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20 anos de Gato Fedorento

RAP sobre Joana Marques: "Há 20 anos uma menina doce de 1,50m não incomodava ninguém. Hoje é vista como o anticristo"

29 mar, 2023 - 16:45 • Diogo Camilo

Ricardo Araújo Pereira diz que teve a sorte de outras pessoas acharem graça ao que fazia e continua considerar o desafio de fazer meia hora de televisão sobre temas chatos "muito sedutor e nada confortável". Vinte anos depois, o humorista continua sem perceber o fenómeno dos Gato Fedorento.

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Entrevista a Ricardo Araújo Pereira nos 20 anos dos Gato Fedorento. Foto: André Pereira/RR
Entrevista a Ricardo Araújo Pereira nos 20 anos dos Gato Fedorento. Foto: André Pereira/RR

Ricardo Araújo Pereira já foi o gajo de Alfama, um vendedor de Konami, o piloto, copiloto e comissário de bordo da Javard Air, um indivíduo que pergunta onde está o papel, mas também um indivíduo que é javardola - menos quando fala francês. O rosto mais popular do Gato Fedorento é hoje a cara do Isto É Gozar Com Quem Trabalha, na SIC, mas tem uma vasta equipa, na qual diz ser apenas um mero ministro da Cultura.

Depois de ter admitido às Três da Manhã que muitos sketches dos Gato Fedorento "vieram da observação a Zé Diogo Quintela", o humorista sentou-se com a Renascença para elogiar uma "menina, doce, de metro e meio, que muitas pessoas veem como o anticristo".

Há alguma razão para que estes sketches dos Gato Fedorento perdurem na memória dos portugueses durante 20 anos?

Há pessoas que dizem: "Ah, há aqui uma fórmula para atingir o sucesso", que é relativamente fácil e tal. Adorava que me dissessem qual é. Sinceramente, eu gostava que me dissessem qual é. Por exemplo, o programa que temos agora, no horário nobre dos domingos da SIC. É assim tão óbvio que as pessoas queiram ver piadas sobre o ministro da Saúde ou comissões parlamentares de inquérito sobre o BES?

Há crianças de 10 anos na plateia, é uma coisa incompreensível. Não se consegue perceber aquilo. Eu não sei o que é. No caso do Gato Fedorento, menos ainda. Fizemos o que achávamos graça, tivemos a sorte de haver outras pessoas a achar graça também. É uma bizarria que eu não sei explicar.

O Tiago Dores disse ontem que, se os Gato Fedorento fossem lançados cinco anos antes, não teriam o mesmo impacto. Sentes que ficaram mais conhecidos ou perduraram na memória por terem entrado na esfera das redes sociais e do YouTube?

É difícil dizer. Mas é isso, aquilo calhou nos primórdios do YouTube. E havia outra coisa que me lembro: as pessoas enviavam por email umas para as outras sketches nossos dos Gato Fedorento. Era um modo muito primitivo de partilhar sketches. Hoje em dia não é assim que se faz, não é? Foi tudo uma questão de sorte. É provável que, se aquilo não tivesse surgido naquela altura específica, o resultado tivesse sido outro muito diferente.

Fizemos o que achávamos graça, tivemos a sorte de outras pessoas acharem graça também

Surgiu depois o salto dos sketches para os programas, como o Diz Que é Uma Espécie de Magazine ou o Zé Carlos, em que abriram caminho para falar com humor sobre política. Foi um caminho pensado ou foi uma necessidade da altura?

Provavelmente. No início fazíamos sketches que eram intemporais. Ou seja, por exemplo, hoje vim aqui à Rádio Renascença e fiz ali meia dúzia de sketches com a Inês Lopes Gonçalves, que fazem tanto sentido hoje como naquela altura porque não são sobre coisa nenhuma. Só na SIC Radical fizemos 150 sketches e depois na RTP fizemos mais alguns.

Chega a uma altura em que é difícil pensar para que sítio vamos. Então mudámos. A vantagem dos programas sobre a atualidade é que cumprem uma função, e o facto do programa ser muito popular comprova isso, que é a de: "eu quero ver agora neste domingo o resumo que estes palermas fizeram da semana que acabou de passar".

Sentes que cumpres um papel para as pessoas que não estiveram tão a par da atualidade durante a semana?

Espero que não, porque as pessoas não devem informar-se connosco. Não somos jornalistas e não temos critérios jornalísticos que fazem com que uma notícia seja uma notícia, temos critérios muito diferentes. Convém as pessoas informarem-se nos sítios onde se dá informação e não no nosso programa.

