16 nov, 2023 - 20:00 • Maria João Costa
Raramente esboça um sorriso. Aos 80 anos, Ludmila Ulitskaya não perdeu o hábito de fumar. A escritora que passou por Portugal, no âmbito do Festival Utopia, em Braga, falou com a Renascença, numa entrevista em que respondeu em russo, de forma pausada, recorrendo à ajuda de uma intérprete. É que para esta autora, as palavras são um “valor precioso”.
A russa que começou a ler quando tinha 5 anos, e que desde cedo regista a sua vida em diários, diz-se “narradora” da sua própria história e que “a vida transformada em texto fica preservada”. Ela que escolheu ser bióloga de profissão, viu a escrita a tomar-lhe a vida e a profissão. Diz que está em muitas das mulheres retratadas nos seus livros.
O mais recente a ser reeditado em Portugal é “Mentiras de Mulher” (ed. Cavalo de Ferro). Sobre ele admite já ter fraca memória, porque escreveu-o há muitos anos. Questionada sobre a atual situação na Rússia, Ludmila Ulitskaya afirma: “os tempos na Rússia estão cada vez mais difíceis e duros. Há cada vez mais pessoas que acabam presas por causa da sua posição política”. É de resto a sua posição política sobre a Ucrânia que a impede de regressar ao seu país. Vive atualmente na Alemanha, mas com saudades de casa.
Em “Mentiras de Mulher” (ed. Cavalo de Ferro), o seu último livro a ser reeditado em Portugal tem como personagem central Génia. Há outra personagem, a Liúda que a chama de “engenheira da alma humana”. Quem é a Génia? Ela personifica a mulher russa?
Essa pergunta é bastante complicada para mim, até porque escrevi esse livro há muito tempo. Para responder a essa pergunta teria de relê-lo, porque desde então já escrevi muitos livros! Mas posso dizer-lhe que a personagem, a Génia, sou mais ou menos eu!
Através da história desta mulher, conta as vidas de outras mulheres, mostra-nos as feridas que resistem depois da queda da União Soviética. É uma geração que viveu marcada pelo silêncio?
Sem dúvida! Sem dúvida, porque foi o tempo em que por se contar uma piada, uma pessoa arriscava a prisão. Mas também é sinal, e a prova do valor da palavra.
E que valor tem a palavra para a Ludmila como escritora?
Se eu tivesse valores mais preciosos do que a palavra, não seria escritora! Calhou assim na vida. A profissão que escolhi para mim foi a biologia genética, mas depois a profissão que me escolheu a mim foi ser escritora.
Há um lado sempre real, em todas as histórias que conta. Traz a sua vida e a vida daqueles que conheceu sempre para os livros que escreve?
Eu nunca pensei verdadeiramente sobre esse assunto. Para mim, a escrita é um processo natural, é um estado natural. É um processo muito pessoal. Eu não sou narradora de histórias de outros, eu sou narradora da minha própria história.
A vida tem sido sempre muito generosa comigo. Eu tive oportunidade de conhecer excelentes pessoas, muitas das quais já não estão entre nós. Para mim é muito importante guardar a memória deles.
"Se eu tivesse valores mais preciosos do que a palavra, não seria escritora. A profissão que escolhi para mim foi a biologia genética, mas depois a profissão que me escolheu a mim foi ser escritora"
É por isso que escreve diários, e regista a memória da sua vida? Em que medida é importante escrever esses diários? É para salvaguardar a memória, ou é um medo de perder a memória?
Muito cedo percebi que tinha uma memória muito fraca. Desde então, comecei a fazer diários. Foi há muito tempo, e fi-lo desde muito jovem. É algo que aconselho a todos! Quando relemos as nossas notas, por muito curtas que sejam, acabamos por nos lembrar não apenas daquilo que está lá escrito, mas também daquilo que não está lá, ou seja, aquilo que estava à volta daquilo que ficou registado
Escrever é um ato de liberdade?
Nunca coloquei a pergunta dessa forma, porque desde que aprendi a escrever, comecei a escrever. Eu tinha sempre pequenas notas, pequenos registos diários. Tenho os meus diários guardados desde 1978, mas comecei a escrevê-los muito mais cedo. É o que aconselho a todos a registar a sua vida. A vida transformada em texto fica preservada.
É uma resistência?
Não. É a gratidão para com a vida.
Vive hoje na Alemanha. Porque saiu de Moscovo? Que memória tem desse instante?
