Entrevista Renascença

Ainda estão vivos alguns dos 20 mil informadores da PIDE. “A História não é o tribunal”, diz Irene Pimentel

27 mai, 2022 - 21:57 • Maria João Costa

“Informadores da PIDE – A Tragédia Portuguesa” é o nome livro da investigadora Irene Flunser Pimentel. A obra revela que, o que a PIDE “mais queria” era recrutar informadores dentro do PCP e que também controlava funcionários do Estado Novo para saber se eram fiéis. Em 1974 haveria cerca de 20 mil colaboradores da PIDE.

A+ / A-

Porque os arquivos da PIDE são um mundo sem fundo, Irene Flunser Pimentel acaba de lançar “Informadores da PIDE – A Tragédia Portuguesa” (ed. Temas e Debates) e já está a pensar na próxima obra.

A investigadora diz, em entrevista à Renascença, que neste novo livro optou por não divulgar nomes, a não ser os que já eram públicos, porque “a História não é um tribunal” e porque há ainda informadores da PIDE vivos, com “filhos e netos”.

Questionada sobre a dimensão da teia de informadores da polícia política aquando da Revolução de Abril, a historiadora indica que “em 1974 haveria cerca de 20 mil”. Irene Pimentel sublinha, no entanto, que “a eficácia dos informadores acabava por ser maior, do que o seu número, devido à desconfiança que provocava e à apatia política.”

Prémio Pessoa, Irene Pimentel diz que o que a mais surpreendeu na investigação que agora publica é que a PIDE “também se infiltrou no seio de pessoas da chamada ‘situação’, ou seja, de pessoas que até eram do Estado Novo para saber se seriam sempre fiéis”. A investigadora que compara a atuação da PIDE com o contágio do coronavírus, revela que aquilo que a polícia política de Salazar “mais queria”, era conseguir informadores clandestinos dentro do PCP.

Esta investigação que agora publica analisa a forma como a polícia política contou com portugueses para denunciar outros portugueses. Quem eram estes portugueses que colaboravam com a PIDE?

Há vários perfis de informadores da PIDE. Inicialmente, pensaríamos que seriam as pessoas das camadas mais baixas da sociedade, que ganhassem pouco, operários, desempregados, algum lúmpen. Pensávamos isso, mas, depois, verificamos que havia informadores em todas as estruturas da sociedade. Evidentemente, mais nas mais abaixo.

Havia sobretudo algumas profissões que contavam com informadores, como, por exemplo, porteiros, contínuos da função pública, dos liceus, das escolas... Algumas vezes, donos de cafés- Portanto, podemos dizer que há vários perfis.

Depois, há pessoas que ganhavam pouquíssimo, outras que nem sequer recebiam o dinheiro pelas informações que prestavam e outras que eram muito bem pagas. Posso dar um exemplo, o de Mário de Carvalho, o informador que atraiu Humberto Delgado para a armadilha de Espanha, onde acabaria por ser assassinado.

A “pobreza endémica no Portugal salazarista acabou, de maneira perversa, por constituir um terreno fértil para o recrutamento de candidatos e de agentes informadores da PIDE”, defende o investigador Duncan Simpson, em entrevista à Renascença, a propósito do livro sobre as Cartas que os Portugueses escreviam à PIDE. Concorda com a ideia?

Eu penso que sim, porque acho que a miséria e a pobreza endémica e material também induziram numa pobreza ética e moral. No entanto, o que gostaria mais de realçar é que todas as ditaduras, seja Alemanha nazi, a Itália fascista, para comparar só com aquelas do período entre as duas Guerras, e durante a Segunda Guerra Mundial, todas essas ditaduras contam com informadores.

O caso português talvez seja mais excecional, quando se faz uma análise comparativa, devido ao tempo que durou a ditadura. Se contarmos a partir da ditadura militar, foram 48 anos. Eu acho que contribuiu para forjar uma cultura de delação e também de desconfiança. Eu lembro-me bastante bem dessa fase, embora a tenha vivido já no fim, mas lembro-me que nós não conhecíamos pessoas novas sem primeiro ter algum espaço de análise e de desconfiança. Isso penso que é muito típico da ditadura portuguesa devido a sua longevidade.

