23 ago, 2024 - 07:34 • Sandra Afonso
Está numa indústria multimilionária, altamente competitiva, e não esconde que os resultados financeiros fazem parte desta história, mas são sobretudo um meio. Alan Gershenfeld defende que, hoje, os videojogos podem e são muito mais, são material de ensino, um medicamento, um desbloqueador social, um ativista, o que a imaginação ditar.
Em entrevista à Renascença, o presidente e cofundador da E-Line Media explica como é que os jogo podem ter um impacto positivo no jogador e na sociedade e que papel deve ter o regulador. Explora também o papel dos pais, aqui com a dupla responsabilidade de desenvolverem este universo, sendo eles também jogadores.
Gershenfeld, num conversa à margem da cimeira “Digital With Purpose”, que decorreu no Estoril, fala ainda do “Never Alone”, um dos jogos mais premiados da empresa.
Muitos olham para os videojogos apenas como uma forma de diversão. Não partilha dessa ideia?
Os jogos são certamente um ótimo meio de entretenimento. As pessoas passam três mil milhões de horas por semana a jogar em todo o mundo, em diferentes tipos, géneros e plataformas. É uma indústria muito diversificada. Mas está a crescer uma parte da indústria que desenvolve jogos para aprendizagem, saúde e impacto social.
Que jogos são estes?
São jogos que, pelo menos alguns deles, permitem assumir papéis diferentes, identidades diferentes. O jogador tem arbítrio para agir. Os jogos incluem verbos de ação ou de raciocínio (conferem capacidades às personagens, aquilo que elas conseguem fazer).
O jogador está investido num objetivo e age para o alcançar. Falha com segurança, muitas vezes de forma evocativa, mas fica cada vez mais perto do objetivo. Isso pode ser aprendizagem, pode ser impacto social, se trabalharmos com bons designers e especialistas que alinhem a mecânica do jogo com quaisquer que sejam os objetivos de impacto ou de aprendizagem.
Como é que os jogos podem melhorar a saúde?
Existem muitos jogos que se focam em diferentes aspetos da saúde. Nos Estados Unidos, há uma empresa que já foi aprovada pela Food and Drug Administration [regulador norte-americano] com terapias baseadas em jogos, o que significa que elas passam pelo mesmo rigor que um medicamento passaria.
A empresa chama-se Akili Interactive e penso que trabalha soluções para a hiperatividade e défice de atenção. Mas há inúmeras empresas que estão a desenvolver jogos terapêuticos.
Pode dar-nos um exemplo?
Existe um jogo de ação muito conhecido, que já foi feito há algum tempo para crianças com cancro, em que elas combatem a doença nos seus corpos. Mostrou que ao jogarem, aprendem os procedimentos médicos, tornam-se melhores pacientes e aderem ao regime porque se envolvem com os médicos.
Há uma grande variedade de exemplos de jogos de aprendizagem com impacto social e na saúde e eles aproveitam cada vez melhor esta capacidade.
E a questão do vício, não correm o risco de criar um problema ao apresentar uma solução?
Tal como têm um enorme potencial para benefícios positivos, também existem benefícios negativos nos jogos. Certamente, muitos pais estão preocupados com a quantidade de tempo que as crianças passam em frente ao ecrã. Sinceramente, muitos pais também passam muito tempo nos dispositivos digitais.
É uma preocupação. É um pouco como a comida, é preciso uma dieta digital saudável. Nem todas as crianças são iguais, nem todos se envolvem digitalmente da mesma forma. Às vezes, as crianças fazem coisas incríveis e constroem coisas, às vezes fazem coisas um pouco mais estúpidas e deveriam ter o tempo limitado.
Depende do que as pessoas fazem nos jogos e cada criança é diferente, mas há um equilíbrio saudável em termos de dieta digital, em termos de quanto se gasta em jogos ou noutras coisas online.
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Acha que são necessárias regras e regulação neste mundo dos videojogos?
É uma pergunta complexa porque há muitas respostas diferentes.
Para as crianças mais novas, existe muita regulamentação diferente, em termos de proteção das crianças mais novas, privacidade, modelos de negócios inadequados ou modelos de negócios predatórios. Considero que a regulamentação é útil nestes casos.
Os países estão a adotar abordagens diferentes e é possível ver o que funciona e o que não funciona. A pesquisa é complexa em muitas destas áreas e, por vezes, é contraintuitiva. Dito isto, penso que a regulamentação desempenha um papel, mas tem de ser uma regulamentação informada.
Quando os pais brincam com crianças de todas as idades, é incrivelmente poderoso
Uma regulamentação governamental?
Poderá ter um papel, mas como mencionei, tem de ser um papel informado, informado pela investigação, porque às vezes nem sempre é intuitivo o que é eficaz e o que não é.
É especialmente importante para as crianças mais novas e acho que cada país tem regras em termos de como envolver as crianças mais novas e, portanto, ferramentas para proteger as crianças e ajudar os pais.
Penso que existem regulamentos úteis, mas é necessário informá-los e, por vezes, os regulamentos não são totalmente informados.
