Entrevista Renascença

​O que dizem as cartas que os portugueses escreviam à PIDE?

22 abr, 2022 - 18:38 • Maria João Costa

Um investigador britânico mergulhou nos arquivos e encontrou 603 cartas de denúncia, 493 cartas de candidatura e 16 pedidos à PIDE. No livro que publica revela o que dizem essas missivas e de que forma os portugueses se serviram da PIDE. Duncan Simpson considera que houve “um processo de acomodação e de normalização da PIDE na vivência quotidiana” portuguesa.

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Chama-se “Tenho O Prazer De Informar O Senhor Director...” - Cartas De Portugueses à PIDE (1958-1968). É um livro editado pela BookBuilders, da autoria do investigador britânico Duncan Simpson, onde o historiador radicado em Portugal reúne um conjunto de cartas que os portugueses escreviam à polícia política do regime de Salazar.

Em entrevista à Renascença, o investigador explica que pretende dar a conhecer um lado menos explorado da relação dos portugueses com a PIDE. Era uma relação “muito mais ativa e muito mais multifacetada do que se tem afirmado até agora na historiografia”. No seu entender, houve mesmo “um processo de acomodação e de normalização da PIDE na vivência quotidiana” portuguesa.

Esta visão nasce depois de percorrer os arquivos e ter encontrado “603 cartas de denúncia e 493 cartas de candidatura à PIDE de pessoas que a queriam integrar espontaneamente a PIDE, enquanto agentes, ou enquanto informadores”, bem como 16 pedidos de ajuda.

Para Duncan Simpson a “pobreza endémica no Portugal salazarista acabou, de maneira perversa, por constituir um terreno muito fértil para o recrutamento de candidatos e de agentes informadores da PIDE”.

Este livro pretende dar a conhecer um lado desconhecido da História da PIDE. Que cartas são estas?

As cartas que utilizei no meu estudo são, basicamente, cartas que vêm, na maioria, dos arquivos da PIDE, desde a campanha do General Humberto Delgado para as Presidenciais de 1958, até à queda da cadeira de Salazar, em 1968.

São cartas que são muito difíceis de encontrar nos arquivos, apesar do que se diz por vezes. Encontrei-as através dos registos de correspondência da delegação da PIDE no Porto, porque os registos de Lisboa e da delegação de Coimbra desapareceram por razões desconhecidas, que os arquivistas da Torre do Tombo também não conseguem explicar.

Cheguei a elas através daqueles registos, mas também através de anos sobre os quais fiz uma investigação extensa (por exemplo, o ano de 1964), para tentar remediar o facto destas cartas serem muito dispersas nos arquivos da PIDE.

Ou seja, as cartas estão misturadas em vários processos, é isso?

Sim, exatamente! Não existe, no arquivo da PIDE, uma pasta que seja especialmente dedicada a cartas de denúncia. Estas foram inseridas gradualmente, dentro de cada processo individual ou processo-crime, o que as torna extremamente difíceis de encontrar. Pelo menos, demora muito tempo chegar a elas.

No total, encontrei 603 cartas de denúncia e 493 cartas de candidatura à PIDE de pessoas que a queriam integrar espontaneamente a PIDE, enquanto agentes ou enquanto informadores. E também 16 casos de petições enviadas à PIDE por membros do público. Estas petições são casos de pessoas que pediam uma forma de ajuda específica à PIDE e aos seus agentes.

As cartas são anónimas ou assinadas?

A maioria das cartas são assinadas, mas não se sabe sempre se é o verdadeiro nome do autor. O mais lógico é que algumas pessoas utilizavam nomes falsos, porque queriam dar a impressão de veracidade às suas cartas. No entanto, uma minoria significativa das cartas de denúncia, é anónima. Obviamente que as petições e as candidaturas são todas assinadas e têm a morada das pessoas que as escreveram.

O que argumentam as pessoas que queriam candidatar-se à PIDE?

Isso é uma boa questão, porque é um assunto que, de certa forma, me surpreendeu (pelo menos na forma como foi interpretado até agora) e que ressai claramente das cartas de candidaturas.

Quero dizer que estas cartas que encontrei são apenas uma amostra minúscula da enorme quantidade de cartas de existem. No caso das candidaturas espontâneas, o ponto comum a quase todas é a destituição material, a situação de pobreza e a situação de absoluta dificuldade económica e social (incluindo a marginalização social) das pessoas que, de uma certa forma, achavam que a PIDE, para elas, era uma espécie de ótima oportunidade económica.

As pessoas que mais procuravam a PIDE eram, em geral, as que tinham baixos níveis de educação e que se encontravam sem oportunidades de ascensão social ou, simplesmente, de algum tipo de carreira profissional.

E conseguiu perceber se alguns desses pedidos foram aceites?

Sim, alguns eram aceites e outros eram rejeitados, porque os agentes da PIDE consideravam que as pessoas não tinham as condições para cumprir estas funções ou que, simplesmente, a sua situação na sociedade não era suficientemente interessante para a PIDE.

