Astronomia. Carta de 1626 encontrada na Biblioteca Joanina

15 mai, 2023 - 22:23 • Liliana Carona

Missiva foi trocada entre um astrónomo jesuíta italiano e um professor da Universidade de Coimbra. “Eu olho para a carta e vejo uma coisa que ainda ninguém tinha dado importância", diz à Renascença a professora Carlota Simões.

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Astronomia. Carta de 1626 encontrada na Biblioteca Joanina

Foi encontrada na Biblioteca Joanina, em Coimbra, no meio de um livro, uma carta do século XVII, testemunho da correspondência entre dois astrónomos: Cristóvão Borri, um astrónomo jesuíta italiano que deu aulas na cidade dos estudantes e ali fez observações astronómicas, e D. André Vaz de Almada, professor da Universidade de Coimbra. O documento refere-se à "primeira grande reforma científica" (Banha de Andrade) em Coimbra, no século XVII.

D. André Vaz de Almada estava a observar os céus na Universidade de Coimbra, morava no colégio Real de S. Paulo e o jesuíta italiano Cristóvão Borri, no Colégio de Jesus. Ambos eram astrónomos. Trocaram uma carta em outubro de 1626.

A missiva foi agora encontrada e analisada por Carlota Simões, professora do Departamento de Matemática da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra.

“O livro onde foi encontrado é um livro de tabelas astronómicas, onde ele provavelmente estava a fazer as suas contas. A carta está naquele papel espesso, com aquela marca d’água, escrita a sépia. Uma carta antiga”, descreve a docente.

Carlota Simões encontra várias leituras naquele documento. “Eu olho para a carta e vejo uma coisa que ainda ninguém tinha dado importância. Borri era um astrónomo, que viveu no mesmo tempo que Galileu, Keppler. O Galileu achava que a terra se movia, o Borri achava que os céus eram fluidos, sem zonas estanques, o interesse dele era provar que não podia haver esferas estanques para cada um dos astros. Se ele está a dizer: 'não sei se já viu que Marte está a sair atrás do Sol', quer dizer que estavam a fazer observações em separado. Não sabíamos que se faziam observações neste colégio”, elucida.

A carta dá uma imagem clara do seu empenhamento reformista e também da escassez de livros matemáticos em Coimbra. “Esta descoberta aconteceu durante uma limpeza de livros, e este livro do século XVII não estava catalogado e dentro deste livro estava um papel. A primeira pessoa que deu conta foi o Dr. Maia do Amaral, diretor adjunto da biblioteca da Biblioteca Geral”, revela Carlota Simões.

Naquela altura (século XVII) havia muitos jesuítas que vinham de outros países, com destino à Ásia para realizarem missões e alguns passaram por Coimbra, também para apoiar no estudo da matemática e é neste contexto que Borri surge. Das suas observações resultou mais tarde a gravura da Lua vista por Cristóvão Borri, a 18 de julho de 1627, com um telescópio pertencente a D. André Vaz de Almada, muito provavelmente o mais antigo documento gráfico de uma observação astronómica feita em Portugal.

Cristóvão Borri (ou Bruno) foi o introdutor em Portugal do sistema astronómico de Tycho Brahe, que condenava o conceito das esferas celestes rígidas.

Como foi encontrada a carta?

Com a aquisição de uma câmara de anoxia, em 2016, a Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra (BGUC) passou a dispor de um equipamento que permite a preservação dos livros através da sua higienização evitando, por exemplo, a propagação de fungos, sem utilizar material químico.

Com o procedimento de limpeza profunda de cada livro, iniciou-se a recolha de todos os objetos estranhos encontrados nessas obras.

“Desde que a entrada em funcionamento da câmara de anoxia passou a exigir revisão e limpeza profunda de cada um dos livros antigos da Biblioteca Joanina que iam passar ou tinham passado pelo azoto, pedi às pessoas envolvidas nesse trabalho que retirassem de dentro dos livros todos os 'objetos' estranhos e deste processo resultaram (em 5 anos) centenas de envelopes com fragmentos de papéis, flores secas, santinhos, ephemera várias, 'lixos' diversos”, explica Maia do Amaral, diretor adjunto da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra e responsável por esta iniciativa.

E foi no processo de limpeza de um exemplar do livro de Nicolaus Mulerius, que pertenceu à biblioteca do Colégio Real de São Paulo, que se encontrou uma folha de papel dobrada na forma habitual de uma carta do século XVII, autógrafa em caligrafia humanística descuidada, tinta sépia em papel feito à mão, de origem francesa.


A transcrição na íntegra da carta:

Ao Padre Dom André d´Almada, Lente de Prima no Colégio Real

Que Deus guarde

Lá vão os dois livros de Vossa Mercê, o Origano e Tábuas Frísicas com o compasso. Deus lhe pague por muitas vezes a grande caridade que nisto me faz, porque se Vossa Mercê não fora e me socorrera não

sei que, e como havia de fazer, porque deixam cá isto muito desemparado em coisas matemáticas. O Senhor Marte já neste tempo desceu debaixo do Sol, e Vossa Mercê já o veria e notaria, pois bem grande e formoso aparece; mas por estar no signo de Libra, seus rumores não terão efeito se não com peso e consideração, por isso com vagar.

Já antes das ferias comecei de refutar a astronomia antiga dos céus, mas somente em quanto a alguns argumentos filosóficos, e teológicos, reservando-me as demonstrações astrológicas para o princípio dos estudos; parece-me que os ouvintes estão já bastantemente dispostos para não estranharem a nossa opinião; em fim tantas bombardadas visaremos a esses céus não só com o piloro de Marte, mas com todos os dos mais planetas, cometas, e estrelas, que me parece não ficará coisa nenhuma sólida e dura que lhes possa resistir. No mais veja se em alguma cousa presto, e me mande, que me achará sempre prestes no que for de seu serviço. Com que Nosso Senhor, etc.

De casa, hoje 2.a feira.

De Vossa Mercê, servo em Cristo

Cristóvão Brono

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