Entrevista Renascença

Escritor ucraniano escreve sobre os que ficaram em casa, "os esquecidos" da guerra

07 out, 2022 - 19:38 • Maria João Costa

O livro “Abelhas Cinzentas” do escritor ucraniano Andrei Kurkov agora lançado em português dá voz aos “seres humanos que decidiram ficar em casa, que foram abandonados e esquecidos” pela guerra. O escritor sente um dever em falar da Ucrânia. Acusa Putin de propaganda, não respeitar as leis internacionais e teme um ataque nuclear

A+ / A-

Nasceu em São Petersburgo na Rússia, mas vive em Kiev. Escreve em russo, mas assume-se como um autor ucraniano. Andrei Kurkov acaba de lançar em Portugal a obra “Abelhas Cinzentas” (ed. Porto Editora), um livro passado no Donbass e que conta a vida dos “abandonados”, de quem não fugiu à guerra na Ucrânia e vive sem eletricidade, gás ou alimentos. A história retrata um apicultor que, no meio da guerra, procura a paz para criar as suas abelhas. Conta-nos que “muitas vezes as pessoas escolhem o medo de ficar em casa. O desconhecido parece-lhes mais perigoso”.

Desde o início da ofensiva russa, o escritor vive pelo mundo a falar sobre a Ucrânia e a angariar ajuda para os refugiados. Sente que é seu “dever” falar da guerra. Sobre um eventual ataque nuclear lançado por Moscovo admite que é uma possibilidade real, Kurkov considera, no entanto, “inimaginável o uso de armas nucleares no século XXI”.

Em entrevista à Renascença, o autor lembra que os soldados russos não estão motivos e que os referendos que considera “falsos” poderão ser reversíveis. Já sobre Vladimir Putin acusa o presidente russo de não respeitar a lei internacional.

Escreve em "Abelhas Cinzentas" a frase: “Se fugirmos ao ritmo da vida, pode levar dias, ou até semanas, para voltarmos à rotina do costume”. Como está a ser a sua rotina desde que a guerra começou em fevereiro?

A minha rotina mais parece um "Road Movie". Tenho viajado muito na Europa, mas também pelos Estados Unidos a falar sobre a Ucrânia e a guerra, desde o início de março. Primeiro tivemos de fugir de Kiev. No segundo dia da guerra, eu e a minha mulher viajamos para uma aldeia a 90 quilómetros e depois fomos para Lviv, na zona oeste da Ucrânia onde estavam os nossos filhos com os seus amigos. Depois seguimos para as montanhas, na fronteira com a Eslováquia e a Hungria.

Acabamos por ficar por ficar ali. Uma senhora que não conhecíamos deu-nos a chave do seu apartamento e ela mudou-se para a casa da filha. Nós ficamos naquele apartamento durante 5 meses. E eu ia viajando de forma regular, atravessava a fronteira para o aeroporto mais próximo na Eslováquia, ou na Roménia, e viajava, primeiro para angariar dinheiro para os refugiados ucranianos, e depois só para falar sobre a Ucrânia. Desde então, continuo na estrada (risos).

Conta em “Abelhas Cinzentas” a história de Sergeyich, ele vive numa das zonas cinzentas, entre a Ucrânia e Donetsk. O que são essas zonas cinzentas?

As zonas cinzentas são campos minados. São zonas onde as pessoas não sabem se vão sobreviver. Mas há pessoas que decidem ficar nas suas aldeias, apesar da guerra ir ao seu encontro. Claro que muitas vezes, são pessoas que estão preparadas para morrer, mas esperam sobreviver. As zonas cinzentas têm sempre o mesmo comprimento do que a linha da frente.

Na Ucrânia, antes de 24 de fevereiro, a linha da frente tinha 430 quilómetros de comprimento, e as zonas cinzentas tinham a mesma dimensão, mas em alguns casos tinham 30 metros de largura, outras vezes tinham alguns quilómetros. Havia várias aldeias que ficaram no meio, sem eletricidade, gás, lojas, correio, polícia, farmácia ou qualquer ajuda. As pessoas tentavam sobreviver. Claro que havia aldeias que estavam completamente abandonadas. E havia outras mais habitadas. Às vezes, os voluntários levavam ajuda, alimentos e medicamentos. A questão é que por vezes, havia disparos de artilharia acidentais que destruíam casas e matavam pessoas.

Quis dar voz a essas pessoas?