No entanto, muitos eram aceites. Há casos em que os agentes da PIDE se deslocavam até à casa da pessoa ou comunicavam, pelo menos, com ela, para dar as instruções exatas sobre a maneira como deviam fazer os seus relatórios para a PIDE.

A PIDE era vista por alguns portugueses como um meio de ascensão social?

O facto de os candidatos à PIDE e dos próprios agentes da PIDE serem maioritariamente pessoas com baixa educação e de classes sociais mais baixas, não é novidade. Já é sabido, desde o início da investigação académica sobre a PIDE, e até antes.

Até hoje, a interpretação tem sido, basicamente, o facto de que esta falta de educação seria sintomática e anunciadora do lado incivilizado, se podemos dizer, do lado bruto da polícia política salazarista. No meu ponto de vista, este tipo de interpretação é muito superficial.

Eu acho que é muito mais interessante tentar ver, precisamente, que a situação social de pobreza endémica no Portugal salazarista acabou, de maneira perversa, por constituir um terreno muito fértil para o recrutamento de candidatos e de agentes informadores da PIDE.

O que é que dizem as outras cartas, as cartas de denúncias? Há quem queira denunciar situações ou pessoas, mas há também quem queira servir-se da PIDE, ao fazer algum tipo de denúncias?

Sim, exatamente! Antes de entrar responder a isso, queria dizer que tentei neste estudo sair da análise predominante até agora na historiografia da PIDE, que foi sempre de analisar os mecanismos da repressão exercidos de cima para baixo, pela polícia política, sobre a pequena minoria de oposicionistas ao regime.

É preciso entender que os oposicionistas, que foram, de facto, perseguidos, alguns deles torturados e que acabaram por morrer ou ser até assassinados pela polícia política, foram sempre minoritários na sociedade e que a larga maioria da sociedade portuguesa optou por não interferir na política.

Acho que, até agora, esta larga maioria tem sido ignorada e, muitas vezes, simplesmente considerada como uma espécie de vítimas passivas da polícia política, que teriam sido paralisadas pelo medo que a PIDE conseguia incutir na sociedade. É a minha visão...

Quando vamos aos arquivos e quando vemos todas aquelas formas de interações espontâneas entre a população e a PIDE percebemos que, na verdade, há uma relação entre a sociedade e a polícia política em Portugal muito mais ativa, muito mais interativa e muito mais multifacetada do que se tem afirmado até agora na historiografia.

E o que dizem as cartas de denúncia?

Em primeiro lugar, estas cartas mostram até que ponto a sociedade portuguesa se adaptou às instituições do Estado Novo. Neste caso particular, adaptou-se, até, ao quadro e ao aparelho repressivo do regime. Uma forma de adaptação foi procurar maneiras, de uma certa forma, manipular o aparelho repressivo em benefício próprio.

Esse foi o caso da maioria das denúncias, que são cartas que tentam ou que chamam à resolução conflitos privados em que as pessoas podiam denunciar o seu vizinho, colegas ou até, às vezes, membros da família, simplesmente porque tinham desentendimentos com eles. Às vezes são motivos extremamente triviais.

Pode dar alguns exemplos?

No livro inseri vários exemplos e até cópias dos originais das cartas de denúncia. Há o caso de uma pessoa, na Póvoa de Varzim que, em 1964, denunciou uma pessoa que trabalhava num bar durante o Carnaval de 64 como sendo suspeito politicamente.

A PIDE, como fez sempre e em todos os casos, investigou, enviou investigadores ou agentes para a Póvoa de Varzim e acabou por descobrir que esta pessoa não fazia parte do movimento oposicionista. Pelo contrário, era membro de uma família muito próxima do regime, que nunca tinha mostrado sinais de se opor a este.

A PIDE acabou por descobrir que a pessoa denunciada tinha, alguns dias antes, trabalhado como porteiro num café durante o Carnaval e tinha, naquela ocasião, feito muitas inimizades, porque tinha recusado a entrada a muita gente. A PIDE percebeu que a denúncia veio de uma dessas pessoas desiludidas. É um bom exemplo para ver até que ponto os motivos triviais podiam motivar as denúncias.

Há outros casos?

Noutros casos, a PIDE servia também como aquilo a que chamo de instrumento de coerção apropriável. Quer dizer que, por exemplo, as pessoas utilizavam a PIDE para tentar forçar uma outra pessoa a fazer alguma coisa, fazendo pairar a ameaça representada pela PIDE.

Um bom exemplo, que também cito no livro, é do editor de Lisboa de um livro que se chamava "30 anos de Estado Novo", que enviava o livro pelo correio a potenciais clientes, que o compravam e o deviam, depois, restituir ao editor. Houve alguns destes clientes que não restituíram o livro e o editor ameaçou essas pessoas, dizendo que se não restituíssem o livro ou se não o comprassem, ele teria de os denunciar às autoridades competentes, por não estarem suficientemente em sintonia com os objetivos do livro, que era de propaganda do regime.

