Entrevista Renascença

"As fotografias não podiam ficar na gaveta". 25 anos da História de Portugal por Rui Ochôa

02 jun, 2023 - 20:31 • Maria João Costa

Um livro e uma exposição na Sociedade Nacional de Belas Artes, em Lisboa, contam o percurso da vida profissional do fotógrafo Rui Ochôa, e tiram o retrato aos primeiros 25 anos da democracia portuguesa. Testemunha privilegiada dos acontecimentos, o fotojornalista revela uma imagem inédita de Salgueiro Maia.

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Recorda o dia em que fez a pé o percurso entre o aeroporto e a Sé de Lisboa atrás do Papa João Paulo II, na visita de 1982. Esta é uma das muitas histórias que Rui Ochôa guarda na memória, mas também em negativo. O repórter reúne agora em livro e numa exposição na Sociedade Nacional de Belas Artes, em Lisboa, parte do seu imenso arquivo fotográfico.

“74-99 Rui Ochôa”( ed. Casa das Letras) reúne 250 fotografias que retratam os primeiros 25 anos da democracia portuguesa. O fotojornalista, que trabalhou mais de 30 anos no semanário Expresso, foi uma testemunha privilegiada da História. “Não se dormia, não havia regras para nada, não se ia à casa, às vezes ia-se dois ou três dias depois só para tomar banho”, recorda Rui Ochôa em entrevista à Renascença.

Com curadoria da filha Elisa Ochôa, a exposição retira das gavetas fotografias como a de Salgueiro Maia que tirou no dia 25 de Abril de 1974 e que nunca publicou por ser “um purista” e achar que a foto estava desfocada. “Era preciso estar nos sítios, era preciso estar presente”, recorda Ochôa dos tempos em que tinha apenas 36 fotografias por rolo e quanto tinha de “poupar para não ficar sem munições”.

São suas imagens únicas que ficaram para a História como as que tirou em 1986 quando Mário Soares foi agredido na Marinha Grande durante a campanha eleitoral. Foram apenas 13 fotografias as que disparou. Ou a fotografia que fez capa da Revista do Expresso em que juntou Mário Soares, Amália Rodrigues e Eusébio.

Esta exposição de fotografia mostra uma parte da História de Portugal. Que período é este entre 1974 e 1999? O que representam estes 25 anos?

Antes de mais, isto é, em primeiro lugar, um livro. O livro é que é! A exposição é subsidiária. Veio atrás, porque as pessoas gostam muito das exposições. Este período do 74-99 são os primeiros 25 anos da Revolução, o fim do Século.

São 250 fotografias que estão no livro, aqui na exposição está apenas um terço. Eu pretendo com este conjunto vastíssimo de fotografias, tanto quanto me foi possível, e dos acontecimentos que vivi, e fotografei, mostrar às pessoas o que era o país naquela altura, até para poderem estabelecer comparações em relação àquilo que somos hoje.

Eu sou um fotógrafo eminentemente da área da política. É uma coisa onde me sinto muito bem. Gosto de política! Houve uma altura em que o livro tinha uma componente muito política e chamaram-me à atenção que tinha de facto muita gente da política e eu nem reparei! De facto, fui ver e tinha. Então resolvi retirar coisas da política e acrescentar mais pessoas.

O país real, como vemos em algumas das fotos?

O país real, exatamente! Isto, no fundo, são as pequenas histórias da História do país nos primeiros 25 anos do 25 de Abril.

Começamos esta viagem, na exposição e no livro, pelo dia 25 de Abril de 1974. Foi um dos fotógrafos que fotografou esse dia. Na pesquisa encontrou nos arquivos uma fotografia que até agora não era conhecida?

Foi uma fotografia do Salgueiro Maia que reporta ao próprio dia 25 de Abril, cerca de meio-dia. É o primeiro confronto, entre aspas, do Salgueiro Maia com a imprensa, com os jornalistas todos que se juntaram. Como deve estar a calcular, eram às centenas. Deu ali na rua uma conferência de imprensa a explicar aos jornalistas o que era aquilo, o que havíamos já conquistado e aquela fotografia, estava lá.

Nunca foi publicada?

Eu não tenho muitas coisas do 25 de Abril, porque na altura não era fotógrafo. Só sou fotógrafo muito mais tarde. Era jornalista, mas da escrita. E como tinha uma grande paixão pela fotografia, fui fazendo umas coisas. Essa fotografia ficou um bocado esquecida, porque eu sou um purista e a fotografia tinha um bocadinho desfoque. Ficou na gaveta.

Só há muito pouco tempo, há uns cinco ou seis meses, já no final da escolha definitiva do que era o livro, houve um colega meu, o Alfredo Cunha, um grande fotógrafo também, e meu amigo, que me disse: "Oh Rui, mas tu tens aqui uma foto fantástica, tu não metes? - Eh pá, isso está desfocado. – Estás, mas é maluco! - Isso não tem nada a ver hoje em dia".

A fotografia de Salgueiro Maia é simbólica do momento.