Eu decidi escrever este romance porque em 2017 já tínhamos 200 livros sobre a guerra no Donbass, mas todos os livros eram sobre o conflito, sobre soldados e inimigos. Ninguém escrevia sobre os seres humanos que decidiram ficar em casa, que foram abandonados e esquecidos. Por isso decidi dar-lhes voz.

Sergeyich é apicultor e durante a guerra ele sente uma responsabilidade com as suas abelhas, é o que o mantém ligado à vida. As abelhas são uma metáfora da vida no meio da guerra?

No romance há apenas dois habitantes que ficam na aldeia, o Sergeyich e o Pashka. O Pashka é o seu inimigo desde infância. Eles nunca falaram antes da guerra, mas agora só sobram eles, por isso têm de lidar um com outro. Sergeyich é um apicultor, está reformado, era mineiro e resolveu começar a criar abelhas na reforma. Ele tinha uma mulher e uma filha que o deixaram. As abelhas tornam-se a sua família. Ele é um homem pós-soviético, não é formado, mas percebe o que é bom e mau, tem alguns princípios morais cristãos, é uma pessoa normal, como a maioria dos habitantes de Donbass.

Até que a guerra começa…

Quando a guerra começa, ele não percebe a razão. Por isso nesta guerra, ele defende as suas abelhas. Ele quer manter a salvo as suas colmeias, com seis famílias de abelhas.

As abelhas são importantes para ele, também porque ele é um bocado nostálgico sobre a vida soviética e pensa que as abelhas são as únicas criaturas vivas que conseguiram criar uma sociedade comunista. Elas vivem juntas, trabalham juntam e produzem mel. O mel é lhes retirado, sem que sejam pagas, mas não se queixam. Continuam a trabalhar, tal como os mineiros no Donbass, ou os trabalhadores que ainda continuam no Donbass. Nesse sentido, as abelhas não são só um símbolo de uma importância ecológica, mas são também um símbolo de harmonia de uma vida em comunidade.

Fui três vezes à zona da guerra no Donbass, desde 2015 (...) as pessoas não reagiam às explosões que aconteciam a cinco quilómetros
Sergeyich tem, como escreve, uma existência “pacifica e inofensiva”. São as abelhas que o fazem sobreviver. Ele acaba por fazer uma viagem porque quer encontrar um ambiente de paz para as abelhas.

Sim, ele depende das abelhas. O mel que elas produzem é a sua moeda. Ele paga tudo com mel. Decide por isso, organizar uma espécie de férias para as suas abelhas, longe da linha da frente, das explosões. Então ele leva o seu carro velho, com um atrelado para as colmeias e tem de atravessar os vários postos de controle dos separatistas. Em todo o lado, ele paga tudo com mel, por isso, para ele as abelhas são a sua vida.

Descreve a certa altura no livro a “apatia”, fala de como a guerra se torna "norma". Aconteceu no Donbass, mas continua a acontecer agora?

É uma coisa muito estranha, nunca pensei sobre isso até a guerra começar. Fui três vezes à zona da guerra no Donbass, desde 2015. Uma vez viajei até à fronteira com a Rússia, em Severodonetsk, e vi como as pessoas que viviam ao lado da gelada linha da frente, não reagiam às explosões que aconteciam a 5 quilómetros. Se a explosão parecesse mais próximo, eles preocupavam-se, caso contrário não. Nem percebiam que tipo de explosão era, se era um tanque, um canhão, ou outra coisa. Eu fiquei surpreendido, porque ficavam tranquilos. Parecia que fazia parte da realidade, as pessoas adaptam-se às circunstâncias. Se não se consegue adaptar, foge, torna-se um refugiado. Os que ficam, apenas aceitam.

Quais os riscos dessa aceitação da guerra, dessa normalização do conflito?

O risco é que a mortalidade é muito elevada nestas zonas. Por exemplo, há pessoas que continuam a ir apanhar cogumelos nas zonas de guerra, ou pescar no rio. Há muitas minas e muitas pessoas são mortas. Penso que é muito perigoso pensar que é normal viver ao lado da guerra.

Há um soldado que visita Sergeyich que acaba por o ajudar. Conta no livro pequenas histórias de sobrevivência. O que quer transmitir com essas histórias humanas?

É isso, uma história humana. Não é uma história sobre a guerra. Mostra a vida no Donbass e, diria, a atitude típica, a compreensão do mundo, que as pessoas do Donbass fazem.

