​Folhas diferentes, difíceis de ler, com notas marginais. Fomos ler o manuscrito do padre António Vieira

30 mai, 2022 - 16:30 • Maria João Costa

É o original da “Clavis Prophetarum”, a última obra escrita pelo padre António Vieira. Era dada como desaparecida há mais de 300 anos. Foi encontrada por dois investigadores da Faculdade de Letras, de Lisboa, nos arquivos da Biblioteca da Universidade Gregoriana, em Roma.

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“Tem um enorme valor simbólico”. É desta forma que o académico Arnaldo Espírito Santo descreve a descoberta do manuscrito original da derradeira obra escrita, em vida, pelo padre António Vieira, e que esta segunda-feira foi revelada ao mundo.

O exemplar da “Clavis Prophetarum”, ou “Chave dos Profetas”, foi localizado quase por acaso inicialmente pela investigadora Ana Travassos Valdez, da Faculdade de Letras, da Universidade de Lisboa, nos arquivos da Biblioteca da Universidade Gregoriana, em Roma.

É um manuscrito “muito estranho”, explica em entrevista à Renascença Arnaldo Espírito Santo. O professor emérito da Universidade de Lisboa e diretor do Instituto de Língua e Cultura Portuguesa conta que o documento estava desaparecido desde 1713, apesar de serem conhecidas cópias.

“Passaram-se, entretanto, 325 anos, e um dia, a minha colega Ana Travassos Valdez, passou por Roma e viu um manuscrito muito estranho, com umas folhas desarrumadas, desencontradas, com tamanhos diferentes, coisa muito envelhecida e ficou na dúvida do que seria aquilo”. Perante a dúvida, a investigadora pediu a Arnaldo Espírito Santo que a acompanhasse a Roma.

“Fomos lá os dois, estivemos lá semanas, um bocadinho antes de começar a pandemia de Covid-19, mesmo no limite, e verificamos que se tratava de facto do manuscrito original”, indica o professor emérito, que explica que Vieira se lamentava nas cartas que “o obrigavam a tratar dos sermões, mas que ele tinha uma obra muito mais importante” que era a “Clavis Prophetarum” para completar.

O que é a “Clavis Prophetarum”?

“Clavis Prophetarum, significa Chave dos Profetas”, explica Arnaldo Espírito Santo, que acrescenta que o padre António Vieira se referia aos profetas do Antigo Testamento.

“O Profeta Isaías, que fez profecias sobre o futuro; o profeta Ezequiel, o profeta Zacarias, e sobretudo, o profeta Daniel que fizeram profecias, e, o Apocalipse do Novo Testamento” são alvo da escrita de Vieira.

“Eles fizeram profecias sem saber o que diziam, porque Deus os inspirava, e, eles estavam a falar de futuro”, indica o académico que questiona: “O que faz Vieira? Com esta Clavis faz uma interpretação de todas essas profecias. Por isso se chama a Chave. É a Chave que dá para abrir os sentidos ocultos que estão nessas profecias”.

Escrito em parte em Roma nos últimos anos de vida do missionário Jesuíta, a “Chave dos Profetas” foi iniciada muito antes, quando padre António Vieira tinha “saído do cárcere de Coimbra”, explica o investigador.

Porque Vieira foi ficando cego com a idade, apenas uma parte do original é escrito por si, “outra parte é ditado por ele”, revela Arnaldo Espírito Santo.

A descoberta do original, agora divulgada, vai permitir “resolver algumas dúvidas”.

“Há coisas que estão nas margens. Até que ponto foram ou não inseridas nas cópias que se fizeram? Há folhas que estão coladas sobre outras folhas. O que estaria por baixo? Há um texto, e o texto que está por cima veio substituir o texto que está por baixo? Porquê?”. São muitas as perguntas por responder e que o trabalho de investigação que agora vai ser iniciado vai permitir encontrar respostas.

Embora o original se mantenha na Universidade Gregoriana de Roma, agora a equipa de investigadores portugueses quer “fazer uma edição crítica do original, comparando-o com as várias cópias que existem”.

Arnaldo Espírito Santo, que já antes tinha feito uma edição “Chave dos Profetas”, na Biblioteca Nacional, lembra que o “trabalho pela frente é comparar” e que nas investigações anteriores tinham detetado já “14 cópias”, mas sabia que “existiam mais”.

“Na edição que fiz para a Biblioteca Nacional, com a Margarida Vieira Mendes, fizemos o confronto com 14 cópias, mas não tínhamos o original!”, refere o académico.

Questionado sobre os detalhes deste achado, Arnaldo Espírito Santo conta que em 2019, quando a investigadora Ana Travassos Valdez esteve em Roma para um congresso, “foi ao arquivo da Gregoriana e pediu uma ‘Clavis’ e, como o reitor da Gregoriana que é um português, o padre Nuno da Silva Gonçalves, viu-a, foi ao arquivo e trouxe-lhe os manuscritos” que segundo o investigador eram “esquisitos”.

