Fotógrafo António Homem Cardoso: “O retrato é um mergulho no coração do fotografado”

14 jan, 2022 - 18:45 • Maria João Costa

Aos 77 anos, António Homem Cardoso reuniu em livro 500 retratos. Diz que é uma espécie de “legado” das pessoas com quem conviveu. Do amor por Amália, à repulsa de fotografar Donald Trump, o fotógrafo revela quais os segredos de um bom retrato.

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Diz que o retrato exige uma “entrega” e revela que um "fotógrafo sério, não fotografa pessoas de que não gosta", e admite que sentiu “repulsa” ao apontar a câmara a Donald Trump. António Homem Cardoso nasceu em São Pedro do Sul há 77 anos e acaba de editar pela By The Book, o livro “500 Retratos da Minha Vida”.

Em entrevista à Renascença, o fotógrafo explica que ganhou "o dinheiro que precisava para viver na publicidade", fez capas de discos para os Madredeus, Jorge Palma ou Rui Velos, mas é no retrato que encontra “o romantismo”.

“O retrato é um mergulho no coração do fotografado”, explica e diz que nesta livro junta “uma espécie de um rebanho sagrado” que criou ao longo da vida. Este autodidata, admite que nunca teve “coragem” de ser fotojornalista e revela quais os segredos para fazer um bom retrato.

Não hesita em dizer que gosta de ser fotografado e que é um “bom modelo”. O seu estúdio guarda memórias da Exposição do Mundo Português e de jornais clandestinos do Partido Comunista.

Este livro “António Homem Cardoso: 500 Retratos da minha vida” reúne a história de uma carreira, de uma vida?

É um ajuste de contas. Tem centenas de pessoas. Eu com os retratos poderia fazer três ou quatro livros. Fotografei meio mundo! Neste escolhemos alguns bons retratos, é uma espécie de legado do que foram as pessoas com quem convivi, com quem sonhei coisas melhores. Fiz algumas fotografias por admiração, mas a grande maioria foram retratos encomendados. Foram-me pedidos por revistas portuguesas ou internacionais, ou foram as próprias pessoas como é o caso dos políticos, atores, escritores, de artistas que aí estão. Fui capista de discos durante muito tempo, dos Madredeus, do Rui Veloso, dos Xutos e Pontapés, Jorge Palma, eu sei lá...

Os retratos deste livro juntos acabam por ser também um retrato de um país político e cultural?

É, e também de um país manhoso que Portugal é um bocadinho! O que eu quis aqui foi de certa maneira fazer um testamento enquanto aí sei o que quero.

Que testamento é esse? Como é que se deixa essa herança em imagens?

Eu tenho mais de 100 livros publicados, mas este digamos que é o mais íntimo. O retrato oferece sempre uma pequena história e, em alguns, uma grande história. O retrato permite uma intimidade porque é o resultado de uma certa conivência. O retrato exige uma dádiva, uma entrega, um despir para podermos ir lá dentro, para a pessoa se dar inteiramente. Há casos que é um namoro de minutos ou segundos. Pode parecer quase uma relação sexual, sem sexo. Um despir absoluto. É preciso haver uma grande empatia entre as pessoas. Penso que o fotógrafo sério, não fotografa pessoas de que não gosta. Eu sempre fiz isso, se bem que a maioria dos retratos foram para eu ganhar a minha vida, mas sempre fotografei só as pessoas de que eu gostava, por quem tinha alguma consideração, ou a quem reconhecia mérito. Nunca vendi a alma ao Diabo, no que diz respeito aos retratos.

Imagino que nem sempre se consegue chegar a esse grau de intimidade com todos os retratados. Tem boas e más experiências?

Há pessoas com quem até tive uma certa repulsa. Foi o caso de Donald Trump. Encafuou-me no meio de exemplos que pareciam quase anedóticos, como foram almofadas com dois metros com um grande T e uma coroa de conde! Depois houve pessoas que me encheram o coração de ternura como os Grimaldi. Foram das pessoas mais tristes que fotografei na minha vida, mas de uma tristeza com uma dignidade absolutamente fabulosa. A Amália, que amei e amo perdidamente ainda. O fotógrafo dela era o meu querido amigo Augusto Cabrita que foi a pessoa que mais amei na vida, fora da minha família. E só depois do Augusto morrer é que eu pude moralmente fotografar a Amália. Depois tive uma relação privilegiada com a Amália e combinamos fazer esse retrato.

