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20 anos de Gato Fedorento

José Diogo Quintela. "Esta geração é mais sensível, tem os sentimentos à flor da pele"

30 mar, 2023 - 18:29 • Diogo Camilo

Em entrevista pelos 20 anos de Gato Fedorento, o humorista diz que o sucesso do grupo foi "fruto das circunstâncias" e admite que deixou de achar piada aos sketches ao fim de três anos.

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Entrevista a José Diogo Quintela nos 20 anos dos Gato Fedorento. Foto: André Pereira/RR

Nos primeiros sketches de Gato Fedorento, José Diogo Quintela foi o Fernando, chamado em situações de emergência para acalmar quem estava a "abichanar", venceu 30 edições do concurso de ‘Homem mais odiado do mundo’ na pele de fiscal da EMEL, foi instrutor de fitness racista e pertenceu a uma claque de futebol de seminaristas.

Vinte anos depois da formação do grupo, faz parte do grupo de Isto é Gozar Com Quem Trabalha, juntamente com Ricardo Araújo Pereira e Miguel Góis, além de escrever opiniões no Observador e ser sócio de uma cadeia de padarias, a Padaria Portuguesa.

Em entrevista à Renascença, depois das Três da Manhã lhe perguntarem o que fez de tão errado nos anúncios da MultiOpticas para ser substituído por Dolores Aveiro, a mãe de Cristiano Ronaldo, o humorista admite que os Gato Fedorento foram "fruto das circunstâncias", que deixou de achar piada aos sketches e que só está no programa da SIC "para o convívio".

Partilhas a opinião do Miguel Góis, de que alguns dos sketches dos Gato Fedorento não seriam bem recebidos hoje em dia?

Sim, alguns dos sketches seriam mal recebidos. A maior parte ia continuar a ser bem recebida, os sketches mantêm a validade de quando foram feitos. Fizemos aquilo porque nos divertimos a fazê-lo, porque achávamos graça, o objetivo era sempre fazer-nos rir. Quando cada um chegava com uma ideia, se fizesse os outros rir era uma boa ideia. Íamos fazer o sketch e sentíamos que tínhamos uma boa ligação com o público, que gostava daquilo que nós gostávamos. Acho que isso se mantém.

Só que agora haveria uma franja, que eu digo que não é muito alargada mas é muito vocal, que provavelmente iria para as redes sociais protestar. Daí passar para não se fazer, ou os sketches não existirem, quero crer que é um passo que não ia ser dado, mas que iam existir mais protestos, iam.

E tens a mesma opinião do Tiago Dores, que acha que, se os Gato Fedorento fossem criados cinco anos antes, que não teriam o mesmo impacto?

Talvez, nós fomos fruto das circunstâncias. Ganhámos com a SIC Radical - não sei se cinco anos antes havia SIC Radical [foi fundada em 2001, dois anos antes do aparecimento dos Gato Fedorento]. Ganhámos com o aparecimento do YouTube, que aparece depois dos Gato Fedorento, mas a circulação de emails já havia. Nós somos um produto do nosso tempo, não sei se cinco anos antes teríamos tido o mesmo resultado.

O Ricardo Araújo Pereira falou que eras sempre o primeiro a desmanchar-te a rir nos sketches dos Gato Fedorento. Continuas a ser o primeiro fã dos formatos que fazes?

Eu não chamaria fã, mas sim eu desmanchava-me por duas razões: porque achava genuinamente graça e porque sou mau ator e não tenho as ferramentas que permitem um um ator estar concentrado. Não tinha esse nível de profissionalismo. E depois há uma altura a partir da qual eu deixei de me rir. Observadores externos podem achar que foi o momento em que eu me tornei profissional a fazer aquilo. Mas não, foi quando eu deixei de achar piada ao Gato Fedorento e ia lá só para trabalhar.

Quando é que deixaste de achar piada?

Sei lá, passados três anos já não achava a graça que achava no início. No início achava os sketches muito giros.

Aconteceu por ser repetitivo?

