seus interesses estratégicos nos países europeus e em outros continentes. Se não houver um forte travão a esses propósitos pelo mundo ocidental, só teremos que temer pela perda de soberania económica e todos os erros daí advindos. Uma frase profética foi proferida à 100 anos em relação à Rússia que «espalhará os seus erros pelo mundo». É bom lembrar esta profecia pois infelizmente a história repete-se.

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