13 jan, 2023 - 18:08 • Maria João Costa
“Aberto Todos os Dias” é um livro de recomeços, onde o poeta valoriza as coisas simples, como estar sentado à mesa de um café, o seu lugar de eleição para a escrita de poesia. João Luís Barreto Guimarães ainda vive no rescaldo da atribuição do Prémio Pessoa, o “mais importante” que recebeu até hoje, diz em entrevista à Renascença.
O poeta, cirurgião de profissão, que ganhou, além do prémio, também novos leitores, fala de “Aberto Todos os Dias” (ed. Quetzal) como um livro que “quis celebrar o mundo que nos é devolvido após a pandemia, o confinamento, e iluminar” o que nos está a acontecer.
Em cada página estão poemas que escreveu durante a pandemia. Diz que “precisamos da capacidade de nos espantarmos”, porque “passamos pelas coisas adormecidos”. “Aquilo que um criador tenta é dar o seu testemunho, a sua visão do mundo, numa linguagem diferente”. Na poesia de Barreto Guimarães há espaço para tudo, desde uma garça no rio, um jantar de amigos, Deus ou “Coisas à espera de vez”, como diz num poema à Renascença
José Luís Barreto Guimarães lê poema do seu último livro, "Aberto Todos os Dias"
"Aberto Todos os Dias" é um livro que sai no rescaldo do Prémio Pessoa. É um livro em que podemos encontrar o que o júri do prémio dizia, que "escreve sobre nós"? Já estava escrito antes?
Felizmente que já estava feito! Porque, efetivamente, já tinha sido entregue em novembro e já tinha passado por todo o processo de provas e, inclusive, já tinha sido enviado para a gráfica. Não querendo comparar, fala-se muito do Síndrome de Estocolmo, da Wislawa Szymborska, em que é conhecido o facto da poetisa ter estado quase nove anos sem publicar nada entre o livro anterior e o livro que saiu a seguir ao Prémio Nobel, porque terá sofrido uma espécie de bloqueio criativo em que, naturalmente, terá pesado o facto de haver uma responsabilidade acrescida quando se ganha um prémio de uma dimensão grande.
Tem esse receio?
Uma vez mais, não querendo comparar, este é efetivamente o prémio mais importante que recebi até este momento. E que me vai obrigar a estar particularmente atento ao próximo livro. Não que não esteja relativamente aos anteriores, mas não ignoro que o nível de responsabilidade aumentou.
Aumentaram também os leitores?
Sim, aumentaram também os leitores, o que é bom. E, por outro lado, me leva a uma situação de cuidado, porque, sendo esta poesia uma poesia que nunca escondeu o seu desejo de comunicar, colocam-me muitas vezes a questão de quando pretendem começar a ler a minha poesia, por qual dos livros começar?
O que responde?
Eu tendo a não responder a essa questão especificamente, porque em mim existe um pouco a esperança de que qualquer livro que eu escreva possa constituir uma porta de entrada para a leitura da restante obra. E eu espero que o próximo livro também venha a ser assim mesmo para um leitor não habituado a ler poesia, como imagino que sejam alguns dos que vão chegar agora.
Num dos versos do poema "Sigam o guarda-chuva verde" diz que "escrever é fazer existir o que antes não existia". É isso a poesia, dar corpo a algo que não sabíamos que existia?
Faz muito sentido, porque uma das preocupações da poesia tem sido sempre pôr em evidência coisas, pensamentos e gestos que existem à nossa volta, mas que, muito provavelmente, por desatenção ou pela própria voragem dos dias, não temos uma particular capacidade de os detetar. Até ao momento em que eles nos aparecem escritos num papel. É nesse sentido que a poesia surge, ou que esse mundo paralelo que existe neste mundo, como dizia o Valéry, surge materializado através da escrita.
Algum exemplo?
A Wislawa Szymborska tem um verso muito engraçado em que fala de um copo que estava em cima da mesa e que ninguém tinha reparado nele, até ao momento em que ele caiu. E eu próprio já tenho estado atento a essa ideia. Por exemplo, no livro "Mediterrâneo", num poema chamado "História de uma tarde", em que falo concretamente de uma tarde que ficou esquecida no passado, e que precisamente não existiu, ou não terá existido, ou, se quisermos, não existe, se ninguém escrever sobre ela. Isto diz-nos qualquer coisa acerca do que é efémero no nosso quotidiano, e diz-nos muito sobre a voragem do tempo e dos dias.
