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Entrevista Renascença

O colapso da Segurança Social e os refugiados são temas do romance de Carlos Tê

23 set, 2022 - 20:23 • Maria João Costa

“Arquibaldo” marca o regresso do letrista Carlos Tê à arte do romance, depois de “O Voo Melancólico do Melro”. A história é inspirada na vida da escritora Ilse Losa que fugiu ao nazismo e se refugiou em Portugal. Carlos Tê escreve sobre as suas inquietações sobre o futuro do Estado social europeu.

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Continua a escrever canções, sempre que tem uma boa ideia, mas o responsável por sucessos como Chico Fininho, reconhece que a palavra está em declínio e que hoje é mais difícil gravar. Carlos Tê dedicou-se agora à maratona de fundo. Acaba de lançar um novo romance. “Arquibaldo” (ed. Porto Editora) é uma obra inspirada na vida da escritora Ilse Losa que fugiu ao nazismo e acabou por viver em Portugal.

Em entrevista à Renascença, Carlos Tê confessa que levou para as páginas do livro as suas preocupações sobre os que vivem nas margens, sejam eles refugiados ou sem-abrigo. Nas palavras do autor que recorda os momentos de “miséria” vividos antes do 25 de abril de 1974, o Estado social pode estar em colapso, mas foi uma das maiores conquistas da Europa que deve ser preservada.

Portista ferrenho, Carlos Tê fala também da sua paixão clubística, recorda os tempos em que jogava à bola na rua e diz que o clube dos Dragões há de continuar, mesmo sem Pinto da Costa à frente e lembra a sua máxima: “Desconfio muito mais das vitórias, do que das derrotas”.

Como é que nasceu a vontade de escrever “Arquibaldo”?

Tinha uma história que era tentar pôr-me na pele de uma refugiada judia no início dos anos 40. Isto começou quando conheci a escritora, que chegou a Portugal em 1934, que foi a Ilse Losa. A família antecipou a perseguição aos judeus na ascensão do nazismo. Começaram a perceber que aquilo iria piorar muito, e ela veio para Portugal onde tinha um irmão. Não foi uma refugiada clássica, como a personagem do meu livro.

Conheceu a Ilse Losa?

O facto de a ter conhecida nos anos 1990, pôs-me perante uma história de fuga, de nomadismo. Foi isso que me fez mais tarde tentar pôr-me na pele de alguém que vem para cá, mora aqui numa situação difícil de fuga e perseguição, já com a guerra a acontecer. Ela vem de Praga para Amesterdão, e depois desce pela Bélgica e França e acaba em Portugal. Esta personagem é das poucas que ficaram em Portugal em locais como a Figueira da Foz, a Curia ou a Ericeira, onde se formaram colónias de judeus enquanto não arranjavam vistos para ir para os Estados Unidos ou América do Sul.

A sua personagem principal do romance, o Francisco Frade, encarna uma espécie de filho de Ilse Losa?

Ela decide ficar, casa cá, e tem um filho. Digamos que este filho é o núcleo à volta do qual o livro circula. É a sua tentativa de perceber quem era esta mãe e o que era ser judeu. A mãe dele tinha uma história de silêncios, o que acontece muitas vezes com este tipo de refugiados, pessoas que perderam muita coisa, como a casa, os pais. Havia ali uma relação de vários silêncios que ele tenta perceber. O livro é sobre isso.

No livro Francisco Frade tem este alter ego, o Arquibaldo, o cavaleiro da Casa do Bem. O leitor é convidado a sentar-se com ele no divã do psicólogo?

Ele ao procurar o passado, está a questionar o próprio país, a sua relação com o passado, a expulsão de judeus, este acolhimento de judeus na II Guerra Mundial vindos de uma Europa central muito mais culta, mas que era muito mal vista pelo regime de Salazar que tinha medo de que eles, com o seu cosmopolitismo trouxessem uma espécie de transgressão para Portugal e viessem agitar a nossa paz podre. Ele tenta perceber isso, o que estava para trás, porque da mãe, enquanto ela foi viva, ele ouviu muito pouco. Ela não gostava de falar do passado.