O que distingue a arte do retrato de outros trabalhos fotográficos como os que fez toda a vida?

A paisagem também tem um certo namorico. Eu ganhei o dinheiro que precisava para viver na publicidade. Era muito bem paga e não havia este romantismo que tem o retrato e a paisagem. É o que é. Um automóvel, o avião, não envolve os negócios da alma. Esses são mais para o retrato. O retrato é um mergulho no coração do fotografado e, muitas vezes também um mergulho no coração do fotógrafo. Lembro por exemplo que alguns dos retratos do livro fixaram amizades para o resto da vida, como foi o caso da Maria Elisa, do Gigi Reino e de outras pessoas que já me escreveram a agradecer o retrato e a dizer que tinham visto qualquer coisa de bom ou mais interessante neles do que aquilo que tinham visto ao espelho. Em alguns casos também podem ser os elogios sociais de que a vida é fértil!

Alguma vez sai de casa sem a máquina fotográfica?

Quase sempre! Salvo muito recentemente, desde que sou embaixador da Fuji. Lançaram uma máquina pequenina, é um avatar magnifico das míticas Leica. Aí eu comecei a fazer fotografias de rua. Mas o resto da minha vida não foi passado com fotografias de rua, nem andava com a máquina. Usei muito a rua, cenas de rua, para depois reproduzir em estúdio. Por exemplo, em publicidade isso acontece muito. Mas não ando com a máquina à espera que aconteça qualquer coisa. Fiz isso em menino, quando estava numa situação de afirmação. Andava com a máquina na rua, fazia fotografias que ia vender ao Diário de Notícias e ao Diário Popular, de acontecimentos diversos, atropelamentos, grandes cheias, mas isso vem do tempo do pão para a bucha. Já não é no tempo de uma vida económica estabilizada.

Foram muito diferentes esses tempos de fotografar para ganhar dinheiro e do fotojornalismo?

Eu nunca fui bom fotojornalista e isso foi uma sorte para mim! Eu não tinha coragem. Houve um dia em que houve um acidente grave. Estava tudo bem, mas faltava uma menina e quando os bombeiros levantaram o carro, o que restava da menina estava lá por baixo. Não consegui fotografar. Não tenho coração para repórter. Não tinha, percebi nesse dia! Já tinha tido sinais num dia em que fotografei um acidente em Santa Apolónia. Depois conheci o filho da vítima, do atropelado e o filho disse-me que de facto o que lhe tinha custado mais na morte do pai foi ver a fotografia dele no jornal. Eu aí, resolvi. O fotojornalismo tinha uma coisa que me irritava muito, era eu não poder gritar "Ó seu palerma, vire-se para aqui, ou arranje a camisa, ou tire o cabelo dos olhos, qualquer coisa assim!". Percebi isso muito novo, precisava de mexer nas pessoas, para lhes extrair intimidade suficiente para o retrato.

Um dos seus trabalhos de maior visibilidade foi o livro "Cozinha Portuguesa" da Maria de Lourdes Modesto. É um livro que ainda hoje marca. Continua a ser uma referência da gastronomia portuguesa. Como foi esse trabalho?

Continua a ser, sim. Eu quis que esse livro servisse para futuros fotógrafos, para aprendizes. Na "Cozinha Tradicional Portuguesa" foi a primeira vez que se fotografou culinária daquela maneira, em voo picado sobre o prato. Havia aquelas revistas tradicionais, a Banquete, em que estava o prato, o copo, a garrafa de vinho, a toalha de renda e depois já não se sabia o que estava no prato, se era peixe, se era carne, se era frito ou guisado. E eu aí inovei muito. Como inovei muito também nas fotografias de interior que se faziam em Portugal.

Esse livro tem um retrato de um país que já não existe?

Já não existe! Foi uma pena que a parte boa desse país não se tivesse salvo. Eu fui várias vezes ao Japão, e foi o único país onde eu vi que a modernidade não matava a tradição e a tradição fala muito bem com a modernidade, bebem copos juntos, festejam juntos. Aqui normalmente, para se ter uma coisa, mata-se a outra. Para se gostar do novo, não é preciso deixar de gostar do velho, quando ele tem bom aspeto.

