Entrevista Renascença

Prémio LeYa. “Gostaria que este livro fosse um olhar sobre Portugal do Estado Novo”

29 abr, 2022 - 19:18 • Maria João Costa

“As Pessoas Invisíveis” já está nas livrarias. O romance com que José Carlos Barros venceu o Prémio Leya 2021 tem como pano de fundo a História de Portugal, mas não é um romance histórico, diz o autor. No centro da ação estão as pessoas invisíveis, as que “pagam a fatura que é gerada pelo interesse público”.

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“As minas de volfrâmio dos anos 40 do meu romance, não são muito diferentes da discussão que há agora sobre a exploração do lítio” revela José Carlos Barros. O escritor que venceu o Prémio Leya 2021 acaba de lançar “As Pessoas Invisíveis”, um romance que fala dessas populações que “pagam uma fatura que é gerada pelo interesse público”

Em entrevista à Renascença, o autor que já foi deputado pelo Partido Social Democrata explica que “gostaria que este livro fosse um olhar sobre Portugal do Estado Novo”. No centro da ficção está Xavier, um personagem com uma “obsessão pelo poder” e um episódio que foi o gatilho para a escrita deste livro.

O massacre de Batepá de 1953 que José Carlos Barros descobriu durante umas férias a São Tomé e Príncipe serviu de mote para falar sobre a escravatura, outro dos temas que marca a trama do livro que nas palavras do autor, “não é um romance histórico”. Formado em arquitetura paisagista, Barros vive no Algarve onde já foi diretor do Parque Natural da Ria Formosa. Preocupado com as alterações climáticas, o autor que planta figos e alfarroba, defende a cultura de sequeiro a sul.

Quem são as pessoas invisíveis de que quis contar a história neste livro com que ganhou o Prémio Leya em 2021?

O título não nasceu quando começou a escrita. O título impôs-se-me a partir de uma determinada altura, quando de facto me fui apercebendo de que muitas das pessoas de que estava a falar não tinham rosto, não tinham identidade. Era como se não existissem, era como, num certo sentido, fossem invisíveis, e, portanto, digamos que se impôs mais, do que foi propositado.

São pessoas que pagam uma fatura que é gerada pelo interesse público. Podem-se fazer barragens de elevado potencial hidroelétrico, porque há um interesse público e há um conjunto de pessoas que vai pagar essa fatura. Vai haver uma exploração de minas de volfrâmio ou de lítio, porque há um interesse público nisso, e há um conjunto de pessoas que é como se não existisse, que vai ficar prejudicada verdadeiramente com isso, mas que nós não queremos saber.

Podemos fazer esse paralelismo. Essas pessoas invisíveis continuam a existir hoje com a questão o lítio, na altura era a questão do volfrâmio?

Sim, as pessoas invisíveis são essas pessoas que não têm o rosto e que contam pouco. Este livro vai a um tempo mais antigo, recua no tempo, mas a vontade que existe por parte de quem escreve, pelo menos no meu caso, é assim, é escrever sempre sobre o nosso tempo, e, portanto, mesmo quando estamos a falar de coisas mais antigas é sobre o nosso tempo que queremos falar.

De facto, as histórias repetem-se, e, portanto, as minas de volfrâmio dos anos 40 do meu romance, não são muito diferentes da discussão que há agora sobre a exploração do lítio. As pessoas invisíveis vão aparecendo, porque estão ligadas à escravatura nesse episódio da história Colonial que também atravessa o livro, ou essas pessoas rurais que são de facto pessoas invisíveis, continuam a existir.

As histórias vão se repetindo, e por isso, sim, essas pessoas invisíveis existem também no nosso tempo.

Escreve a certa altura no livro a propósito do contexto do salazarismo que “Salazar mexe os cordelinhos invisíveis da neutralidade e vai andando, assim, sem se molhar, entre os pingos da chuva”. Há também a dimensão da invisibilidade do poder de então?

Sim. Eu gostaria que o livro fosse lido, nessa dimensão da discussão do poder. A invisibilidade e o poder são neste livro muitas vezes as duas faces de uma mesma moeda, por vezes confundindo-se. O próprio personagem principal, o Xavier, tem essa obsessão pelo poder, e, portanto, vai andando entre a invisibilidade e o poder.

Essa referência a Salazar faz de facto, muito sentido, porque em grande parte, eu gostaria que este livro fosse no essencial um olhar sobre Portugal do Estado Novo, sobre esse arco temporal que vai da Constituição de 1933 até ao 25 de abril e que é marcado pela figura de António Oliveira Salazar.