O Francisco lida com a realidade das margens, dos sem abrigo, dos refugiados. Porque quis abordar o tema no livro? São casos que vê demasiado no Porto?

No livro ele tem algumas reflexões sobre a assistência social, o Estado social. A Europa construída nos últimos 50/60 anos, é uma das maiores criações da Humanidade. Esta construção social da Europa é um dos grandes "highlights" da civilização. Ele está no terreno como uma espécie de força avançada dessa civilização que hoje sabemos que está posta em causa.

Há cada vez menos dinheiro para o Estado social tratar das margens. Ele também reflete sobre isso, e pela primeira vez na Europa, nós começamos a ter alguma perceção se isto vai ou não continuar, se a Europa tem capacidade de se aguentar nos seus calcanhares ou se vamos cair outra vez e vender-nos a uma realidade mais ou menos neoliberal, darwinista como a que há nos Estados Unidos ou Brasil, ou se vamos ficar firmes em relação aos grandes valores europeus. Ele também reflete sobre isso.

São as suas inquietações?

Penso que são as minhas, e deveriam ser as de quase todos os cidadãos portugueses e europeus! Eu enquanto português tenho uma memória muito clara do sítio de onde nós vimos. Tenho memória de como a miséria se abateu muito sobre Portugal até ao 25 de abril e como nós lutamos arduamente, com o auxílio da Europa, para chegarmos onde estamos , até este expoente da nossa vida coletiva portuguesa depois do 25 de abril.

Há cada vez menos dinheiro para o Estado social tratar das margens
Mas o Estado Social, como o conhecemos, pode estar à beira do colapso?

Nós não sabemos o risco. Isto é uma luta para preservamos o que temos. Não só pelas circunstâncias do que estamos a viver agora, a iminência de uma guerra, mas mesmo antes isto já estava posto em causa, com as consecutivas crises de capitalismo desenfreado e global, com o Estado a ser rechaçado cada vez mais em função das grandes corporações que parecem ter tomado a maior parte dos Estados como reféns. Faz-nos pensar muitas vezes para onde isto vai. Confesso que partilho com esta personagem algumas das dores e das suas dúvidas.

Que tipo de dúvidas?

Uma das coisas que ele aprende com a mãe, até em relação à sua raiz judaica, é fazer as perguntas inconvenientes. É uma questão que atravessa a cultura ocidental e que de algum modo é devedora de algum pensamento judaico mais fraturante.

Há uma espécie de modo de pensar no judaísmo que contaminou muito a Europa, e o mundo. Ele vai tentar aprender e perceber, porque vai perguntar a pessoas que falam do judaísmo, porque é que eles estão sempre em fuga, porque há sempre uma certa inveja que caia em cima dos judeus? É uma série de perguntas que ele tenta perceber ao longo desta sua caminhada.

Já se dedicou à escrita de um livreto para ópera no passado, tem muitas canções assinadas por si. Ainda escreve canções? É a pedido?

A canção para mim é um formato impagável. Eu sou um filho das canções. A música popular está em mim desde muito cedo. O que eu percebo, com alguma mágoa, é que esse formato está muito refém de uma indústria que levou a própria música a uma questão imaterial. Ela tornou-se numa espécie de fluxo de streaming ao tirá-la da sua vertente mais cultural que era a minha. Era ter discos, vinis, CDS, das pessoas pagarem para ter música.

Ao ponto que chegamos hoje com o Spotify, com todas as coisas boas que isso tem, tem também um lado torrencial que quase tira relevância à própria música. Eu acho que chegámos a um ponto em que o fluxo de música está por toda a parte - nos parques de estacionamento, nos elevadores, nos dentistas - não há nenhum sítio onde a música não apareça. No meu caso passei a dar mais valor ao silêncio. Acho que não há música sem silêncio, e a música também perde muito com isso.