Não, foi uma questão de hábito. Porque no início aquilo era mesmo novidade, senti-me um jovem numa loja de chocolates, num bar onde podes beber tudo o que tu queres sem pagar e eu estava maravilhado. E estar ali a fazer aquilo era muito engraçado.

Há uma altura a partir da qual eu deixei de me rir, foi quando deixei de achar piada ao Gato Fedorento e ia lá só para trabalhar

E agora no Isto É Gozar Com Quem Trabalha qual é a tua função? O Miguel Góis disse que tinha a função de xerife.

Pois, o Miguel tem a posição de responsabilidade. Eu tenho a posição de irresponsabilidade. Acho que o resto da equipa, os mais novos, ao início olhavam para nós mais velhos da mesma forma, mas agora já começam a perceber: “Este Zé Diogo anda aqui a enganar a malta.” Eu vou lá mais para o convívio, basicamente.

E hoje em dia sentes-te mais guionista ou humorista?

Agora o meu papel é, basicamente, só a parte da escrita. Deixei de aparecer, volta e meia faço umas aparições pontuais, mas o meu papel é mais como guionista.

Qual é a tua visão atual sobre o humor? Sentes que Portugal está atrasado em relação ao resto do mundo?

Portugal está no humor como está em todas as áreas, em relação ao resto do mundo. Nunca estamos na vanguarda, estamos sempre a reboque. Portanto, temos humor e começa a haver uma indústria do humor, mas que não é como nos sítios em que essa área é mais desenvolvida, como Estados Unidos ou Inglaterra, que nós usamos mais para inspiração.

Sobre o estado do humor, em relação ao que era há 20 anos, agora noto na comédia que vou vendo que o humorista vê está muito virado para si próprio e gosta muito de falar de si e dos seus problemas. É uma boa base para fazer comédia, mas é uma coisa muito autocentrada.

Neste momento é muito raro o humorista que não tem uma doença mental qualquer porque parece que está na moda agora. E todos os stand-ups que eu fui ver ultimamente começam com referências e eu não acho que haja mais problemas mentais agora do que havia há 20 anos. Parece que é o único tema e a única razão para que o humorista encontra para parecer diferente, é uma coisa que eu tenho notado.

E para onde vai caminhar o humor nos próximos 20 anos?

Bom, os que têm problemas mentais, mais cedo ou mais tarde vão-se suicidar. Portanto, vão ficar só aqueles que fazem outro tipo de humor. Não se vão suicidar, mas vão procurar ajuda.

Sentes que há mais limites no humor ou são apenas limites diferentes? Estamos mais sensíveis?

Acho que esta geração é bastante mais sensível do que a geração anterior. É uma geração que se machuca muito mais facilmente com coisas que ouvem e veem, têm os sentimentos muito mais à flor da pele. Em relação aos limites, acho que há muito mais autolimites do que havia antigamente e quem começa agora a fazer o humor policia-se muito mais, porque não quer correr riscos de ver trabalho recusado.

As empresas, sejam as televisões, rádios, editoras estão muito mais preocupadas e as reações são muito mais exacerbadas, porque se passam em redes sociais e pega tudo fogo num instante, as pessoas policiam-se muito mais e há uma perda na qualidade do humor, porque o humor nasce, muitas vezes, num local de risco, em que experimentamos dizer coisas que podem ir além do limite das convenções. Se o humorista não vai predisposto para isso, vai arriscar menos e o humor perde.

Há muito mais autolimites do que havia antigamente e quem começa agora a fazer o humor policia-se muito mais

Durante os 20 anos de Gato Fedorento abriste uma cadeia de padarias. O que podemos esperar para os próximos 20?

Aprendi que aquela coisa do ‘segredo é a alma do negócio’ tem alguma razão de ser. Abri, junto com o meu primo e sócio, Nuno Carvalho, a Padaria Portuguesa há 13 anos, mas percebi que a ligação a mim não beneficia assim tanto o negócio e não vale a pena criar ruído.

É um negócio que vale por si, pela sua qualidade. Não é por ser a padaria do Zé Diogo, portanto, lamento, mas não vou revelar ideias de futuro para os meus negócios, que as tenho. Mas vou guardá-las.

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