Nesse sentido, este é um livro que percorre a História dos últimos anos em Portugal, mas não é um romance histórico. Porque gosta de escrever sobre estes temas, sobre a ditadura, o colonialismo?

Eu acho que este não é um romance histórico, e gostaria que não fosse um romance histórico, embora, ele parta de factos e acontecimentos reais. Eu prefiro assumir com clareza essa prerrogativa de ficcionista que vai ocupar esses espaços deixados pela História.

Ele parte de factos reais, o essencial é esse massacre de Batepá, de 1953, em São Tomé e Príncipe que é aquele que acaba por espoletar a minha escrita, pelo sobressalto de ter descoberto esses acontecimentos. De facto, o livro parte de factos reais, mas não pretende ser um romance histórico.

Inclusivamente, em relação ao massacre de Batepá, mais do que descrever esses acontecimentos, que seria fácil porque há elementos históricos para descrever tudo isso, o que eu gostaria, era dar um carácter de universalidade a esse acontecimento.

Mais do que descrever o que aí se passou, eu gostaria de descrever algo que acontece sempre, em diferentes lugares, em diferentes tempos, quando a ignominia e a indignidade se revelam desse modo, como se revelaram em São Tomé e Príncipe, em 1953.

O episódio do massacre de Batepá estava escondido, esquecido na História? O Estado Novo quis apagá-lo? Como o descobriu?

Eu estava em São Tomé e Príncipe de férias e na Bienal de São Tomé descobri uns painéis sobre o massacre de Betepá. Senti um grande sobressalto, por um lado, pela gravidade dos eventos. Terão morrido mais de mil pessoas nesses acontecimentos de fevereiro de 1953, eram mais de mil filhos da terra! Depois sobressaltou-me imenso de ser um evento histórico tão importante, e eu nunca ter ouvido falar. Aliás todos os amigos com quem depois referi esta situação, ninguém tinha ouvido falar.

Escreve no livro até que "o Governador de Lisboa sabia de tudo", mas também escreve "o essencial era silenciar o assunto. Não fazer ruído. Não haver assunto". Mas o caso não passou em claro.

Esta história, apesar de tudo é conhecida pelos historiadores. Eu tive a necessidade no livro de ter uma nota bibliográfica, porque consultei muitos documentos sobre o assunto, portanto eles existem.

O que acontecia com esta história do trabalho escravo, e não tenhamos, de facto, medo das palavras é que ele era conhecido e era denunciado mesmo no interior do próprio regime. Marcelo Caetano várias vezes faz referência é isso nas suas cartas e na correspondência com Salazar.

Não sabemos o que terão sido as conversas entre ambos sobre o assunto, mas conhecemos os documentos escritos, a correspondência entre Marcelo Caetano e Salazar em que, por exemplo, Marcelo alerta para o cortejo de violências e misérias morais que está associado a essa indústria da mão-de-obra indígena.

Repare, em 1947, portanto poucos anos antes de acontecer o massacre de Batepá, o assunto do trabalho serviçal é discutido na Comissão das Colónias, na Assembleia Nacional. É o chamado "Relatório Henrique Galvão", onde se diz que se passa nas nossas colónias uma situação insustentável, em que só os mortos estão isentos da compulsão ao trabalho. E nesse relatório denuncia-se aquilo que é descrito como uma situação mais grave, do que a criada pela escravatura pura.

Isto era do conhecimento do Regime. Com a abolição da escravatura, obviamente que não acabaram as necessidades de mão-de-obra intensiva. A abolição da escravatura é um ato mais formal que vai demorar muitas décadas, e muito tempo, até se tornar algo efetivo. Passadas sete décadas da abolição da escravatura, estamos a discutir e estamos a assistir a esta situação lamentável do trabalho de serviço serviçal nas nossas colónias.

A falta de água é um problema real. As alterações climáticas trazem uma nova dimensão a esse problema, mas é um problema de sempre!
O José Carlos Barros também escreve poesia e usa uma máquina de escrever para os versos.

São exercícios muito diferentes, o de escrever poesia e o de escrever textos longos em prosa. Para quem, como eu, que não pode dedicar-se a tempo inteiro à escrita, andei com este romance durante imenso tempo. De facto, é uma escrita que exige disciplina e exige, um tempo que é diferente no caso da poesia.

Na poesia é possível escrever um poema, ou um conjunto de poemas numa determinada altura e regressar depois. Na prosa, é diferente, embora a matéria seja a mesma, e o ofício o mesmo. No essencial o que existe é um conjunto de palavras que vamos usar de um outro modo.