O recrutamento de cada informador era muito escrutinado? Havia uma espécie de teste de admissão?

Sim, havia uma espécie de manual que eles tinham. Eu, aliás, também me socorro desse manual que é ensinado na Escola Técnica de Polícia, que é em Sete Rios. Era a escola técnica da PIDE/DGS e, portanto, os próprios informadores eram os escrutinados, eram vigiados inicialmente para saber se eles dariam algum trabalho, e, muitas vezes, eram descartados.

Não quer dizer que um informador recrutado ficasse informador para toda a vida. Depois, também verifiquei que havia muitos candidatos a informadores. O Ministério do Interior, que tutelava, não só a PIDE, mas várias polícias, exceto a PJ, recebia permanentemente cartas de candidatos a informadores da PIDE.

Depois, era a própria PIDE que muitas vezes dizia: "Não, este não interessa nada, porque não tem conhecimentos no seio da oposição, toda a gente sabe que ele é a favor do Regime". Portanto, eles também elaboravam um perfil para os que recrutavam.

Também havia informadores de classes sociais mais altas?

Havia médicos, jornalistas, advogados. Claro que muitas pessoas que pertenciam aos cargos do próprio Estado Novo, como os Governadores Civis, presidentes da Câmara, elementos de outras polícias, por exemplo, da PSP, da GNR, todos esses campos contribuam com informadores e isso foi algo que se verificou depois do 25 de Abril, porque havia a ideia de que eram só aqueles que estavam nas estruturas mais baixas da sociedade.

Havia um aliciamento sempre para tentar recrutar pessoas no seio do Partido Comunista

Pode dar alguns exemplos de colaboradores da PIDE, menos óbvios revelados pela sua investigação? Houve casos que a surpreenderam?

Houve vários casos. O que mais me espantou foi, evidentemente, que a PIDE queria sobretudo infiltrar pessoas no seio da oposição, da oposição socialista, republicana, reviralhista, mas também se infiltrou no seio de pessoas da chamada "situação", como se dizia então, ou seja, pessoas que até eram do Estado Novo para saber se seriam sempre fiéis.

A escuta telefónica também muitas vezes era exercida sobre militares ou sobre pessoas do próprio Estado Novo. Mas, evidentemente, que o grosso era a oposição e, dentro da oposição, o que a PIDE queria mesmo era um informador que funcionasse clandestinamente, no seio do Partido Comunista Português, porque era a organização mais organizada, e que funcionava também clandestinamente. Isso era o que PIDE mais queria.

O que me espanta muito é que nos próprios interrogatórios, ou seja, ao prenderem elementos do Partido Comunista, havia sempre a tentativa de recrutar, ou dizendo que as torturas acabariam, ou que o interrogatório acabaria, ou dizendo que os elementos presos não eram levados a tribunal. Havia um aliciamento sempre para tentar recrutar pessoas no seio do Partido Comunista.

Depois, há um caso que nunca saberemos se foi bem real, porque eu conheci-o através do processo do qual ele foi alvo, porque muitos deles foram presos, e depois, foram mesmo até julgados depois do 25 de Abril, e, é um caso que parece que foi preso para ser recrutado.

Esse caso considerei bastante excecional, ou seja, prenderam-no e depois ele começou a socializar com outros presos políticos, nas prisões políticas da própria PIDE, que eram o Aljube e Caxias, e, depois a PIDE disse: "agora provavelmente quando fores libertado vais ser recrutado pelo PCP, e vais aceitar, e depois, diz-nos tudo o que lá se passa".

Optou por não divulgar nomes na investigação. Qual a razão?

Eu pensei muito nessa questão. É preciso ver que há informadores que ainda estão vivos ou que, mais frequentemente, têm filhos, netos e por aí fora. A História não é um tribunal, não é um julgamento, portanto eu não queria provocar vítimas.