Os Gato Fedorento abriram um caminho em Portugal para o humor político?

Às vezes temos a tendência para esquecer o que ficou para trás. Até 1974, pelo menos na televisão, era difícil pela ditadura, embora houvesse resistentes a fazer comédia. Há vários livros do José Vilhena que eram passados clandestinamente entre as pessoas. Mas mesmo depois disso, há programas que tocavam o humor político. O Contra Informação, por exemplo, que durou bastante tempo.

Desde os Gato Fedorento poucos programas de humor político passaram a existir. Por que achas que mais ninguém faz este tipo de humor, pelo menos de forma tão visível?

Sim. O Diogo Batáguas fazia uma coisa no YouTube, o Relatório DB, e isso era uma coisa engraçada. Era mensal, mas lá está, um programa deste tipo é relativamente caro, porque envolve uma atenção grande à atualidade e também não é fácil de apresentar. Lembro-me de olhar para o Batáguas e sentir as dificuldades que ele estava a sentir, porque são as minhas. O programa consiste num tipo sentado a uma secretária a resmungar, não há muitos recursos, a não ser o que estou a dizer.

O Miguel Góis disse que não havia o risco de fazerem humor mais político e de se tornarem panfletários no vosso programa, seguindo o exemplo do que aconteceu nos Estados Unidos ou do Brasil com o Trump e o Bolsonaro, em que programas se tornaram mais políticos com a ascensão desses líderes. Também não tens esse medo?

Não, não. Quando se fala em sátira política, há pessoas que estão mais interessadas em política. Nós estamos verdadeiramente interessados em sátira. É isso que nos interessa. As pessoas que estão interessadas em política estão preocupadas com o efeito que o que foi dito pode ter. Nós estamo-nos borrifando para isso. Fazemos o que achamos que tem graça.

Não há ninguém no espectro político português que ainda não tenhamos falado. Neste momento, por exemplo, o governo é de centro esquerda, quer dizer do PS, e por isso a maior parte do programa é sobre o PS, sobre este Governo. Quando o Governo mudar, será sobre esse.

Existe algum formato que gostassem de explorar?

Nunca estivemos confortáveis na vida. Fazemos este programa há uns três ou quatro anos, e não sabemos fazê-lo. Continuamos a sofrer ao domingo como condenados quando estamos a fazer aquilo. Continuamos a achar o desafio de fazer meia hora semanal sobre temas que, muitas vezes, são chatos, muito sedutor e nada confortável.

Há pessoas que estão mais interessadas em política. Nós estamos interessados em sátira

Como é que mudou a tua visão sobre o humor nos últimos 20 anos?

Não diria que mudou. Continuo firmemente convencido de que isto tem um objetivo, que é fazer rir as pessoas, e que esse objetivo é bastante nobre, porque temos apreço pela ideia do riso. É até uma coisa meio triste do ponto de vista psicanalítico, o de termos esta necessidade absoluta de provocar nas pessoas uma reação que nos engane a ponto de parecer afeto. Se calhar temos algum problema, não digo que não. Mas se esse problema existir, deu-me tudo o que eu tenho na vida.

E sentes que o humor em si mudou? Ou a essência continua a ser mais ou menos a mesma?

A perceção pública e, às vezes, até a prática do humor, acho que tem mudado. Há uma coisa agora que tem a ver com uma espécie de lamechice. E a lamechice é profundamente anti-humorística.

Há mais ou menos limites no humor do que havia há 20 anos?

Não sei se são mais tabus, são tabus diferentes. E isso não é mau. O facto de haver tabus diferentes faz com que, por exemplo, uma menina, doce, de 1,50 metros, que tem uma rubrica humorística na Rádio Renascença [a Joana Marques], seja vista por muitas pessoas como o anticristo.

Há 20 anos, uma menina de 1,50 metros, de voz nasalada, que fazia humor na Rádio Renascença, em princípio não incomodava ninguém. Vinte anos depois, gera uma irritação, uns nervos… Isso é o documento de alguma coisa mudou em termos de tabus.

E qual será o rumo do humor para os próximos 20 anos? Essa indignação com as coisas mais simples vai continuar? Vai amplificar-se?

É possível que sim. Mas o sucesso estrondoso da Joana Marques, por exemplo, indica que, para uma grande massa do público, o que continua a interessar é se uma pessoa tem graça ou não tem graça. Isso tranquiliza-me. Se as pessoas acham graça a uma coisa, vão ouvir. Acho ótimo. É assim que funciona.

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