Em "Aberto Todos os Dias" no poema "Gasolina" escreve: "Sem querer fomos perdendo a capacidade do espanto". Em que medida nos faz falta esse espanto perante os dias? A poesia ajuda a esse reencontro?
Sim, e precisamos dessa capacidade de nos espantarmos para a poesia poder acontecer. Esta sensação de que o que existe, por vezes, de que passamos pelas coisas adormecidos e não paramos duas vezes, ou seja, não reparamos perante as coisas. E parar duas vezes já é reparar, é uma ideia que acompanha os criadores.
Aquilo que um criador tenta é dar testemunho de um mundo, o seu testemunho, a sua visão do mundo, de forma que através de um ato criativo, da originalidade, de uma linguagem diferente, e nova, tudo isso ou o que for relevante disso, ou o que valer a pena, o que valer a escrita, o ato de escrever com a pena, seja plasmado e transmitido.
No livro, em vários poemas fala de Deus. Que relação tem com Deus, parece pouco pacífica?
Eu não diria que seja uma relação pouco pacífica. Eu gosto muito de utilizar o verso do Robert Lowell, um poeta americano em que ele diz: "Deus não existe e a sua mãe é Maria". Ele coloca-se ali num meio termo entre o Deus abstrato, o Deus ideia que para ele à altura não existia, mas, por outro lado, todo aquele ritual da formação judaico-cristã, que para ele é, de alguma maneira, uma coisa tangível e que efetivamente existe.
A maneira que eu encontrei de falar de Deus e procurar a minha relação com o que é divino, e até, de uma forma mais ampla, com aquilo que é místico, foi precisamente trazer permanentemente para a minha poesia elementos dessa formação judaico-cristã, da mesma maneira que os poetas gregos traziam a mitologia grega.
Parece uma coisa perfeitamente contextualizada. E testar ao limite, e jogar com a ideia, em cada poema daquele apontamento do Antigo Testamento, ou do Novo Testamento, que em cada poema não me apraz abordar. Essa é uma forma de estar próximo dessa relação, porque, evidentemente, se eu não quisesse falar sobre o Divino ou sobre Deus, não o convocava para os poemas.
Faz todo o sentido para mim manter essa questão em aberto, ainda para mais num livro que fala sobre a passagem do tempo, e que perspetiva o que acontecerá quando esse tempo chegar ao fim. Faz todo sentido para mim ter sempre esse assunto em aberto e ir tentando resolver essa questão que se tornou mais distante após a morte do meu pai, mas da qual eu não me afastei completamente. De livro para o livro reflito, ainda que seja com humor e com ironia, sobre Deus.
Dividiu o livro em vários capítulos, o último chama-se "Carpe Diem". Diz que o livro fala da passagem do tempo, quer isso dizer que no final devemos aproveitar a vida, a cada dia?
O conceito do livro "Aberto Todos os Dias", é um livro em que eu quis celebrar o mundo que nos é devolvido após a pandemia e, em particular, após o confinamento, e iluminar um pouco as coisas que estão para nos acontecer. Não tanto aquelas que nos aconteceram, mas aquelas que nos estão a acontecer e que estão para acontecer. Falo concretamente de coisas pequenas, coisas mínimas.
Por exemplo?
A visão de uma garça no rio ou uma viagem de carro para norte, um jantar de amigos a escrita de um poema que irá acontecer nalgum sítio do mundo por algum poeta, nalgum idioma. Mas também paralelamente com isto, as sombras, a doença, a guerra e, fundamentalmente, o tempo, que não desiste de ir somando dias à sua idade.
Uma vez que se trata de um livro de recomeços, em que a vida de alguma maneira renasce para cada um de nós que esteve confinado durante aqueles dois anos, ocorreu-me que poderia estruturar os poemas que tinha escrito em 2020 e 2022, segundo aquilo que foram, e que são, as quatro aspirações ou ideais do homem do Renascimento. Um período de fértil, em que o homem esteve no centro da arte, no centro das ciências, no centro da literatura.