A Ucrânia é um país muito grande, com 26 regiões, e algumas delas são como países diferentes. Por exemplo, as pessoas no Donbass eram ignoradas por Kiev, porque estavam sobre o controlo dos oligarcas e da sua liderança política. Este controle era muito duro. Para mim, a vida ali, antes da guerra, era como a vida nas prisões ou no exército, com regras muito rígidas. Estas pessoas, não viajavam muito, não sabiam sobre a vida no Oeste. Acreditavam na TV russa, porque só viam a televisão russa e obtinham notícias sobre a Ucrânia de fontes russas e não de Kiev. É por isso que não confiavam em Kiev e achavam que a Rússia era melhor.

Ouviu histórias assim no Donbass?

Lembro-me de conversar com um habitante do Donbass antes da guerra, perguntei-lhe se ele alguma vez tinha viajado para fora. Ele respondeu que não, “nunca fui, mas às vezes vou a Moscovo, mas nunca fui para o estrangeiro”, disse. Isto mostra que na cabeça de muita gente no Donbass, a fronteira entre a Ucrânia e a Rússia não existia no Leste.

O que aconteceu no Donbass e na Crimeia foram um pronuncio do que está a acontecer hoje à Ucrânia?

Sim, aquilo que temos agora é a continuação da guerra que começou em 2014.

Referendos falsos não significam nada! A Rússia não quer saber das leis internacionais
E nessa altura conseguiu prever uma guerra desta dimensão?

Não. Mas antes de fevereiro, eu vi que a escalada no Donbass era inevitável, porque o Putin não estava contente com o facto da Crimeia continuar a ser uma zona não reconhecida como território russo. Aquilo significava que não havia investimentos, e havia sanções contra Crimeia e a Rússia. Ele queria ocupar a Ucrânia para mudar o governo e forçar um novo governo ucraniano que aceitasse a anexação da Crimeia. Achava que então, a Europa iria deixar cair as sanções. Isso não aconteceu. Durante a guerra, os ucranianos tornaram-se mais pró-europeus e mais antitotalitários. Isto não lhe podia passar despercebido. Ele já odiava a Ucrânia antes.

Putin tem evocado muitas vezes Pedro, o Grande, o czar russo. Eu não percebia porque é que ele gostava tanto dele. Pedro, o Grande tentou abrir a Rússia à Europa, não tentou fechá-la, como ele. Mas de facto, Pedro, o Grande foi o czar que ganhou a batalha de Poltava em 1709 entre tropas russas e ucranianas. O exército suíço ajudou os ucranianos e Pedro, o Grande ganhou a batalha, por isso a Rússia ganhou. Foi o momento em que a Ucrânia perdeu a sua independência.

Como vê a anexação das zonas de Donetsk, Lugansk, Kherson e Zaporijia, pela Rússia?

Referendos falsos não significam nada! A Rússia não quer saber das leis internacionais. Tudo o que acontecer agora na Crimeia é ilegal. Qualquer documento assinado na Crimeia é ilegal, porque não é um território reconhecido. Em Zaporija e Kherson e nessas regiões, os russos organizaram referendos, mas são falsos porque mais de metade da população fugiu. Eu tenho amigos nos territórios ocupados, e muita gente em Melitopol, quando os soldados russos com as pessoas que iam fazer o referendo batiam às portas, eles não abriam! Eles não participaram nestes referendos e a Rússia diz que 70 por cento das pessoas eram a favor da anexação destes territórios pela Rússia. É tudo uma mentira, e propaganda. Não posso levar isso a sério.

Acha que há volta a dar à situação? Os territórios podem regressar à Ucrânia?

Sim! Acho que há volta a dar. O exército ucraniano tem sido muito mais forte do que as pessoas pensaram. Os soldados russos não estão motivados, sabem que estão a combater em território estrangeiro, estão a matar civis e militares ucranianos. No início eles estavam a combater por dinheiro, agora quando são mobilizados e forçados a combater, não o querem e tentam render-se e desertar do exército. A Rússia tem mais munições, tanques, aviões, etc., mas sem motivação dos soldados e dos oficiais eles não podem vencer. Penso que se continuarmos a ter o apoio dos países ocidentais e dos Estados Unidos, a Ucrânia vai conseguir libertar os seus territórios.

Armas nucleares? Para mim continua a ser inimaginável o uso de armas nucleares no século XXI
No livro, é transversal o sentimento de medo. Sente esse medo?

Eu diria que temos uma competição de diferentes medos. Há pessoas no Donbass que têm de escolher entre dois medos. O medo de ficar em casa e ser morto em casa, por acidente, e o medo de deixar a casa, ser evacuado sem saber se serão ajudados ou não, se vão encontrar um lugar para ficar, quem os ajudará com dinheiro, etc. Muitas vezes as pessoas escolhem o medo de ficar em casa. O desconhecido parece-lhes mais perigoso.