A fotografia ganhou um estatuto com o tempo que não tinha na altura. Hoje em dia o facto de estar um pouco com falta de nitidez, digamos, o momento histórico, sobreleva a falta de qualidade da fotografia. Pronto… até nem tem tão má qualidade, mas, como disse, eu sou um purista e às vezes há fotografias que ficam na gaveta anos, anos e anos e não são utilizadas exatamente por esse meu purismo.

Francisco Sá Carneiro Foto Rui Ochôa
Francisco Sá Carneiro Foto Rui Ochôa
Manuela Eanes em campanha pelo PRD Foto Rui Ochôa
Manuela Eanes em campanha pelo PRD Foto Rui Ochôa
Dona Branca Foto Rui Ochôa
Dona Branca Foto Rui Ochôa
Aprovação da Constituição no parlamento a 2 de Abril de 1976. Foto: Rui Ochôa
Aprovação da Constituição no parlamento a 2 de Abril de 1976. Foto: Rui Ochôa

Este percurso pelo livro, mas também por esta exposição mostra como foi um espectador privilegiado de muitos momentos. Estão aqui algumas fotografias que são "exclusivo" seu. Teve sempre essa noção de estar a documentar a História?

Na verdade, nunca me senti um espectador muito privilegiado. Eu fazia parte do espetáculo, da vida política que era naquela altura inebriante. Não se dormia, não havia regras para nada, não se ia à casa, às vezes ia-se a casa dois ou três dias depois para tomar banho! Era preciso estar nos sítios, era preciso estar presente, por obrigação profissional, mas também porque sentíamos que eram momentos inolvidáveis. Iríamos mais tarde chegar à conclusão que tínhamos feito parte também dessas vivências todas.

Ou seja, no momento, nem sempre teve essa perceção de que estava a viver um instante que iria ficar na História de Portugal?

Há uma coisa que sempre foi constante na minha cabeça. É um bocadinho, exagerado da minha parte estar a pensar que sou um pouco parte da História. Não é nada disso! A noção que eu tive sempre, e o que me levava, o que me encaminhava, era que as imagens no futuro iam ser úteis para o melhor conhecimento dos momentos que estávamos a viver. Isso era um motivo forte. Aquelas imagens eram o prazer de eu estar a viver, por exemplo, no 25 de Novembro. Já não ia à cama há dois dias. Mas estava ali e tinha de fazer aquelas imagens, porque iriam ser muito importantes daqui a 20 anos, 30, ou 40 anos.

Já se passaram quase 50 anos. É uma vida! Esta exposição, senti-me quase na obrigação de a fazer exatamente, porque as fotografias não podiam ficar na gaveta! Seria uma situação um bocado egoísta da minha parte, não as mostrar.

Daí nasceu a ideia para o livro?

O agora Presidente da República, o Professor Marcelo Rebelo de Sousa, eu trabalhei com ele no Expresso e, portanto, fizemos uma amizade ali. Cada vez que me encontrava na rua, dizia-me sempre: “Rui, quando é que fazemos o livro, aquele livro?” e eu respondia, “está bem, qualquer dia”. Ele dizia, “Eu quero participar!”. Fui adiando, adiando porque a vida não pára, há outras coisas que vão surgindo, a própria carreira, os acontecimentos vão mudando e absorvem-nos até que a minha filha Elisa [Ochôa], que é a minha curadora, ao ter conhecimento do meu espólio, porque só entrou no nisto há quatro ou cinco anos, disse-me: “Oh pai, temos que fazer o livro!”. “Mas eu não tenho tempo”, dizia!

O livro absorve. Nestes últimos dois anos eu não fiz mais nada. Quer dizer, tive de andar com o presidente, e fiz mais dois livros, entretanto, no meio disto tudo. Fiz um livro sobre as visitas dos Papas a Portugal, uma exposição que inaugurei em Roma. Fiz um livro sobre o incêndio do Chiado. Sei lá, já nem sei bem… um livro sobre a América. Portanto todos os anos eu tenho publicado um livro, portanto a desculpa de que não tinha tempo para fazer “o livro” não cabia! E então, ela instigou-me.

E contou com a participação do amigo Marcelo?

Quando cheguei há 10 meses ao pé do agora Presidente da República, disse assim: “Presidente, é agora!” - o quê? “O livro!” - A sério? “Sim! Mas há uma coisa que queria pedir. Tem de escrever-me um texto, mas não na qualidade de presidente, enquanto cidadão que viveu aqueles acontecimentos”.

Ele imediatamente anuiu. É engraçado que perguntou-me logo: “Mas qual é o espaço?” Lancei para o ar, pouco convicto, 20 mil carateres. Ele, não sei se fez a mínima ideia do que são 20 mil caracteres, perguntou-me: “E folhas?” que nós chamávamos nas redações “linguados”. “E folhas?” - seis ou sete folhas. “Ah, mas isso é muito!”. Tem de ser uma coisa consistente que tem a ver com as fotografias. É um suporte uma coisa da outra.