Eu gostaria que na minha prosa, também se notasse essa oficina da poesia, por achar que a linguagem é o que dá importância às histórias. A literatura vive desse poder transfigurador da linguagem, dessa capacidade que existe de através da linguagem se criarem universos. Gostaria que houvesse essa contaminação e que desse ponto de vista não fosse tão diferente quanto isso, escrever poesia ou prosa.

Nasceu em Boticas, o seu trabalho levou-o ao Algarve, onde vive hoje. Foi diretor do Parque Natural da Ria Formosa. Como está o Algarve em termos ambientais hoje. A falta da água é uma preocupação?

A falta de água é um problema real. As alterações climáticas trazem uma nova dimensão a esse problema, mas é um problema de sempre! Para darmos um exemplo, onde há mais consumos de água é na agricultura, por isso o Algarve teve desde sempre como base, para além das hortas, as culturas tradicionais de sequeiro.

São um exemplo de adaptação ecológica e ambiental, absolutamente fantástico. Numa região onde sempre houve pouca água, onde sempre choveu muito pouco, obviamente que o modo de aproveitamento da terra se fazia em grande parte através do figo, da alfarroba, da amêndoa e dos produtos que têm baixíssimas exigências de rega.

Depois deste problema real das alterações climáticas, que vêm agravar esta situação, é obvio que é preciso discutir a possibilidade de termos maneiras alternativas de fontes de água, precisamos de mais água, mas penso que não podemos nunca perder também essa ideia de que não é só dizer que precisamos de mais água, mas perceber como é que nos conseguimos adaptar a uma realidade de pouca precipitação, de termos pouca água e de termos obviamente saber jogar com essa realidade.

Planta figos?

Eu vivo no campo, e vivo de facto numa fazenda onde fazemos alfarroba e figo. Temos pomares tradicionais de sequeiro, de alfarroba e figo e que são em ambos os casos, culturas que não são regadas. A médio prazo pode haver problemas, caso a precipitação sofra alterações significativas. Mas de facto não carecem de rega e é o que nós temos de estar a fazer no Algarve.

Esse viver no campo é também terreno fértil para a escrita?

Não sei, não tenho propriamente muito tempo para escrever. Há uma ideia um bocadinho romântica de viver fora das cidades, mas as diferenças não são grandes do ponto de vista do tempo que nos sobra para aquilo que queremos fazer!

Obviamente que esta minha ligação de sempre ao mundo rural - nasci e vivo no mundo rural - acaba por se refletir na minha escrita e, de facto, penso que a minha escrita seria completamente diferente senão fosse essa circunstância. Penso que neste romance se vê isso. É essa presença forte da ruralidade e da natureza que, penso que se reflete de uma maneira clara.

Cada frase, cada parágrafo, cada página sai-me com muito esforço
Já começou outro romance, depois do Prémio Leya?

Não. Eu penso que não se escreve mais, por se ganhar um prémio. Não sinto isso como um grande incentivo. Eu queria escrever! E quero escrever! É mais uma questão de ter disponibilidade de tempo, e mental. O prémio foi uma coisa fantástica que recebi com grande gosto, mas está a ter um bocadinho este efeito contrário, pelo menos durante algum tempo.

São os tais "15 minutos de fama". Está a dispersar-me mais e está a convocar-me para um conjunto de situações que, inclusivamente, me impedem retomar da escrita. Mas isto é uma fase de transitória. Espero a curto prazo escrever, porque a vontade de escrever histórias é o que me move neste ofício da escrita. Tenho histórias para contar, e espero rapidamente regressar à escrita de um novo romance.

Recordo quando venceu o Prémio Leya dizia em entrevista à Renascença que escrever era estar de frente para um muro.

Eu às vezes, até tenho dificuldade em saber porque escrevo. Por que, de facto, não sendo masoquista, é difícil explicar porque dedico tanto tempo, o tempo que posso, à escrita. Custa-me muito escrever, acho que escrever é mais trabalho do que inspiração.

Cada frase, cada parágrafo, cada página sai-me com muito esforço. A atribuição deste prémio, também a senti como algo importante para premiar um trabalho que penso que as pessoas, de um modo geral, não terão a consciência do quanto é exigente.

Alguns amigos dizem: "És uma pessoa muito inspirada!"; "Deves escrever com facilidade"... bem, a inspiração, é como Picasso dizia - "Acredito muito na inspiração, espero que quando ela chegar me encontre a trabalhar!". Mantenho essa ideia de que escrever é estar sentado com uma folha branca, ou com um ecrã, diante de um muro, sozinho, sem ninguém que nos possa ajudar nessa tarefa.

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