Entrevista Renascença

Ana Aragão nunca foi a Kiev, mas criou um desenho para ajudar a Ucrânia

11 mar, 2022 - 22:33 • Maria João Costa

Ana Aragão é formada em arquitetura, mas diz ser uma desenhadora. Criou um desenho de Kiev com o qual quer angariar verbas para ajudar a Ucrânia. No coração da imagem está a Catedral de Santa Sofia, um “símbolo” e uma das “âncoras necessárias do sistema emocional”. É a sua contribuição humilde para contrariar o ódio.

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Ana Aragão diz que “é o tempo que resolve os desenhos”, mas foi com a urgência de ajudar a Ucrânia que criou uma ilustração dedicada a Kiev, a cidade que nunca visitou. Quer com o desenho angariar verbas para ajudar. Em entrevista à Renascença, a arquiteta, que prefere ser designada como “desenhadora”, diz que gosta de imaginar locais utópicos.

É deitada no chão do atelier, rodeada de canetas que cria os seus trabalhos. O último mostra a Catedral de Santa Sofia, no coração da capital ucraniana, rodeada de um bairro colorido, o “Confort Town”, edificado numa antiga zona industrial. O desenho está à venda numa edição numerada. Ana Aragão reconhece que é o seu contributo “humilde”, mas diz que “nada é suficiente” para quem “é obrigado a fugir de casa”

“Senti necessidade de contrariar o mundo” explica Ana Aragão, natural do Porto. A desenhadora que encontra inspiração na escrita de mulheres como Sophia de Mello Breyner Anderson ou Agustina Bessa Luís, quis destacar o património em perigo e ao mesmo tempo criar uma imagem que seja “o contrário do ódio”. Ana Aragão lembra as palavras do gato da Alice no País das Maravilhas de Lewis Carroll, "a imaginação é a única arma contra a realidade".

Como nasceu a vontade de fazer este desenho onde mostra numa só imagem a Catedral de Santa Sofia, classificada pela UNESCO, “abraçada” por um bairro residencial de Kiev?

Este desenho tem a ver com a vontade que senti, como já não sentia há bastante tempo, de contrariar o Mundo que neste momento parece uma distopia. Vivemos em cenários distópicos, mas reais. Acaba por ser tremendamente assustador para todos aqueles que vão assistindo a uma guerra em direto. Senti necessidade de contrariar o mundo criando exatamente o contrário do que se passa. Criando uma utopia no sentido como Thomas Moore cunhou o termo, um mundo em equilíbrio que é uma coisa que não está a acontecer agora.

Descreve-nos este cenário utópico que criou em Kiev?

É uma vista de Kiev, onde eu nunca estive. O bairro colorido chama-se “Confort Town” e existe. Foi construído por um estúdio de arquitetura como reabilitação de uma área industrial. Transformaram esse bairro industrial num bairro moderno residencial e os princípios são bonitos, porque também estão ligados à utopia. A ideia era ter "custos contidos e habitantes felizes", diz este conjunto de arquitetos. De facto, essa construção colorida depois dá origem à base da Catedral de Santa Sofia que, como sabemos, poderá estar ameaçada. É património de todos, da Humanidade e mais do que isso, é um símbolo. Nós somos seres de símbolos e de lugares, neste caso Nações, mas também somos seres simbólicos e os símbolos são as âncoras necessárias do nosso sistema emocional.

Foi a emoção que conduziu este seu desenho?

Entendendo que esta está a ser uma guerra extremamente emocional, o que torna o perigo real muito próximo do perigo virtual. Há aqui muitas ambiguidades. O que me fez exteriorizar esta espécie de ansiedade foi de facto a construção de uma imagem que seja o contrário do ódio, do que estamos a assistir, e que prepusesse, tal como Nietzche dizia, "resta-nos a arte para não morrermos de verdade", ou mesmo o gato da Alice, "a imaginação é a única arma contra a realidade". É um bocadinho um manifesto feliz, uma proposta de algo que é positivo, e não negativo como as imagens às quais estamos infelizmente a assistir.

Quis com este desenho fazer parte desta vaga de ajuda à Ucrânia.

Sim. A ideia foi essa, embora a pessoa tente a nível individual ajudar, acaba por não ter capacidade de dar uma ajuda tão generosa como gostaria. Esta ideia de me associar a outras empresas que decidiram colaborar neste projeto é precisamente isso. É angariar alguns fundos que possam ser destinados às vítimas da guerra, aos refugiados. Já se fala em mais de dois milhões e provavelmente o número irá aumentar. É realmente uma coisa muito dramática e dura de se assistir.

Com quem conseguiu juntar esforços para reunir essa ajuda?

A Lumen do Porto, que é uma empresa com a qual já trabalho há uma série de anos, vai me fazer uma série de reproduções. São uns "prints" especiais, numerados e assinados. A Spiralpack ofereceu-se para me oferecer as embalagens e a P55, um site de venda de obras de arte online, também se ofereceu para comercializar. Foi bonito. Tentei no início fazer isto quase sozinha, depois houve pessoas que me ligaram a oferecer os recursos que tinham. É bonito quando as pessoas se unem no mesmo objetivo. Claro que a contribuição nunca é o que nós queremos, porque não existe contribuição justa para quem é obrigado a fugir de casa. Nada é suficiente, mas é uma tentativa de fazer o que se pode dentro de uma certa humildade.