O que é que lhe falta fotografar?

Não sei! Não falta nada e falta-me tudo! Eu sou contra a especialização e sou um mau exemplo para a minha profissão. Não tenho curso nenhum, nunca li livros de fotografia, nunca me interessei muito pela parte técnica, exceto aquela que eu percebia. Tenho algum espírito mecânico e percebi perfeitamente como é que uma máquina funcionava e tudo o que era a parte técnica. Percebi rapidamente que o diafragma muito aberto tinha pouco foco, muito fechado tinha muito foco, essas coisas todas. Mas nunca me interessou outra coisa, senão traduzir imagens literárias em imagens fotográficas.

Temos neste livro de retratos personalidades muito diferentes. Há alguns que recorde em particular?

Tenho muitos da família real portuguesa, tudo feito com uma grande simplicidade. Aquilo é mais ou menos como se a família fosse com um amigo que também tira retratos. Não há produções, é tudo visto de uma maneira extremamente carinhosa dos dois lados. Há fotografias de mulheres apaixonantes. Lembro-me por exemplo, da Lia Gama. É uma fotografia com quarenta e poucos anos que está aí. A Yolanda, é uma espécie de musa. Nestes quarenta anos fotografei a Yolanda desde menina, de jovem modelo, até mulher madura que está hoje. A fotografia que está no livro é quarenta anos depois das primeiras. A Alexandra Lencastre é um espanto da fotogenia e é uma mulher extraordinariamente generosa. A Amália, claro, mas a Amália é um caso à parte na minha vida, até pela intimidade que tínhamos. Sei lá! A Eunice que eu amo.

São pessoas que o marcaram?

Esta coisa dos retratos é uma espécie de um rebanho sagrado que fiz na vida e agora juntei tudo o que andava tresmalhado neste livro. Claro que o grande trabalho desse livro, foi da minha mulher. Dela e do meu assistente de estúdio, o Hugo. Eles andaram à procura das coisas e a digitalizar. Uma trabalheira toda de fazer um livro. Se calhar, sem esta ajuda não tinha feito o livro.

Acha que há ainda muitos retratos entre os protagonistas de hoje que poderão vir a integrar estes seus retratos?

Há uma coisa que é muito interessante no retrato. Tenho grandes amigos que não estão retratados, pessoas de grande interesse social e científico. Porquê? Porque eles não me pediram um retrato. Não é por questões de dinheiro. Uma pessoa que quer que determinado fotógrafo o fotografe, é meio caminho andado para ele fazer a parte dele. Agora se eu chegar ao pé de uma pessoa e lhe disser "eu gostava muito de o fotografar!", e ele disser "eu não gosto de ser fotografado!"... “- tem de fazer esse jeito” ....está tudo estragado! Nunca me aconteceu. Nunca pedi a ninguém para ser fotografado, sem ter a certeza absoluta de que a ideia era aceite com alegria e ternura. Isso é uma das coisas fundamentais, o haver desejo dos dois lados. Para dançar o tango são precisas duas pessoas, para fazer amor são precisas duas pessoas, para fazer retratos também são precisas duas pessoas! Acho até que o justo era dividir o mérito de um retrato pelos dois.

O António gosta de ser fotografado?

Gosto muito. Tenho uma boa coleção de retratos. Há dois anos, pelos meus 75 anos, os fotógrafos ofereceram-me um livro em que cada um tinha um retrato meu. Só me apercebi para que é que eles queriam o retrato, depois de me aparecerem aqui com o livro. Gosto de ser fotografado e sou bom modelo!

Como é que se faz um bom modelo?

