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Entrevista Renascença

“Os estatutos dos artistas e autores em Portugal são muito anacrónicos”

18 mar, 2022 - 20:52 • Maria João Costa

Tiago Torres da Silva é letrista. Já escreveu para mais de 200 artistas. As suas letras estão em vozes como as de Maria Bethânia, Omara Portuondo, Carminho ou Raquel Tavares. Celebra 30 anos de carreira com um concerto dia 23 no Coliseu de Lisboa.

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Considera que o teatro é a sua “casa” e a sua “essência”, mas Tiago Torres da Silva é também uma referência na música. Já escreveu letras para “mais de 200 cantores”. Em entrevista à Renascença, confessa que escrever letras de canções é para si “uma terapia”.

Explica que é um “letrista de vozes”. “Se não souber quem é a voz que as vai cantar tenho imensa dificuldade em escrever as letras”, admite. Mas as suas letras já foram cantadas pelos brasileiros Ney Matogrosso, Maria Bethânia, Elba Ramalho, a cubana Omara Portuondo ou os portugueses Carlos do Carmo, Marisa Liz, Carminho, Camané, Sara Tavares ou Simone de Oliveira.

Agora, no próximo dia 23 celebra 30 anos de carreira com um concerto pensado pelos músicos Joana Amendoeira, Nuno Guerreiro e Marcos Sacramento para quem Tiago Torres da Silva escreveu as letras dos seus últimos discos. Nesta entrevista em que revela como nascem as letras, o autor confessa que “fazer uma carreira disto em Portugal tem muitos momentos muito duros” e critica os estatutos dos artistas e dos autores que considera “muito anacrónicos”.

Começamos pelo concerto do próximo dia 23 no Coliseu dos Recreios em Lisboa. É uma homenagem? Como é que surgiu a ideia?

Isto não era para ser um concerto de homenagem, mas aconteceu três grandes cantores, a Joana Amendoeira, o Nuno Guerreiro e o sambista Marcos Sacramento terem gravado três discos só com letras minhas e resolveram juntar-se para fazer um lançamento, porque me tinham como elo comum. Depois a imprensa começou a reparar que eram 30 anos desde o primeiro fado que escrevi para a Tereza Tarouca. E isto começou a ganhar uma carga de homenagem que me assusta imenso!

Porque é que o assusta?

Porque a ideia era celebrarmos a língua portuguesa, a poesia, a música e celebramos esta coisa dos diferentes sotaques com que eu escrevo. Escrevo com "sotaque" do Fado, do samba, e outros. Eu adoro a língua portuguesa em todas as suas variantes. E de repente isto ficou com carga de homenagem, mas não era para o ser. É uma celebração da diversidade da língua, da diversidade rítmica e tímbrica desta gente. É uma viagem pela língua portuguesa através de 3 vozes extraordinárias que me deram a grande alegria de fazerem discos só com letras minhas. A Joana Amendoeira com música só do Fred Martins, o Nuno Guerreiro com música do Pedro Joia e o Marcos Sacramento com músicas dele.

Escrever letras de canções para mim é a minha terapia

E de repente percebeu que passaram 30 anos!

É mesmo isso! De repente passaram 30 anos!

O que é ser letrista, Tiago Torres da Silva?

Há muitas maneiras de ser letrista. Eu sou um letrista que escreve para muita gente. Escrever letras de canções para mim é a minha terapia. Tenho de procurar em mim a voz que me vai cantar. Tenho de procurar em mim o que existe de Daniela Mercury, de Tonicha, de Celeste Rodrigues ou de Carminho.

Ou seja, as letras nascem na cabeça e no coração pensadas para quem as vai interpretar?

Sempre, sempre, sempre! Eu se não souber quem é a voz que as vai cantar tenho imensa dificuldade em escrever as letras. Eu sou um letrista de vozes. Comecei no teatro e é como se eu estivesse a escrever as deixas de uma grande peça imaginária que é a vida, e os cantores fossem as personagens que vão dar voz a essas ideias que tenho. A verdade é que o maior elogio que tenho, e felizmente tenho-o muitas vezes, é os cantores quando olham para as letras dizerem: "- Se eu escrevesse, era isto que teria escrito". Consigo essa coisa de me meter na pele daquela pessoa e escrever como se fosse ela. O Nuno Guerreiro diz isso, neste último disco, "Como é que tu sabias tudo sobre mim?"

Conhece muitos destes cantores. Consegue escrever para quem não conheça?

É muito mais difícil. Eu adoro escrever para pessoas que estão a começar, e escrevo muito para miúdos que estão a começar, mas é mais difícil e trabalhoso. Exige-me mais conversa com eles. Eu quando escrevi para a Beatriz da Conceição, eu não a conhecia muito bem, mas já conhecia bem a sua obra, a persona dela no Fado que me era mais imediato. Quando não conheço, obriga-me a desvendar a alma de outras maneiras. Os cantores que andam aqui há muitos ano já me correm nas veias. Já é mais natural.

Qual foi a primeira letra de uma canção que compôs?

"A Ilha", para o Fado Alberto para a Tereza Tarouca.

Meti-me na música brasileira com muita alegria

Há algum cantor em particular para quem gosta de compor?