Optei por divulgar só os nomes já públicos, ou seja, quer aqueles que apareceram nos jornais logo depois de 25 de Abril, nas notícias dizendo que tinham sido presos informadores ou que tinham sido julgados informadores. Ou mesmo casos em que tive acesso aos julgamentos em Tribunal Militar, de que alguns foram alvo.

Nesses casos, considerei que eram casos já públicos. Penso, de qualquer maneira, que haverá aí algumas surpresas para certas pessoas, talvez. E não me interessou fazer um trabalho exaustivo, no sentido de as pessoas verem por exemplo, em apêndice, no fim do livro, quem é que era informador, com o nome, com o pseudónimo, onde é que funcionavam, onde é que atuavam. Também não seria possível fazer isso, devido à ausência de fontes.

Eu optei por fazer um perfil, ou vários perfis e tentar também perceber porque é que eles se disponham a denunciar, ou a prejudicar, porque quem denunciava sabia que ia prejudicar a pessoa denunciada.

Houve dissidentes, houve quem quisesse desistir de pertencer à PIDE?

Nos julgamentos em Tribunal Militar, depois do 25 de abril, muitos dizem isso. Aliás, era um dos argumentos principais. Um deles é que teriam sido chantageados pela PIDE e é facto que a PIDE também fez isso. Há um caso terrível que encontrei, de um filho de uma pessoa conhecida da oposição que é chamada à PIDE e dizem-lhe "Tu a partir de agora vais-nos dizer com quem anda o teu pai, com quem ele reúne e nós prometemos que já não o prendemos mais". É um caso terrível, do qual eu não revelo a pessoa.

Mas depois do 25 de Abril, é o grande argumento, quer dizer que foram chantageados, que se não denunciassem, eles próprios eram presos, e as suas famílias, os seus próximos, e muitos também diziam: "Ah, eu só denunciei até um determinado ano, porque depois não fiz mais isso". Nunca saberemos se isso é completamente real. É verdade que nem sempre os informadores recrutados eram informadores até ao fim.

Também porque muitos deles, a própria PIDE acabava por os afastar digamos assim. Porque não davam trabalho que se visse, ou porque a PIDE achava que funcionavam mal, isso também acontecia.

Em período de inimigo obscuro, e silencioso, o medo pode fabricar futuros delatores

Quando o regime cai em 1974, sabe-se quantos colaboradores ativos tinha a PIDE?

Isso é que é a grande dificuldade! A Comissão de Extinção da PIDE que teve mais acesso a todos os arquivos da PIDE logo de seguida, calcula, num número redondo, em cerca de 20 mil, isto em 1974. Não quer dizer que é ao longo de todos os anos. Em 74 haveria cerca de 20 mil, o que de qualquer maneira é um número bastante grande. Agora também há que dizer que a própria PIDE exagerava, ou fazia constar no tempo em que atuava, que estaria por todo lado.

A eficácia dos informadores acabava por ser até maior, do que o seu número, devido à desconfiança que provocava e devido à apatia política que fazia com que muitos não interviessem politicamente, porque tinham medo também que os informadores estivessem por todo lado.

Uma pessoa chegava ao café e tinha muito cuidado com quem é que falava. Assim como ao telefone, também era a mesma coisa. O que não quer dizer que todos os telefones fossem escutados, só uma pequena parte era.

Não só a própria PIDE potenciou o seu número, como a própria oposição, porque através do medo e do receio, da desconfiança, também achava que meio mundo denunciava meio mundo. De qualquer maneira, eram muitos, e até havia mais candidatos a informadores do que os que eram mesmo recrutáveis.

A atuação da PIDE poderíamos, num paralelismo com 2022, compará-la com a propagação de um vírus invisível como o da Covid-19? Estabelecia um clima de desconfiança, não só entre os que eram contra o regime, mas também entre todas os portugueses.