Também houve muitos casos, por exemplo, de emigrantes candidatos a emigração ilegal que, quando eram burlados por passadores ou angariadores. Não hesitavam escrever à PIDE para denunciar essas pessoas, e reclamar que a PIDE recuperasse o dinheiro que já tinham pago ao passador.

Qual a cadência destas cartas? Eram regulares? Intensificaram-se com o passar dos anos? São de todo o país?

O meu estudo acaba, por força das necessidades, por focar-se mais na região Norte de Portugal, porque é o único registo de correspondência recebida da própria PIDE, da delegação do Porto. Em termos de diferenciação geográfica, é difícil chegar a conclusões certas.

O que se vê é que, pelo menos na década sobre qual eu trabalhei, as cartas de denúncia ficam de uma natureza cada vez mais nacionalista e cada vez mais colonialista, em particular nos anos a seguir ao início da Guerra Colonial, em 1961. Sente-se, ali, uma espécie de "boom" na vontade de defesa da propagação de Portugal no Ultramar, que dura alguns anos. Só mais tarde, com a Guerra a durar muito tempo, é que a situação começa a mudar.

Quando diz que tinham esse sentido colonialista, eram denúncias de situações nas colónias?

Podiam ser das colónias, embora eu me tenha limitado a trabalhar o espaço de Portugal Continental. Neste caso, eram, por exemplo, denúncias de pessoas que supostamente eram propagadoras de um discurso derrotista em Portugal.

Tem alguns exemplos?

Em muitos casos eram de conversas em cafés, em mercados, em transportes públicos, de pessoas que, eventualmente, exprimiam, pelo menos, dúvidas quanto à conduta da Guerra, primeiro, em Angola.

Casos também de pessoas que, eventualmente, apoiavam os movimentos de libertação africanos e outros também, de maneira mais indireta, de pessoas passadoras e engajadoras de emigrantes que eram denunciadas por trazer para fora do país jovens portugueses que estavam na idade de cumprir o serviço militar e ser enviados para a África portuguesa.

Como é que um investigador de origem britânica se tem interessado por este tema, por este período da história portuguesa? O que é que o motiva e o que é que o trouxe para Portugal, para trabalhar estes temas?

O que me trouxe para Portugal pela primeira vez não foi o estudo destes assuntos. A primeira vez que vim foi há décadas, em 1991, de férias e nasceu muito rapidamente uma espécie de paixão pelo país, pela sua literatura, cultura e, gradualmente, pela sua História.

Quando tive a oportunidade de desenvolver projetos de investigação a nível de Mestrado, foi muito obvio para mim continuar o meu interesse pela cultura e História portuguesas através de temáticas que me interessavam.

O meu primeiro livro é um livro sobre as relações entre a Igreja Católica e o Estado Novo Salazarista e o meu novo tema, este, é sobre a polícia política. Em geral, primeiro escolho temas, que acho pessoalmente mais interessantes, e, depois, em que a bibliografia me parece ter lacunas ou ser muito marcada por pontos de vistas ideológicos que deixam, em consequência, certos lados da investigação de parte.

E, no fundo, com este livro, quer complementar o conhecimento que existe até hoje sobre a PIDE?

Sim. Acho que é importante deixar isso claro, porque, há um ano, escrevi um artigo no jornal Público em que levantava a ideia da PIDE ter sido normalizada pelos portugueses, pelo menos, na década de 60.

Por normalizada, queria dizer que a sociedade portuguesa, ao longo das décadas (porque foi um regime que durou quase 50 anos), tinha-se habituado, ao quadro institucional imposto pela ditadura e aprendido a viver dentro deste quadro, aproveitando-se das oportunidades que, eventualmente, existiam, e regulando o seu comportamento segundo as normas de aceitabilidade fixadas pelo regime.

Faço esta precisão porque, quando publiquei este artigo no Público, tive várias respostas de historiadores a rejeitar a minha interpretação e a dizer até, abertamente ou de maneira implícita, que podia haver aqui uma tentativa de branqueamento ou até de negacionismo da violência da PIDE.

Este tipo de posição, quanto a mim, só pode ser assumido por alguém que não leu o meu trabalho ou que não quer perceber qual o teor da minha interpretação. Como você disse, a ideia é complementar e dar outras nuances, sobre as interpretações presentes, saindo daquele foco sobre a pequena minoria de oposicionistas que, obviamente, merece, ser preservado na consciência e na memória coletiva, não estou a dizer o contrário.

A violência que a PIDE exerceu contra esta minoria de pessoas, do ponto de vista cívico, é muito importante. No entanto, por outro lado, este foco não pode impedir que se tenham em conta outros aspetos de inter-relação entre os portugueses e a PIDE, talvez mais difíceis de encarar, porque implicam uma certa ambiguidade, um processo de acomodação e, até, de normalização da PIDE na vivência quotidiana, mas também fundamentais a qualquer análise, se queremos perceber quais os mecanismos que contribuíram para a excecional longevidade do regime.

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