Prefiro não dizer isso, porque os outros podem ficar zangados! Posso dizer que agora dia 18 sai o "Nua", o disco “Da Gente” da Simone, brasileira. É uma canção minha com ela. É assim das coisas mais lindas que eu fiz na vida e ela canta de forma extraordinária. A voz dela entra por mim dentro e fica alojada no coração com uma força! Mas há tanta gente! São mais de 200 cantores os que gravaram coisas minhas. Eu até para a Omara Portuondo escrevi! Uma coisa que nunca tinha imaginado! No Brasil escrevi para a Maria Bethânia, o Ney Matogrosso, para a Elba Ramalho, para Alcione, imensos! É até vaidoso eu dizer...

Quando escreve para músicos brasileiros, escreve com sotaque?

Completamente! Eu escrevo para aquela pessoa e se ela tem outro sotaque, tenho de me apropriar do sotaque dela. Algumas vezes os brasileiros diziam que era impossível ser um português a escrever aquilo. De facto, meti-me na música brasileira com muita alegria.

No meio de tudo isto há também as Marchas de Lisboa. Há muito que escreves para vários bairros. É muito diferente escrever essas letras?

Eu gosto. Sou uma pessoa com muito pouca paciência e gosto de fazer coisas muito diferentes. Quando me canso de fazer uma coisa, vou fazer outra, quando me canso dessa, volto para a outra. Fui parar totalmente por acaso às marchas. Fui tão bem acolhido e descobri lá uma coisa que pensei que estava morta e enterrada há centenas de anos e não está. São os miúdos, os mais jovens que ficam loucos com as marchas. A integração que as marchas levam aos bairros é importantíssima. Eu sou o padrinho da Marcha da Bica há 18 anos. Também desço a Avenida e fico muito contente de participar nisso que é um fenómeno que agrega tanto as pessoas mais jovens de bairros, com muitas dificuldades, e que lhes dá muita alegria e sentido de pertença. Ao perceber como a marcha dá sentido de pertença aos habitantes dos bairros fiquei de alma e coração ali. Já dali não saio.

Para quem já escreveu?

Já escrevi para São Vicente, para os Olivais, para o Bairro Alto, para Santa Engrácia, mas aquela onde eu estou anualmente, porque sou padrinho é a Marcha da Bica.

Não acho nada que um artista português tenha de se expressar na língua portuguesa

Hoje há ainda cantores portugueses que preferem cantar em inglês. Acha que lhes falta coragem para cantar na língua portuguesa?

Detenho-me muito pouco sobre isso. Acho que se um artista decidir que a maneira que tem de se expressar é em chinês, acho que tem esse direito. Se há uma geração que ouve mais música Pop e que bebeu a música Pop anglo-saxónica, e foi assim que se construiu enquanto artista, a mim não me incomoda nada que cante noutras línguas. Mesmo agora no Festival, a Áurea foi em inglês, não me incomoda nada. Nos anos 70 já os ABBA ganharam em inglês e eram suecos.

Acho que cada artista é um mundo diferente, um caminho diferente. Se é assim que se expressam, tudo bem. Não acho nada que um artista português tenha de se expressar na língua portuguesa. Se a sua alma disser para se expressar na língua portuguesa, acho que sim! Eu também adoro escrever noutras línguas, em crioulo, francês, adoro fazê-lo! Sinto que o mundo anglo-saxónico teve e tem um peso na música Pop que é imbatível e que obviamente vai influenciar os músicos do mundo inteiro.

Também escreve para teatro. Fez o musical dedicado à Simone de Oliveira. Onde se situa nas criações teatrais?

Sou sempre autor e encenador. Produtor nunca. Sempre que tentei ser produtor a coisa correu mal porque é uma valência que não tenho. O teatro para mim é a minha casa, a minha essência, mesmo na música, nas letras, ou quando produzo um disco, é sempre como se fosse um encenador. Sempre a pensar no poder dramático de cada coisa, no poder cómico de cada coisa, em cada solo, em cada palavra. Para mim, o teatro está na base de tudo e eu gostaria de fazer muitíssimo mais do que faço. Já encenei 20 e tal peças e não é pouco. Estou a encenar uma peça agora, e estou com muitas saudades de fazer teatro. Para mim, a minha essência está no teatro.

Talvez por essa paixão ao teatro tenha no mural do seu Facebook a frase de Samuel Beckett "Falhar, falhar de novo, falhar melhor".

É uma das minhas frases. São frases que sempre me empurram para continuar, porque fazer uma carreira disto em Portugal tem muitos momentos muito duros e temos de nos agarrar a âncoras fortes para não desistir e seguir em frente. Os estatutos dos artistas e dos autores em Portugal são todos muito anacrónicos. Com esta passagem da arte do mundo físico para o digital, ficamos todos meios perdidos e é preciso agarrarmo-nos a âncoras.

A pandemia agravou em muito a situação do setor cultural. Pelo meio, foi lançado o Estatuto do Artista. Que avaliação faz desse estatuto?

Acho que foi o primeiro passo de bebé num caminho que é preciso trilhar rapidamente. Percebermos como o mundo mudou, e como nós temos que adequar a realidade da vida dos artistas e autores ao novo mundo que temos que a internet veio transformar completamente. Acho que é um bom primeiro passo. Há muito a fazer.

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