Ator Chico Diaz diz que a cultura no Brasil foi “silenciada” e teme violência nas presidenciais

04 mar, 2022 - 22:00 • Maria João Costa

O ator brasileiro Chico Diaz protagoniza a peça “King Lear” que a Companhia João Garcia Miguel apresenta no Teatro Ibérico, em Lisboa, até 13 de março. À Renascença o ator fala da atualidade de Shakespeare, denuncia um “retrocesso civilizacional” que o Brasil de Bolsonaro vive, mas admite regressar ao país se a guerra se agravar na Europa.

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Chico Diaz vive há quase quatro anos em Portugal e o ator brasileiro considera que o seu país foi alvo de um “golpe”.

Em entrevista à Renascença, lamenta o fraco investimento em educação no Brasil, fala no “abandono total da população e das questões fundamentais como saúde, e a possibilidade de desenhar um futuro”.

Numa altura em que está em palco no Teatro Ibérico, em Lisboa, a protagonizar a peça “King Lear” de William Shakespeare, Chico Diaz – casado com uma das filhas do cantor Chico Buarque – denuncia um “retrocesso institucional e civilizacional” no Brasil, onde a cultura “foi silenciada”. Sobre as presidenciais de outubro diz temer que não sejam “justas e leais”.

Questionado sobre a guerra que está a afetar a Europa, Chico Diaz admite que poderá ter de regressar ao Brasil, “um país de alta potencialidade humana e agora reduzido a uma coisa muito violenta”, refere o artista. Bem conhecido dos portugueses pelas telenovelas, o ator agradece o “carinho” e admite que é “reconhecido em qualquer esquina de Lisboa”.

Investiu-se muito pouco em educação. Então é muito fácil controlar aquele país. O que acontece lá é um abandono total da grande massa da população e das questões fundamentais como saúde, hospitais, educação, possibilidade de se desenhar um futuro.

Este “King Lear” é um clássico de William Shakespeare. Desempenha a personagem do Rei Lear. Como foi trabalhar esta personagem tão impactante?

O King Lear é um tratado sobre a velhice e o encontro de um ser instaurado, qualificado, quase divino, um rei daquela época. À medida que se aproxima da idade adulta, ao transferir o seu poder, ele experimenta de forma muito pesada a questão de ser mortal e perder os seus poderes, reconhecimento e regalias. Num gesto de arrogância e prepotência, por causa dos erros que ele faz no início da peça, ele faz uma curva de muita distância do que ele era. Começa a experimentar na sua vida questões sociais e humanas que nunca experimentaria se continuasse no posto de rei. É um empurrão divino para ele poder conhecer, nos seus últimos dias de vida, a real existência humana.

O João Garcia Miguel diz que regressa a este Rei Lear com “três companheiros de viagem, três atores que de novo incentivam o processo de reflexão acerca e sobre para que importa e para que serve o teatro nos dias de hoje”. Como se responde a isto nesta peça?

É uma curva dramática, muito difícil e acho que o João Garcia Miguel o traz para um contexto atual. A discussão torna-se mais fértil. O teatro passa a cumprir a sua função de ferramenta de reflexão e autoconhecimento.

E que ferramenta é essa a do teatro hoje?

O teatro sempre foi e será uma ferramenta de reflexão nos dois sentidos. De refletir e ver-se, considerar-se, reconhecer-se. A que ponto nós humanos chegamos? Vemo-nos ao espelho, reconhecemo-nos como irmãos e como coletivo. O teatro é isso. É sairmos da nossa normalidade e, noutro ponto de vista, conseguirmos ver onde chegamos, por que coisas estamos a passar. Que conflitos estamos passando?

Essa interrogação hoje ganhou renovado sentido com a guerra na Europa.

Hoje em dia a Humanidade está passando por questões muito importantes de serem pensadas. Não é só o vírus, o consumismo, a guerra, o individualismo, a expansão sem contenções de uma economia e capitalismo louco. Tudo isso o teatro pode não resolver, mas faz com que nós humanos, não só compartilhemos a experiência, mas procuremos caminhos para lidar com elas. Não sei se o teatro pode oferecer soluções, mas sem dúvida levanta questões para sermos mais irmãos e mais permeáveis ao diálogo e questionamento. Acho que o teatro e a arte em geral são uma ferramenta fundamental para sabermos quem somos.