Como sabe, a forma como estruturo cada livro, depois de ter os poemas escritos é muito importante para mim e aqui, mais uma vez, utilizo uma estrutura dramatúrgica de tese, antítese e síntese, em que a tese é constituída pelo locus amoenus e pelo beatus ille, dois desses ideais do homem do Renascimento, a antítese que é constituída pelo tempus fugit e no carpe diem faz a síntese.
"Quero eu, com este livro, que renasça um novo otimismo sobre aquilo que foi a tristeza, o confinamento e a morte"
O que é que quis colocar em cada um desses temas?
No locus amoenus surgem referências a um lugar aprazível que se nos depara à nossa frente, a seguir ao confinamento, calmo, que está presente na literatura desde Homero a Teócrito, a Vergílio e até à própria Luísa Gluck, recentemente. Representa um espaço de segurança, de felicidade, um paraíso que classicamente é representado por um lugar onde havia aves, cursos de água, árvores, etc. onde o tempo parava, e não se falava de mortalidade.
Era até um lugar de alguma pulsão ou paixão erótica. E esse conceito clássico evoluiu de tal maneira que, por exemplo, na modernidade, para um poeta, um locus amoenus pode ser uma coisa tão simples quanto a mesa de um café onde ele se senta a ler e a escrever, e entre ócio e o ofício. Há nesta primeira parte do livro poemas, todos eles, se quisermos, que correspondem a este modelo e padrão.
Depois, a segunda parte da tese é o beatus ille, que vem da expressão de Horácio: "ditoso aquele que desfruta da vida simples e tranquila", em que há claramente uma fuga dos excessos da corte, ou seja, há um predomínio da riqueza de espírito sobre a riqueza material. E é utilizado no Renascimento, numa altura a seguir à Idade Média, onde tinha havido as pestes e, portanto, há aqui, um paralelo com esta situação da pandemia, em que houve realmente, se quisermos estabelecer a analogia a uma doença infeciosa que atingiu a população e que a seguir, descoberta a vacina, renasce, ou quero eu, com este livro que renasça um novo otimismo sobre aquilo que foi a tristeza, o confinamento e a morte e temos aqui uma segunda parte do livro, onde abundam poemas sobre este tópico, o campo, onde a referência à poesia holandesa está muito presente.
Feito este introito com estes dois temas na tese, surge a antítese que é: "Isso é tudo muito bem, mas o tempo foge". Tempus fugit. E aí a expressão já vem de Vergílio, o tempo voa. O que é que estes poemas desta terceira parte nos recordam? Recordam-nos a fugacidade da vida, quão rápido a morte nos leva os nossos amigos, as pessoas que mais amamos e estabelece a velocidade do tempo como uma ordenada impiedosa na curva da nossa vida, porque o tempo efetivamente não para.
Entre a tese e antítese dada por estes três primeiros capítulos, surge um quarto capítulo que faz a síntese do livro, que é o carpe diem. É uma expressão popularizada por Horácio nas Odes. Lembra-nos como devemos aproveitar cada dia e não despender tempo com aquilo que não nos aproveita e se quisermos, viver cada dia como se fosse o último.
Parece ter tudo muito estruturado. Pensou em tudo isso antes de escrever o livro?
Honestamente, não é algo que eu pense quando começo a escrever os poemas. Conhece o meu método de escrita. Eu estou cerca de um ano e meio a escrever, a tentar transformar em universalidade aquilo que foi a minha experiência particular na minha vida quotidiana e há um momento em que começo a estruturar o livro olhando para os poemas que tenho e lendo aquilo que é o ar do tempo.
Surge assim a uma ideia de estruturar o livro e, desta vez, achei interessante que a seguir a um confinamento, à doença e à morte, um pouco por analogia com o que aconteceu noutros tempos históricos, o homem surgisse com o seu otimismo, agarrando o mundo e lendo o mundo que está aberto lá fora, como o livro está "Aberto Todos os Dias", o mundo está aberto todos os dias, à espera de ser habitado.