Neste caso, eu e meu marido ficámos nas mãos do nosso filho mais velho que no dia a seguir ao início da guerra, chegou a Moscovo, pegou em nós e levou-nos dali para fora. De certa forma não foi uma decisão minha, ou nossa. Foi uma decisão do nosso filho.
E tem vontade de regressar à Rússia?
Em princípio, gostaria de voltar quando as circunstâncias o permitirem. Mas eu pronunciei-me de forma nada ambígua sobre a guerra entre a Ucrânia e Rússia na imprensa. Penso que as minhas palavras não caíram no esquecimento.
Os tempos na Rússia estão cada vez mais difíceis, e mais duros. Há cada vez mais pessoas que acabam presas por causa da sua posição política. Hoje, já há cerca de 500 presos. Este número é uma estimativa da Sociedade Memorial.
Receia ser presa se regressar?
Eu não penso nisso. Não penso que posso ser presa. Penso antes no ambiente que está muito pesado agora na Rússia.
Como vê a situação entre a Rússia e a Ucrânia? Que perspetiva vê de futuro vê?
Falando da perspetiva, há um lado bom, porque esta guerra pode representar uma oportunidade de conclusão do processo de construção de soberania ucraniana, de um Estado ucraniano, pois a Ucrânia dependia da Rússia há vários séculos. Esta guerra pode dar início a uma nova soberania ucraniana.
Se pudesse falar hoje com Vladimir Putin, o que lhe diria?
Isso seria totalmente impossível! Eu nunca falaria com ele!
"Em princípio, gostaria de voltar quando as circunstâncias o permitirem. Mas eu pronunciei-me de forma nada ambígua sobre a guerra entre a Ucrânia e Rússia na imprensa. Penso que as minhas palavras não caíram no esquecimento"
Já viveu em Israel. Consegue compreender o que está a acontecer hoje em Israel e a resposta de Israel ao Hamas?
Nunca vivi verdadeiramente em Israel. Eu costumo ir a Israel, e as minhas estadias costumam durar no máximo três meses. Contudo, tenho muitos amigos em Israel, muitas pessoas que me são muito próximas e até mesmo familiares. O meu filho mais novo e minha neta vivem agora em Israel.
O destino de Israel é muito complexo. É um Estado que vive rodeado por inimigos, ou seja, países que desejam que deixe de existir. Na minha opinião, tenho certeza absoluta de que Israel é um Estado que tem o direito de existir.
O povo judeu que durante anos fez a sua peregrinação no exílio pela Europa, Ásia e América, tem o direito ao seu próprio pedaço de terra. A primeira vez que visitei Israel foi em 1993 e desde então, vou lá quase todos os anos. Conheço bastante bem, tanto a geografia de Israel, como as realidades da vida israelita.
A geração mais velha, quase toda tem experiência de viver noutros países. Quase todos nasceram noutros países e nesse sentido, Israel é um país único, porque é um país que foi escolhido pelos seus habitantes. Todos nós vivemos num país, porque nascemos, vivemos e morremos nele, mas eles escolheram o seu país.
A geração mais antiga, foi ela que escolheu o país. Eles foram testemunhas da criação do seu país. Eles estão ativamente envolvidos na criação do país. Não conheço outro país assim!
Que poder têm os livros, e em particular os seus livros, para nos ajudarem a compreender o mundo?
Eu, sou alguém que lê livros desde os cinco anos de idade, por isso não consigo imaginar a vida sem livros. Há 100 anos, a maior parte de informação era recebida através do ouvido. Depois passamos à leitura, e a maior parte de informação passou a chegar através dos olhos. Agora a Humanidade está a regressar à perceção do mundo através do ouvido.
A voz do rádio e da televisão determinam, em muito, o estado das mentes atualmente. Isso aumenta a responsabilidade de cada um de nós. Temos de filtrar mais aquilo que recebemos.
Eu sei isto muito bem, porque a minha infância, e minha juventude, calharam na altura da União Soviética, quando a propaganda era total.
Por isso eu falar dos filtros, do tal filtro que deixa passar o que tem que ser passado e retém aquilo que não pode passar. Mas a responsabilidade é de cada pessoa, e aplica-se a todos os países.
Nesse sentido, devemos regressar ao livro?
Claro! Nesse sentido, os livros permitem uma escolha livre que a onda do som que nos ataca não nos deixa.