Um dia, em janeiro, fevereiro, para aí, ligou-me à 1h00 da manhã a dizer, assim, “Rui já está! Está fantástico, muito bem, só tem um problema”, disse ele. “Qual é?” - Tem 34 mil caracteres! “Ótimo!” - A sério?! “Ótimo!”. Tive de aumentar o número de páginas, porque o livro ainda por cima é bilingue. O texto está a dobrar.

E o texto do cidadão Marcelo Rebelo de Sousa?

Acho que é um texto onde deve ser assinalada a qualidade. Não seria de esperar outra coisa, com certeza! É uma oportunidade o texto do senhor presidente, ou do cidadão Marcelo Rebelo de Sousa. É um texto, pela sua extensão, conta a par e passo tudo o que se passou politicamente na sociedade portuguesa naquele período de 25 anos. É impressionante! Acho que qualquer aluno de Ciência Política das universidades precisa de ter aquele texto, porque vai passar nos exames todos! Aquele texto tem lá a História toda, explicada como ele, melhor do que ninguém, sabe explicar.

Agustina Bessa Luís Foto Rui Ochôa
Agustina Bessa Luís Foto Rui Ochôa
José Cardoso Pires e José Saramago Foto Rui Ochôa
José Cardoso Pires e José Saramago Foto Rui Ochôa
Chico Buarque Foto Rui Ochôa
Chico Buarque Foto Rui Ochôa
Mário Soares Foto Rui Ochôa
Mário Soares Foto Rui Ochôa

Hoje continua a fotografar e continua a acompanhar também o presidente, mas fotografar de 1974 a 1999 era muito diferente. Usavam-se rolos fotográficos, tinha-se um limite de fotografias. Como era o fotógrafo de então, Rui Ochôa e o fotógrafo de hoje? Quais são as diferenças?

Os tempos são diferentes. Mas evidentemente, a mudança do analógico para o digital foi uma revolução que nem todos aceitaram. Alguns ficaram pelo caminho, porque não se adaptaram às novas tecnologias e eu senti que não, que tinha de acompanhar. Fui estudar. Fiz cursos de Photoshop, de tratamento de imagem, sei lá!

Eu não sabia ligar um computador há 15 anos, porque tinha uma repulsa, era uma maçada, e, portanto, é diferente hoje-em-dia. Naquela altura tínhamos uma limitação, porque cada filme tinha 36 imagens. Gastar 10 filmes numa reportagem era uma loucura, era muito dinheiro! Portanto, aquilo era tudo poupadinho.

As imagens eram certas. Era provavelmente mais difícil, no momento, porque tínhamos que poupar para não ficarmos sem munições, mas depois, agora no tempo do analógico é tudo muito mais fácil, mas tem um problema. É que em vez de fazermos 36 fotografias, fazemos 3600 num dia! E depois escolher? Editar? É uma tragédia! É diferente, na verdade. Tenho saudades do tempo do analógico, mas o digital resolve bem o problema.

Das fotografias todas que tem no livro e também algumas que aqui estão nesta exposição, há alguma em particular, algum momento que queira destacar? Algum momento especial?

A pergunta que me está a fazer é assim: Tens 5 filhos e perguntam-te de qual é que tu gostas mais? O que é que tu respondes? Gosto de todos! Bom, não gosto de todas as imagens, são muitas, ninguém tem 250 filhos!

Há imagens que me marcaram muito, por exemplo. A visita do Papa João Paulo II em 1982. Eu vim do aeroporto atrás do carro a pé até a Sé! Eu era novo. Hoje-em-dia, não podia. Vim de o aeroporto a correr atrás do carro, e a parar para fotografar e a parar recuperar até à Sé!

Aliás a fotografia que está aqui na exposição e no livro é fotografada na Sé. É uma fotografia hoje impensável, pela envolvência que o Papa tem com milhares de pessoas à volta. Hoje-em-dia, a segurança não permitiria.

Depois há também a fotografia dos acontecimentos da marinha grande, da campanha eleitoral de 1986 com Mário Soares. Também foi muito marcante. Fui o único fotógrafo a fazer aquelas imagens. Foi totalmente exclusiva. Foram publicadas em todo o mundo. É um conjunto de 13 imagens, com flash à noite. Hoje seriam 130! Não sei se seria melhor. Não seria melhor!

Depois tenho imagens de pessoas de que também gosto muito. Um plenário de trabalhadores de Rio Maior, é uma imagem que eu adoro que descobri também há pouco tempo. Nunca tinha sido publicada. É uma imagem de regozijo de agricultores daquela zona, quando foi do 25 de Novembro. É uma imagem, parece um filme do Antonioni, muito bonita.

Se se fotografasse ao espelho, a olhar esta exposição e este livro, estes 25 anos de imagens que retrato tirava a si próprio?

Tirava um retrato de um sonhador! Eu sou um sonhador. O sonho comanda a vida e não devemos perder o sonho, porque o sonho faz-nos falta. Situa-nos, não nos retira do chão, da terra. É o sonho!

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