Foi uma coisa que também me preocupei em ensinar às pessoas. Tinha que saber os truques todos dos fotografados para os ensinar. Aconteceu-me uma ou duas vezes, uma delas com um militar de altíssima patente que eu no dia anterior tinha estado no gabinete dele, parecia-me um homem de ferro, de granito, de uma força sobrenatural e no outro dia aqui, no estúdio, com as luzes acesas e o cenário montado, parecia uma criança perdida da mãe! Fiz isso várias vezes com várias pessoas. Ligava um disparador à máquina, pedia à pessoa para ir para o lugar do fotógrafo, tinha tudo preparado, ele só carregava no botão e eu, era o modelo. Depois ele via e eu dizia que também vai ficar bem se fizer aquilo que eu fiz, se pensar no que eu pensei! "Em que é que pensou?" perguntavam, e eu dizia pensei na primeira vez que beijei a primeira namorada. Há truques! Um deles é quando a pessoa entra no estúdio estar a dar a música de eleição deles. Acho que não é preciso ir a tanto. Basta o olhar. Se o olhar carinhoso for retribuído, a coisa promete.

Como é o seu estúdio?

É um sítio com alguma história que fica naquilo a que chamaria "as hortas do Eça". Está num jardim, nas traseiras de um prédio que dava, até aos anos 20 ou 30 do século XX, para a entrada da criadagem e das caroças. Era pela rua Borges Carneiro. E aqui, no ano de 1938 fez-se um barracão para o grande Canto da Maia fazer as esculturas da Exposição do Mundo Português. Essa estrutura evoluiu para estúdio de fotografia e artes gráficas. Fizeram-se aqui durante muitos anos jornais do Partido Comunista e outros. Infelizmente, não guardaram memórias disso. Era tão clandestino que não dava direito a fotografia. Depois eu peguei nesse espaço e alterei-o para ser um estúdio de fotografia. Tirei-lhe a claraboia. Agora o que nós precisamos em estúdio é que não haja a luz do dia a interferir na precisão milimétrica com que iluminamos as coisas e os rostos. E cá continuo. Estou no centro, do centro, da Lapa. Estou no meio de um jardim.

Como é que vê hoje a fotografia? Hoje banalizou-se a fotografia com os telemóveis. Que lugar ocupa hoje a fotografia?

A mim já não me preocupa nada. A vida está feita, agora é meter o passado em pastas para se houver algum interesse na posterioridade, terem mais facilidade em encontrar as coisas. Para a profissão, acho que a fotografia se restringiu uma especialidade. Foi coisa que eu nunca quis. Eu nunca tive um emprego na minha vida, nem nunca tive segurança nenhuma, nunca tive partido, clube. Sou um pária, estou exilado. Portugal é o meu reino e é o meu exilio. O país não está feito para mim. Eu não posso ver televisão porque o futebol persegue-me. Ligo o rádio e vem o futebol. Ligo a televisão e vem futebol ou telenovela, ou política baixa. É uma grande chatice. A profissão também me serviu para eu recriar o meu mundo de algum modo. Fazer fotografia também me dava para visitar aquilo que eu gostava. Agora, daqui para a frente, o fotógrafo, o bate chapas, que fazia reproduções “focadinhas” e “direitinhas”, isso acabou! Ou há uma imaginação poderosíssima ou toda a gente é fotógrafo.

Num tempo em que se vendem poucos livros, editar este livro de retratos foi um risco?

A editora By the Book arriscou-se a fazer um livro caríssimo e a vendê-lo barato, que era o nosso ideal. A By the Book vai possivelmente fazer outra edição. Há muita coisa parecida entre os livros e os filhos. Nunca se sabe o que dão. Tenho livros que fiz convencido que eram um grande êxito e venderam-se muito poucos, tenho livros que fiz, como a “Cozinha Tradicional Portuguesa". O Augusto Cabrita também não acreditava muito, estávamos numa época, eu por imitação dele, em que comida para nós era o que saia da panela da tasca acompanhada de um grande tinto e o livro afinal é o livro mais vendido em Portugal, de sempre!

Acha que este pode ter o mesmo sucesso que a “Cozinha Tradicional Portuguesa”?

Pode ser que este livro de fotografia também tenha um grande futuro. A maioria dos meus outros livros deram-me uma consolação muito grande. Só comecei a fazer livros em 1980 quando já estava "benzinho" das lutas a que me propus que foram combater a ignorância e a pobreza. Já não espero muito nem dos livros, nem da minha vida. Nunca pensei chegar a esta idade. Lembro-me de quando os meus irmãos morreram muito novos, a minha grande expetativa era de chegar aos 50, depois aos 60, depois aos 70. Agora estou a caminho dos 80 o que me torna uma raridade nas gerações da minha família.

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