Que força têm hoje as palavras de Shakespeare, neste mundo em que vemos a disputa pela terra, a ocupação de território, como está a acontecer na Ucrânia? O Rei Lear divide as terras pelos filhos. Mas é uma peça que levanta a questão da inveja. Que paralelismo podemos fazer com o que está a acontecer hoje?

Acho que já respondeu a uma boa parte da questão de forma inteligente. Acho que a questão das terras, do governo, a arrogância, a cegueira do poder, está na própria questão dos novos tempos cristalizados aqui nas filhas, e em como os novos tempos negam de forma rápida e cabal os tempos velhos.

Porque não se aprende com o passado, com os idosos? Essa questão de que o moderno e o jovem têm o argumento mais inteligente, deve ser questionado. A preocupação dos governos com a grande miséria, desabrigo, e grande quantidade de supérfluos, tudo isso está no drama do Lear com palavras muito bem colocadas.

O Shakespeare tem uma capacidade de síntese no que era humano. Acho que quem for ver vai ter muito material para uma reflexão e um paralelismo com os dias que correm. Acho muito interessante o vagar do Lear depois da queda, o vagar pela tempestade metafórica, do espírito dele ao ser negado pelas filhas. É uma questão da ingratidão filial também. Porque é que os pais devem ser jogados no lixo? Existem coisas, não só no âmbito do poder estatal, mas também na esfera pessoal e humana. O Rei Lear na sua queda se humaniza. Ele começa a enxergar o próximo com mais proximidade, reconhecimento e cordialidade.

Há um retrocesso institucional e civilizacional no Brasil.

Chico Diaz tem vivido nesta travessia atlântica entre Portugal e Brasil. O que é que Portugal tem significado para si, nestes últimos tempos? Um porto de abrigo, um lugar de resistência?

Eu questiono um pouco a palavra resistência. Tudo o que já passamos no Brasil banalizou um pouco essa palavra. Confesso que não me sinto mais resistente. Mas eu tenho muita paixão pela língua portuguesa, pela lusofonia. Nesses últimos 4 anos tive oportunidade de fazer uma peça com o Teatro do Bairro sobre o Drummond, fiz ‘O Ano da Morte de Ricardo Reis’ com o João Botelho, depois fiz o Vermelho Monnet sobre pintura e agora tenho essa enorme oportunidade e privilégio de viver o Lear com um diretor português.

Para mim, é um abrigo e um trampolim. É um lugar de muita concentração, aprendizagem, não só artística, mas de uma civilidade e paz possível. É um horizonte mais pleno, confiável e luminoso. Portugal tem me acolhido não só profissionalmente, mas humanamente, na forma como divide o seu pequeno espaço geográfico, com o enorme espaço amoroso e afetivo para quem chega. Tenho tido muita sorte e sou muito agradecido às oportunidades que me têm dado. Tem-me dado oportunidade de concretizar sonhos artísticos, não só no teatro, mas no cinema, na pintura. Tem sido muito acolhedor para mim.

Como olha para o seu país, hoje, muito afetado tragicamente com a pandemia, liderado por um presidente como Bolsonaro?

Vejo com muita tristeza, mas não localizo essa violência e manipulação geopolítica só no Brasil. Estou vendo isso no mundo inteiro. É como se o espaço estivesse aos poucos ficando curto e exíguo para uma Humanidade tão soberba e tão plena como a nossa. Acho que o Brasil foi fruto de uma operação e um "golpe" monitorizado pelas potências interessadas naquele país tão grande. Imagina as riquezas, os rios, as águas, os minerais, a agricultura, a própria economia. Um país daquele tamanho! Então, é fruto disso. É um povo com muito pouca educação. Investiu-se muito pouco em educação. Então é muito fácil controlar aquele país. O que acontece lá é um abandono total da grande massa da população e das questões fundamentais como saúde, hospitais, educação, possibilidade de se desenhar um futuro. Mas é fruto de forças maiores, os brasileiros não têm muita culpa por terem sido manipulados. Isso está a acontecer também ali na fronteira com essa guerra. Tem acontecido na África também nos últimos 300 anos, mas não de forma tão violenta.

Mas há um retrocesso no Brasil? Vai levar muitos anos a recuperar, na sua opinião?