Mas continua a escrever letras?

Continuo a escrever canções, sempre que tenho uma boa ideia, mas isso não significa, depois, que elas sejam gravadas. O próprio processo de gravação hoje é muito complicado. Tem de se perceber se vale a pena gravar, ou se não vale! Mas isto, não significa que o formato em si não continue a ser bom e revelador de uma maneira de olhar para as coisas e cantá-las. Agora o modo como as canções podem, ou não, chegar ao mercado é que mudou radicalmente.

Há muitos novos cantores portugueses. Como vê as histórias que cantam?

Eu acho que essas canções são o reflexo do próprio tempo. Sempre achei que a música popular é uma tradução quase fiel do seu próprio tempo. Se o tempo tem coisas importantes para dizer, as canções vão acabar por encontrar uma maneira de o dizer.

Nós hoje vivemos um tempo bastante fraco, no sentido de todas as fontes de informação. Tudo está constantemente a jorrar para a nossa vida, a lutar constantemente pela nossa atenção, e, aquilo que está a acontecer na própria música, com o aparecimento de novos cantores de vários estilos, reflete um bocado isso. Não me surpreende muito que assim seja.

Acho também que há público especiais para isso, nichos cada vez maiores, e às vezes ouço falar de artistas que enchem pavilhões que eu, pura e simplesmente não conhecia! São artistas de redes sociais e, no entanto, são capazes de o MEO Arena com 20 mil pessoas e eu nunca tinha ouvido falar deles! Tem um lado que considero bastante positivo, mas por outro lado, afasta-nos um pouco das velhas matrizes da canção, da palavra, sobretudo, da palavra.

Continuo a escrever canções (...) mas isso não significa, depois, que elas sejam gravadas
Há uma desvalorização da palavra nas canções?

Concordo, que talvez estejamos perante um declínio da palavra nos últimos anos. Há uma sobrevalorização do ritmo que é trazido, obviamente, por questões tecnológicas. Há uma facilidade em fazer beats, ou se abusa de coisas que eu abomino como o autotune, ou seja, a palavra torna-se um bocadinho secundária e para mim isso é muito complicado, porque sou de facto a pessoa da palavra.

Eu sou a pessoa que ouvia o Leonardo Cohen, o Dylan, o Chico Buarque. São os grandes cultores da palavra. Percebo perfeitamente que hoje as coisas sejam muito diferentes. A palavra, lamento dizê-lo, é uma coisa que está em declínio.

O Porto tem sofrido com enchente de turismo, a “turistificação”. Isso tem descaraterizado a essência da cidade?

Talvez, embora eu tenha algumas dúvidas, porque eu sinto-me feliz com a chegada de gente. Tenho uma grande alegria. Depois de ter vivido tantos anos numa espécie de ostracismo, lembro de na minha adolescência, o Porto era uma cidade muito fechada. Não chegava ninguém. As pessoas só saíam, só emigravam. E eu próprio vivia com uma ideia muito fantasiosa do estrangeiro, da fuga de ir para outro lado qualquer e fugir desta pasmaceira.

Sinto uma grande alegria por haver pessoas que se interessam por este país, por estas cidades e que vêm descobrir as coisas boas de Portugal. O ideal seria encontrar um ponto qualquer de equilíbrio entre esta gentrificação, este excesso de turismo, esta aparente praga do turismo e tentar encontrar esse equilíbrio. Sei que é difícil, mas também não sou nada a favor do chamado pavor do turista. Eu também quando vou para fora, gosto de ser bem recebido e não gosto de ser recebido com duas pedras na mão.

Sempre gostou de viajar?

Sempre me foi franqueado o mundo, os lugares por onde andei na Europa, América do Sul, etc. Nunca senti de facto hostilidade, e sempre achei que era um direito das pessoas poderem circular. Agora, de facto, esse é um dilema. É um dilema que considero, apesar de tudo, um bom dilema, porque nós estaríamos todos muito mais tristes, não só pela questão económica, se não tivéssemos turistas. Não havia gente a querer saber de nós.