A Ana Aragão teve recentemente uma exposição no Museu do Oriente, em Lisboa motivada pela pandemia que a impediu de viajar para o Japão. Nela criou imagens imaginárias daquilo que não chegou a ver. Gosta de sonhar esses locais imaginados?

Foi uma exposição que me deu especial gozo fazer. Acho que cheguei ao final e fiquei surpreendida com o resultado pelo facto de, na minha opinião, ser exatamente o resultado de dois anos de pandemia complicados para todos, pelo menos emocionalmente e em termos de logística, mas o resultado não refletia isso. Liga-se antes muito à imaginação, a um mundo de sonho, de animação japonesa. Tinha um lado onírico muito mais presente, do que outras coisas mais negativas que terei feito no passado.

É formada em arquitetura, mas não exerce. Contudo, nos seus desenhos há muito de arquitetura, há edifícios, cidades imaginadas. Nunca deixa de ser arquiteta?

De facto, a arquiteta que eu poderia ter sido, está presente. Os desenhos permitem-me fugir um pouco ao mundo real que às vezes é demasiado avassalador para lidar, como tem sido nos últimos tempos.

Por aquilo que vai dizendo e o que está nos seus trabalhos, percebe-se que gosta de ler. Na sua página de Facebook cita Sophia de Mello Breyner Andresen que escreveu “A paz sem vencedor e sem vencidos”, e usa também as palavras de Agustina que dizia: “O orgulho da guerra é a morte. Quando começa, tem de crescer até que o coração do homem se sature”. A leitura é uma fonte de inspiração para os seus trabalhos?

Sem dúvida, embora não leia tanto quando gostaria. Não consigo ler ao mesmo tempo que desenho, o que é uma pena! As palavras, a literatura, os livros, o mundo dos livros acho que são a segunda coisa que mais gosto. As palavras são ambíguas, não nos dão uma direção. Permitem-nos abrir direções, e isso acaba por ser muito rico para alguém que está mentalmente à procura de ideias que é o meu caso. Estou sempre à procura de ideias! A frase que mais digo por dia é "tive uma ideia! Tive uma ideia!" (risos). As palavras permitem-nos isso, porque abrem, não fecham. A interpretação é infinita.

As palavras de Sophia são magnificas. É uma das minhas leituras de cabeceira. A ideia de "uma guerra sem vencedores e vencidos" é uma imagem lindíssima e impossível. Esta frase é também uma utopia. Pelo menos na literatura, nos desenhos, ou noutras manifestações artísticas podemos propor aquilo que não existe. É uma espécie de salvação, porque eventualmente há muitas outras coisas que não se salvam, como o património, e sobretudo as pessoas. É uma espécie de procura interior de uma certa paz num mundo aparentemente desequilibrado.

Há sempre duas versões da mesma história. E essa ideia está neste conflito. Mas acho que se tivermos o coração são, ainda conseguimos ver o que está bem e onde está a maldade. Espero que isso ainda possa existir.

Em muitos dos seus desenhos não aparecem pessoas, mas no seu olhar têm vidas dentro?

Há a ideia da pertença, de que somos pessoas de lugares, precisamos de âncoras emocionais e físicas, precisamos de dizer "eu sou dali". Há muitos anos que não somos nómadas, somos sedentários no coração. A ideia de não aparecerem pessoas foi acontecendo. Eu tenho uma teoria. As pessoas abandonaram temporariamente as construções e depois vão voltar. As minhas estruturas são sempre habitadas, porque vemos sempre panos nas varandas, ares condicionados, elementos da vida quotidiana que aparecem nas fachadas. Mas não vemos as pessoas. É uma espécie de mistério, tanto para o observador como para mim própria que não sei quem habita aqueles edifícios que faço. Mas são evidentemente habitados e são lares ou casas de pessoas.

Como é o seu atelier?

O meu atelier é um espaço muito luminoso, o que é ótimo, e tem muito chão! Eu desenho muitas vezes deitada sobre o papel no chão, quando são trabalhos de grande escala e mesmo quando são pequenos, gosto de trabalhar no chão. Preciso de uma grande superfície à minha volta para pôr uns livros, canetas, referências. Tenho tudo à minha volta. Eu organizo-me no chão, assim como se fosse uma criança. Depois costuma ser um lugar relativamente silencioso e calmo. É um refúgio. Não é um sítio frequentado por muitas outras pessoas, porque preciso de muito silêncio, calma e muito tempo. É o tempo que me resolve os desenhos. É o sítio onde eu conseguiria passar horas, dias e dias a desenhar seguidos se não tivesse que comer, dormir e cuidar da família. É uma espécie de transe. Saio desta realidade.

Como gosta de ser identificada? Arquiteta, ilustradora, desenhadora?

Arquiteta decididamente não. Embora às vezes brinque e diga que sou arquiteta de papel. Há uma tradição grande de arquitetos que não fazendo, ou não tendo oportunidade de fazer projetos construídos se dedicaram a fazer projetos de papel. Muitos deles são os meus ídolos e referências. Brinco que sou arquiteta de papel, mas arquiteta nunca! Sou muito mais desenhadora, porque é o que eu acabo por desenvolver. São desenhos. Ando sempre nesta procura de como me hei de chamar, mas prefiro sempre desenhadora porque é mais certeiro e justo.

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