Há um retrocesso institucional e civilizacional com certeza. Tudo o que foi construído no âmbito de acolher a grande maioria foi quebrado e de forma planeada. As inteligências foram deslocadas, perseguidas, os lugar-chave para o desenvolvimento e autoconhecimento de um país foram todos travados e colocadas pessoas medíocres. Há um planeamento para ocupar aquele país com uma mentalidade bem curta. Há que se quebrar a indústria, a cultura, a ciência, a academia, tudo, para que aquilo seja mais facilmente manipulado. É muito triste para quem construiu e cresceu lá como eu, num país que era visto como país do futuro. Era um país de alta potencialidade humana e agora está reduzido a uma coisa muito violenta.

Que efeitos está a ter este tipo de liderança Bolsonaro na cultura, ela foi silenciada?

A cultura foi silenciada, quebrada, trocada e sabotada. Tiraram os editais, as distribuições, tiraram a inteligência e o raciocínio e o planeamento. Tiraram os prémios, a visão estratégica da cultura que é fazer com que um povo se reconheça e goste de si próprio e que tenha confiança no futuro. Tudo isso foi tirado à martelada. Como se nos tivessem roubado uma possibilidade de futuro. Isso é muito triste não só para as pessoas da minha idade, mas fundamentalmente para os jovens. Um jovem que não tem uma opção de futuro ou sonho, de construir um caminho é muito próximo da barbárie. Fico muito triste.

Que expetativa tem para as eleições presidenciais de outubro deste ano?

Eu sou um pessimista. Vejo que a violência tomou o lugar da razão. A violência não pode ter razão. A razão perdeu muita força. É algo que me assusta. Eles são muito fortes, muito maus, são muito frios. Então estou com muita esperança de que a torcida do Lula [da Silva] volte, desde sempre. Mas acho que as armas que eles usam são muito baixas e eles são muito violentos. Não vai ser fácil abrirem mão do que conquistaram. A questão de ser institucional, de ser republicano, de haver confiança no voto, isso tudo num país como o Brasil é difícil você confiar que corra na normalidade. Então, apesar de querer muito que os novos ventos ocupem, eu temo a violência, a desestabilização propositada, temo que o processo não seja justo, nem liso, nem leal.

Eu parei de fazer televisão já há alguns anos, mas vejo como foram fortes os trabalhos e como eu estive presente na vida de muita gente! Isso também faz parte da minha paisagem portuguesa, que me enche de alegria. Eu não sabia que nós eramos tão queridos enquanto personagem de novela.

Este momento da Europa, este cheiro da guerra que se intensificou pode fazê-lo voltar mais cedo ao Brasil?

Sem dúvida. Estamos com muito pouco opção se a vida correr selvagem, da forma como se apresenta. Acho que haverá um ponto de curva na guerra na Europa, porque ninguém quer o fim da civilização. Ninguém quer essa quantidade de desastres que uma guerra mundial ou atómica significaria para o planeta. Acho que em breve, a mesa das negociações será realmente o ponto de discussão. Acho que vai haver um acordo ou vão ser respeitados os acordos que já havia. Tudo é uma questão de acordo. A civilização é movida por tratados e palavras e não pela força. Acho que não será necessário voltar correndo para o Brasil, tenho essa esperança, mas se for o caso, sem dúvida.

Como são os seus dias em Portugal? As pessoas reconhecem-no na rua das telenovelas?

Muito, muito carinho. Muito acolhedores. Eu às vezes não sinto a força que a minha imagem tem. Não sou bem eu, é a minha imagem. Ela é que viaja! Sou reconhecido em qualquer canto, nas esquinas de Lisboa. O que me dá muita alegria. É um carinho repentino. Mas também noto que é uma questão meio passada. Eu parei de fazer televisão já há alguns anos, mas vejo como foram fortes os trabalhos e como eu estive presente na vida de muita gente! Isso também faz parte da minha paisagem portuguesa, que me enche de alegria. Eu não sabia que nós eramos tão queridos enquanto personagem de novela.

Para si, acima de tudo para si está a língua portuguesa?

Sim, o próprio Lear, uma das minhas dificuldades e que mais me deu prazer trabalhar é isso. Como tornar natural uma gramática que não é a minha? Não é só a dificuldade do próprio Shakespeare, mas a dificuldade como o português de Portugal constrói o Shakespeare, então eu faço um duplo esforço de me aproximar e descodificar a estrutura gramatical portuguesa e daí trazer para mim, e tornar natural para o Chico, o Shakespeare através de uma gramática portuguesa que não é a minha originalmente. Isso exige um trabalho de meses, de entendimento das diferentes paisagens oferecidas pelo Shakespeare de uma forma mais profunda. Tem sido um trabalho muito interessante, lapidar o português de Portugal e a gramática portuguesa.

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