Jogava muito à bola quando era miúdo, é daí que vem a sua paixão pelo futebol?

Ah, a questão é, antes de tudo, não era o verbo, era a bola (risos). Na minha infância não havia rigorosamente nada, a não ser uma bola a saltitar no chão depois da escola. Devo muito da minha alegria na infância ao futebol, e mesmo do meu crescimento, do meu equilíbrio psicomotor, de tudo aquilo que a escola não dava, a educação física, essas coisas. A bola dava! Dava na rua, nos três contra três, nos miúdos que se encontravam, jogavam ao futebol, etc, etc.

Portanto, eu devo muito à bola, e ao futebol por inerência, antes de ter chegado tudo o resto, a música, a literatura, a poesia, o cinema, tudo aquilo a que eu me agarrei depois. Mas o futebol sempre esteve primeiro, porque era a única coisa que havia.

Desconfio muito mais das vitórias, do que das derrotas
É um portista ferrenho, consegue imaginar o Porto sem Pinto da Costa? Quem o poderá suceder?

Ah, claro que sim! Tudo passa. É uma lei básica que nos espera a todos. O Futebol Clube do Porto há de continuar com outras pessoas. É assim que as coisas funcionam. Não sou muito saudosista em relação a isso.

Mas a vida do Futebol Clube do Porto tem sido marcada por episódios menos felizes.

Sabe que o Futebol Clube do Porto, tal como a minha vida, subiu a alturas que eu nunca imaginei! Mesmo que possa ter momentos baixos, penso que os altos já foram tão altos que irá aguentar perfeitamente o que possa acontecer, o que não é líquido que aconteça, mas na impossibilidade de ganhar sempre, como é óbvio, temos que estar preparados, e eu, pelo menos que conheço durante muitos anos os amargos de perder sempre (risos) e estar sempre afastado do que é ganhar bem, eu tinha 19 anos quando o Porto ganhou o último campeonato, depois de uma seca de quase 20, portanto, estou preparado para tudo o que vier.

As novas gerações é que vão sofrer mais, porque essas não sabem outra coisa a não ser a vitória. Mas há o outro lado. Não é o facto de perder um, dois, três jogos ou quatro que se lança uma equipa para uma equipa de futebol em crise, sobretudo depois de uma vitória grande no campeonato e conquista da Taça. Eu tenho uma norma muito grande na vida.

Eu desconfio muito mais das vitórias, do que das derrotas. As vitórias para mim são sempre suspeitas, porque o que vem a seguir há de ser sempre mais perigoso do que as derrotas. As derrotas obrigam-nos a manter sempre a vontade de mudar o curso das coisas. As vitórias amolecem, como o sucesso.

Sempre achei que o pior que podia acontecer era fazer um disco, vender muito e depois a seguir era uma chatice! Por um lado, quer-se, e, por outro lado, teme-se! Há que reagir sempre com alguma cautela em relação à vitória e à derrota.

Tem sempre essa posição cautelosa ou já avançou para novo livro?

Tenho sempre essa posição cautelosa, até porque demorei quase dez anos ou mais de dez anos a fazê-lo, porque eu nunca sabia exatamente quando é que estava bem ou quando é que não estava. Parava. Depois o livro tinha vida própria, ia para uma zona para a qual eu não estava preparado. Tinha de parar e tentar perceber o que é que podia fazer. Depois desistia, recomeçava.

Digamos que escrever um livro é sempre uma luta quase titânica entre o leitor que trazemos em nós, que é seguramente muito pior e muito mais informado, que escritor temos em nós, que é mais impreparado, porque é muito mais novo. Se houver uma luta honesta, o leitor está sempre a cascar em cima do escritor!

O resultado final é quando se chega ali a um pacto mais ou menos interessante, um acordo qualquer, e mesmo assim, nunca se sabe, é o que é possível.

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