Eu acho que se pode fazer isso. Aliás, já não no meu papel de historiadora, mas de cidadã, é óbvio que eu quando estava a fazer isto, e fiz parte da investigação em plena Covid, apercebi-me da linha muito ténue que há entre uma atitude cívica, por exemplo, de ter cuidado que fulano tal não esteja a contagiar mais pessoas, e uma atitude de delação, provocada para prejudicar, por inveja, ou por outra razão.

Essa linha, é muito ténue. Não sei se me faço entender! Em período de inimigo obscuro, e silencioso, o medo pode fabricar futuros delatores. Depois também coloco a questão, que é muito discutida em termos jurídicos, e que já existe muitas leis de democracias, que é a questão da delação premiada.

O "bufo da PIDE", como era pejorativamente nomeado o informador da PIDE, era um delator premiado, ao fim e ao cabo. Mesmo que não recebesse dinheiro ao fim do mês, que era quase sempre, tinha alguns benefícios. Estava próximo do poder, podia utilizar a chamada "cunha", e por aí fora.

É ainda hoje muito pertinente, a questão da delação premiada. Está na ordem do dia.

Claro que as pessoas dizem: "Está bem, mas o delator premiado hoje é aquele que pode denunciar crimes". Mas, o aspeto ético e moral está lá. É um criminoso, em princípio, que pertenceu ao grupo dos criminosos e que para se salvar, para não ser preso, ou ter algum privilégio, denuncia. Isso coloca-se, sobretudo em democracia, ao nível da ética.

A História não é o tribunal, não é um julgamento, portanto eu não queria provocar vítimas.

Percebo que os arquivos da PIDE, continuam a ser um mundo sem fundo onde há ainda muito por investigar.

Absolutamente! Há uma coisa que explico e que tem de se dizer. Nos arquivos da PIDE, em princípio, nós não temos acesso ao nome do informador. Podemos ter acesso a informações de determinados pseudónimos, mas não temos acesso ao nome do informador. Por isso, também não se pode fazer um trabalho exaustivo. Agora, claro que é impressionante.

Há outra coisa também, por exemplo, a Guerra Colonial, ou as Colónias, eu não estudei esse processo, mas é um processo também específico de informadores.

A PIDE tinha tentáculos fora do país, nas antigas colónias, mas também em outras zonas da Europa para onde tinham fugido muitos portugueses exilados?

Exilados e emigrados. Absolutamente, havia informadores em todos os países da Europa sobretudo em França, no caso de Paris, onde havia muitos exilados e sobretudo também uma imigração muito grande em que a PIDE temia que fossem recrutados também pela oposição.

Além de nesses países, e isso também é outra questão que por acaso estou a estudar agora, a PIDE tinha um relacionamento quer com as polícias de muitas democracias, quer com os serviços secretos dessas mesmas democracias. Muitas vezes acedia, ou recebia informações, sobre exilados, dessas polícias, por exemplo, francesa.

Ou seja, já está a trabalhar num novo livro?

Sim, aliás eu já estava a fazer um estudo sobre o relacionamento entre PIDE e os serviços secretos, e as polícias das democracias ocidentais, que era com quem ela tinha esses relacionamentos. Não era tanto com o KGB, era mais com a CIA e outros, e vou continuar a fazer.

Comentários
Tem 1500 caracteres disponíveis
Todos os campos são de preenchimento obrigatório.

Termos e Condições Todos os comentários são mediados, pelo que a sua publicação pode demorar algum tempo. Os comentários enviados devem cumprir os critérios de publicação estabelecidos pela direcção de Informação da Renascença: não violar os princípios fundamentais dos Direitos do Homem; não ofender o bom nome de terceiros; não conter acusações sobre a vida privada de terceiros; não conter linguagem imprópria. Os comentários que desrespeitarem estes pontos não serão publicados.

  • AnaM. Moreira
    26 ago, 2023 Trofa 00:44
    Existem vítimas da PIDE/DGS

Destaques V+