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Dar Voz às Causas

Valor T. "Dentro da minha incapacidade, sou um privilegiado"

27 jun, 2023 - 16:00 • Diogo Camilo , Filipa Ribeiro

João sofre de paralisia cerebral, mas tem o objetivo de tirar um doutoramento em Física Nuclear. Antes da Valor T nunca tinha conseguido oportunidades de emprego. Ricardo tem 95% de incapacidade e está a escrever o segundo livro. Antes de conhecer o projeto da Santa Casa nunca tinha sido chamado para uma entrevista.

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Valor T. "Dentro da minha incapacidade, sou um privilegiado"
Ricardo Monis e João Jantarada foram dois dos jovens que encontraram emprego através da Valor T. Foto: Diogo Camilo/RR

Acabado de se licenciar em Sociologia no ISCTE, Ricardo Monis decidiu começar a procura por um emprego. No currículo decidiu colocar a nota sobre a sua condição: sofre de atrofia muscular espinhal tipo II, uma doença neuromuscular que enfraquece os seus músculos ao longo do tempo, que lhe dá uma incapacidade física de 95% e o prende a uma cadeira de rodas. Em cinco meses só recebeu respostas vazias.

“Nem sequer entrevistas tinha. Se tivesse entrevistas mas não ficasse, era menos frustrante porque sentia que havia alguma margem para trabalhar. Assim era mesmo frustrante”, conta ao podcast Dar Voz às Causas da Renascença.

Depois de ouvir falar do projeto, o jovem de 24 anos decidiu pedir ajuda à Valor T. Em cerca de um mês conseguiu um emprego numa função que se enquadra no que estudou.

A agência de empregabilidade da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa foi lançada em maio de 2021 e tem como missão apoiar as pessoas com deficiência na procura de trabalho. Perto de 180 empresas são parceiras da Valor T, que já fez com que mais de 200 pessoas fossem contratadas.

Há cinco meses na multinacional Accenture, Ricardo Monis está a gostar da experiência. Vivendo em Pinhal Novo e com o escritório em Lisboa, trabalha a partir de casa. Algo normal dentro da empresa, que o agradou por não o fazer sentir à parte. O problemas são os acessos na capital: “o escritório é acessível, mas Lisboa é terrível.”

“Sinto que acrescento valor à empresa e não há melhor sentimento que isso.”

Além de ter encontrado esta vaga para Ricardo, a Valor T faz ainda o acompanhamento da experiência profissional e tem psicólogos dedicados a fazer a ponte.

“Temos um contacto muito próximo. Não tenho dado muito trabalho a nível de preocupações, porque está a correr muito bem mas sei que, se houver algum problema, posso contactar a equipa de psicólogos e a Valor T”, diz.

Fora do trabalho, Ricardo é uma estrela nas redes sociais, já lançou um livro infantil e o segundo será publicado em setembro.

“Posso não ter mobilidade, mas tenho personalidade.” É assim que apresenta na página de Instagram em que brinca com a sua condição.

“Quero mostrar que, apesar das minhas limitações, que são bastante óbvias, não sou assim tão diferente das outras pessoas, que posso trazer valor à sociedade. Só preciso de ser mais exposto e ter oportunidades para o fazer.”

O primeiro livro infantil, “Ricky”, é inspirado na sua própria vida e tem como objetivo promover a inclusão social entre as crianças. Ricardo levou este livro a várias escolas e tem o mesmo objetivo para o segundo.

"Dentro da minha incapacidade, sou um privilegiado"

João Jantarada recebe-nos à entrada da sede da Caixa Geral de Depósitos, onde trabalha há dois meses. Nasceu com paralisia cerebral, mas consegue andar pelo seu próprio pé. Diz que quis começar a procura por um emprego para perceber como é o mundo do trabalho, mas que ainda não desistiu da ideia de tirar o doutoramento em Física Nuclear.

“Pensei que seria importante para mim procurar emprego, para não ter que viver à conta dos meus pais.”

Enviou currículos e procurou trabalhos através do Instituto do Emprego e Formação Profissional (IEFP) durante cinco meses, mas nunca teve resposta. Conheceu o projeto da Valor T, da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, através da mãe, e foi um verdadeiro sucesso logo à primeira entrevista: “Na Valor T, mal recebi a proposta da Caixa, fui logo a uma entrevista.”

Olhando para trás, João diz que seria “sem dúvida” mais difícil encontrar emprego sem esta ajuda. “Senti que as coisas no IEFP não estavam a avançar, de todo. Era um processo muito mais complicado - não sei se, por causa da minha deficiência, ou se é mesmo assim. Mas notei a rapidez da Valor T e a disponibilidade de adaptar também o mercado de trabalho e a empresa onde eu estou às minhas necessidades físicas”.

Diz estar a ambientar-se bem aos horários e à equipa nesta nova etapa, num cargo que não está relacionado com o seu mestrado em Física Nuclear e de Partículas, que concluiu em fevereiro.

João diz também que, apesar da sua condição, é um “privilegiado”.

“A minha incapacidade deixa-me ver que há pessoas que também são prejudicadas na sociedade. E que, mesmo sendo deficiente, sou um privilegiado: a minha família é de classe média alta, eu sou branco, nasci em Lisboa, não nasci numa zona sem qualquer acesso a serviços públicos como no interior do país. Eu, dentro da minha incapacidade, sou um privilegiado. E ter essa noção faz-me perceber que, sendo deficiente, posso contribuir para que esse privilégio se esbate.”

Nasceu em Lisboa, mas o seu coração está em Miranda do Douro, onde passava férias em criança com a avó. Aos 15 anos, em sua homenagem, decidiu escrever um livro de poemas em mirandês.

"A minha família é de classe média alta, eu sou branco, nasci em Lisboa, não nasci numa zona sem qualquer acesso a serviços públicos como no interior do país. Dentro da minha incapacidade, sou um privilegiado"

Em 2017, candidatou-se à Assembleia da Junta de Freguesia dos Olivais, em Lisboa, mas a sua verdadeira paixão é a Eurovisão: foi à última final, em Liverpool, e já aprendeu dezenas de línguas graças às músicas de cada país.

Ricardo e João são dois jovens que beneficiam da lei aprovada em janeiro de 2019, que introduz quotas para pessoas com deficiência em médias e grandes empresas na promoção da inclusão social nas empresas.

Atualmente, as médias empresas com um número igual ou superior a 75 trabalhadores devem admitir trabalhadores com deficiência, em número não inferior a 1 % do pessoal ao seu serviço. As grandes empresas devem admitir trabalhadores com deficiência, em número não inferior a 2 % do pessoal ao seu serviço.

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