“As páginas não eram todas do mesmo tamanho, as folhas desencontradas, uma confusão”, o que deixou a investigadora “muito perplexa” e com a suspeitas de que se poderia tratar do original de Vieira.

“Quando chegou, falou comigo, e veio-me perguntar se aquilo não seria o original. Eu disse-lhe que ela não estaria boa cabeça. Ela insistiu muito e fomos os dois a Roma e começamos a ver, a folhear e tirar notas”. Foi aí que se aperceberam que só poderia se tratar do original do missionário jesuíta.

Os investigadores estiveram três semanas seguidas enfiados na Biblioteca Gregoriana em Roma, a passar a pente fino o manuscrito.

Esse trabalho comparativo foi exaustivo, conta Arnaldo Espírito Santo, “desde as 9h00 até ao arquivo fechar”, especifica o investigador.

“Foi feito um estudo técnico. Foi desmontada a encadernação e foi recuperado o manuscrito que precisava de restauro. Estava em risco de se desfazer, muito seco, precisava de restauro. Uma análise de um laboratório com microscópios, análise de tintas e descobre-se que uma das folhas foi colada com farinha de mandioca, no Brasil. Não há mínima dúvidas, há elementos textuais e elementos técnicos de análise de pormenor que se trata mesmo do original do Padre António Vieira”

Não era só Pessoa. O padre António Vieira também tinha uma arca com manuscritos

Há mais de 300 anos que se desconhecia por onde andava o manuscrito desta obra que para Vieira era a sua derradeira e mais estimada empreitada de escrita.

“O padre António Vieira morreu ao princípio do dia 18 de julho de 1697, e, uns dias antes, no dia 13 escreveu uma carta muito pesaroso, a fazer um grande elogio de uma pessoa que trabalhava com ele na conclusão da ‘Clavis Prophetarum’”, relembra Arnaldo Espírito Santo.

Em entrevista à Renascença, o também presidente da Associação para o Desenvolvimento da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa recorda que Vieira “estava cego” quando morreu e que “logo passados três dias, os seus papéis foram metidos numa arca, tal como os papéis do Fernando Pessoa”.

“Os grandes homens têm sempre uma arca de coisas que nunca publicaram”, diz a rir Arnaldo Espírito Santos.

“Essa arca foi fechada com duas fechaduras, uma foi entregue ao reitor que era o provincial da Companhia de Jesus, na Baía, no Brasil, e a outra ao reitor do colégio com a precaução de que não se sabia muito bem o que lá estava, se haveria coisas controversas, perigosas doutrinalmente, como tinha acontecido com coisas que diziam respeito à "História do Futuro", ou à Carta Esperanças de Portugal, que era muito polémica e onde o Padre António Vieira defendia a separação de D. João IV, apoiado um pouco nas Trovas do Bandarra que ele considerava verdadeiras profecias”, conta o investigador.

A arca com os manuscritos do padre jesuíta que tinha sido condenado pela Inquisição, foi aberta em 1698. A intenção foi “fazer uma cópia da Clavis Prophetarum”, aponta Espírito Santo que acrescenta que “essa cópia é o atual manuscrito que se encontra na Biblioteca Casanatence, porque a cópia foi enviada para os dominicanos de Roma, para a Inquisição de Roma, para se fazer uma análise doutrinal da obra”.

“A 26 de julho de 1713, uma carta informa que a caixa foi aberta e enviada para Lisboa para o provincial de Portugal. O manuscrito original da obra foi entregue a um relator da Inquisição, o padre António Carlos Casnedi, um italiano que elaborou sobre o manuscrito um parecer muito pormenorizado, com a intenção de publicar a obra”, conta Arnaldo Espírito Santo.

Segundo o padre italiano, o manuscrito de Vieira era “uma obra maravilhosa, que não tem nada de errado doutrinalmente, mas que está um pouco confusa”. Foi a partir deste original com os “os papéis um bocado baralhados” que foram feitas as cópias conhecidas e estudadas até hoje.

“Depois de 1713, o manuscrito desapareceu”, refere o investigador que recorda que sempre quando é referida a obra é indicado que o seu “manuscrito estava perdido”. Sabe-se que a obra agora encontrada terá dado entrada na Universidade Gregoriana em 1949. “Não se sabe o resto do percurso dele. Sabe-se que deu entrada em 1949 no arquivo da Gregoriana”, explica o académico.

“Eu que trabalhei com a professora Margarida Vieira Mendes, que faleceu ainda não tinha sido publicada a edição que empreendemos os dois, e que saiu na Biblioteca Nacional, utilizou uma cópia deste original. Mas não o original”, recorda Arnaldo Espírito Santo.

O manuscrito agora achado é “difícil de ler”, explica o investigador. “Não era muito apetecível de consultar, porque estava muito desalinhado, tinha muitas notas marginais, e havia uma cópia muito limpinha e fácil de ler! E ninguém o consultou!”. Foi preciso um olhar novo para se vir a confirmar a descoberta que já está a agitar os meios académicos e os estudiosos da obra de Padre António Vieira.

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