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É mais importante aqui o papel dos pais?
O papel dos pais é crítico. Ter os pais envolvidos é fundamental. Pense nisto como uma dieta digital, como mencionei, é preciso um equilíbrio saudável.
Também acredito que jogar entre gerações é realmente poderoso. Quando os pais brincam com crianças de todas as idades, é incrivelmente poderoso e há alguns jogos e experiências intergeracionais realmente divertidas. Penso que os pais desempenham um papel muito crítico, provavelmente um papel maior do que o do governo, mas isso não significa que não haja um papel para o governo.
Acha que a opinião pública, e sobretudo os utilizadores, têm noção da vertente positiva dos jogos?
Acho que varia, mas está a mudar, à medida que os jogadores se tornam pais, têm menos medo do meio e, à medida que os jogos começam a aparecer em diferentes formas nas escolas e a serem utilizados de forma eficaz, as escolas começam a ficar mais confortáveis com eles. Existem exemplos de algumas plataformas baseadas em jogos de muito sucesso que existem nas escolas e no setor de consumo.
Aos poucos, as pessoas estão a ficar mais confortáveis com isso, mas os jogos são uma arte. É uma tarefa difícil de dominar para torná-los verdadeiramente envolventes e divertidos e é ainda mais difícil combinar o impacto social com os objetivos de aprendizagem, mas é possível e há sucessos por aí e acho que continuarão a crescer.
Olhando para o futuro. O que é possível, mas ainda não estamos a fazer nos jogos?
Uma das minhas maiores preocupações, e ainda não tenho uma resposta simples para isso, é que a maioria dos jogos voltados para o futuro, e estamos a falar dos maiores jogos, são distópicos, acontecem em mundos futuros distópicos.
Quando pensamos sobre o futuro, muitas vezes recorremos a histórias de filmes, da televisão, videojogos, romances de ficção científica, e muitos ainda são distopias. Por isso, uma área que precisa de ser explorada não é utópica, mas sim futuros evocativos aspiracionais e alcançáveis, a partir dos quais seja possível construir uma visão coletiva que impulsione a existência. Acho que há aqui uma lacuna real.
É no que está a trabalhar agora?
Estamos a trabalhar nisso. Eu não diria que está resolvido. Desenvolvemos muitos jogos que impactaram muitas pessoas. Alcançámos mais de 20 milhões de pessoas com os nossos jogos de impacto social. Se isso for feito com um alto nível de habilidade, quer esteja trazendo diversas vozes para o meio, quer explore a saúde no meio envolvente, se for feito com um alto nível de habilidade, os jogadores vão envolver-se.
Os jogos também podem alertar as pessoas para causas, como as alterações climáticas?
Absolutamente. Existe uma aliança da ONU, com o nome "Playing for the Planet", onde 30 a 40 grandes empresas de jogos, incluindo a nossa, se inscreveram para assumir compromissos ambientais nos seus jogos. Se for ao site "Playing for the Planet" pode ver como estes jogos envolveram os jogadores e como os jogadores se envolveram dentro do jogo e no mundo real.
Ainda só estamos a arranhar a superfície do que é possível.
Também se ganha muito dinheiro nesta indústria, mesmo a fazer jogos para aprender sobre saúde e impacto social?
É uma indústria muito competitiva. É uma indústria complexa. No setor de consumo, é preciso competir com todos os outros entretenimentos de consumo. É preciso fazer coisas que sejam excecionais de alguma forma, com um nível de habilidade muito alto.
Nas escolas, é preciso repor o tempo ou o dinheiro de algum modo. Não é apenas necessária muita criatividade, é preciso realmente entender o mercado e ter rigor editorial.
Conseguimos fazer jogos lucrativos com impacto social e conseguimos entrar em milhares de escolas. Não se trata apenas do elemento criativo, mas também de compreender a publicação e o tipo de ecossistema empresarial.
Tem um jogo preferido?
É um dos nossos jogos: "Never Alone". Fomos abordados por uma tribo nativa do Alasca, cuja cultura foi terrivelmente deturpada nos media populares. Queriam fazer um investimento de impacto, um jogo que representasse autenticamente a sua cultura para um público global, para que os seus jovens pudessem ver a sua cultura mostrada ao mundo. Não queriam que fosse um jogo sobre eles, mas feito com eles.
Montámos um estúdio com alguns criadores de jogos de classe mundial, 36 anciões, escritores e contadores de histórias nativos do Alasca. Fizemos uma jornada de dois anos juntos e lançamos um jogo na língua inupiaque, baseado numa história contada há milhares de anos. Ainda incorporamos 24 pequenos documentários no jogo, que são desbloqueados para mostrar a inspiração para o jogo.
Tem sido um sucesso. Tivemos mais de 15 milhões de jogadores, ganhámos um BAFTA, um Peabody, estamos na coleção permanente do Museu de Arte Moderna. O Conselho Tribal, com os respetivos lucros, tornou-se o nosso maior investidor. A nossa presidente é a chefe do Conselho Tribal. Este é um exemplo de jogo lucrativo de impacto social.