Como vê o uso de armas nucleares por parte da Rússia? Pode mesmo acontecer?

Pode acontecer. Há 15 a 20 por cento de probabilidade de acontecer. Se não houver uma resposta do ocidente, acontecerá de novo numa escala mais alargada.

Pode mudar o rumo do conflito?

Não sei. Provavelmente sim, mas para mim continua a ser inimaginável o uso de armas nucleares no século XXI

Como perspetiva o futuro da Ucrânia?

A Ucrânia é um país muito tolerante, muito vivo e dinâmico. Temos uma sociedade civil muito grande. As pessoas que estão descontentes com as decisões políticas vão para as ruas imediatamente. Os ucranianos nunca vão aceitar um regime autoritário ou um líder autoritário. Haverá sempre anarquia e democracia. Nunca haverá estabilidade, porque nunca houve estabilidade na Ucrânia.

A Ucrânia vai reconstruir-se a si mesma. Será uma sociedade viva, como sempre, porque todos têm a sua própria opinião. É um país de individualistas, temos mais de 400 partidos políticos registados no ministério da Justiça. Todos os ucranianos que querem entrar na política, começam o seu próprio partido. É assim que os ucranianos vivem e são felizes. Acho que a Ucrânia vai sobreviver, vai reconstruir-se, mas em termos políticos será sempre como uma “sopa a ferver”!

Como lida com o facto de ter nascido em São Petersburgo, na Rússia, o país que está a atacar o país onde vive, a Ucrânia?

Muitos ucranianos têm família na Rússia, muitos russos têm familiares na Ucrânia. Há milhões de ucranianos que vivem na Rússia e que apoiam o Putin e tornaram-se leais a Moscovo. Eu sou um dos 7 ou 8 milhões de etnia russa que vive na Ucrânia. Eu falo ucraniano sem sotaque, escrevo maioritariamente em russo, mas tenho uma identidade ucraniana, também sou individualista! Não sou uma pessoa de coletivo, como os russos. Eu encaixo na sociedade. Temos muitos intelectuais que escrevem em ucraniano e que dizem que os que escrevem em russo não são escritores ucranianos, mas não me ralo com isso. Eles não se preocupam comigo e eu não me preocupo com eles. Podemos coexistir.

Devo ajudar a manter a Ucrânia, o nome do país, no ar, na mente das pessoas. É muito fácil esquecer o que se passa a milhares de quilómetros de nós
Escreveu este "Abelhas Cinzentas" em russo?

Sim, em russo. Eu só escrevo romances em russo. A não ficção escrevo em russo, ucraniano e inglês.

Sente que é uma missão escrever sobre a Ucrânia e sobre a guerra?

Sim, mas não estou sozinho! Somos vários escritores ucranianos conhecidos que estamos a escrever agora só sobre a guerra, e não ficção. Estamos a participar em diversas conferências e eventos. Falamos sobre a Ucrânia. É o meu dever até a guerra acabar. Devo ajudar a manter a Ucrânia, o nome do país, no ar, na mente das pessoas. É muito fácil esquecer o que se passa a milhares de quilómetros de nós.

O seu combate é na escrita, e não nas trincheiras?

Eu estou reformado devido à minha idade. Eu tenho 61 anos. De facto, na Ucrânia não temos mobilização. Temos 400 mil voluntários que se juntaram ao exército e depois temos os militares de carreira. Os jovens de 18, 19 anos não são obrigados a ir para o exército. Eles não podem sair do país. Eu, porque tenho 61 anos, posso sair do país e voltar, mas os mais novos não podem deixar o país sem uma autorização especial. Têm de ficar em casa, mas não são obrigados a juntar-se ao exército. Talvez no futuro possam ser convocados, mas neste momento não são.

Comentários
Tem 1500 caracteres disponíveis
Todos os campos são de preenchimento obrigatório.

Termos e Condições Todos os comentários são mediados, pelo que a sua publicação pode demorar algum tempo. Os comentários enviados devem cumprir os critérios de publicação estabelecidos pela direcção de Informação da Renascença: não violar os princípios fundamentais dos Direitos do Homem; não ofender o bom nome de terceiros; não conter acusações sobre a vida privada de terceiros; não conter linguagem imprópria. Os comentários que desrespeitarem estes pontos não serão publicados.

Destaques V+