Centenário de Amália Rodrigues. Novos discos para entender a "vedeta internacional sem manias"

23 jul, 2020 - 06:20 • Maria João Costa

Se fosse viva, Amália Rodrigues faria esta quinta-feira 100 anos. A data é assinalada com o lançamento de uma caixa com cinco CD, quatro deles com gravações inéditas feitas em França. Até ao final do ano, haverá mais dois discos com inéditos de Amália.

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Vêm de França, do Arquivo Nacional do Audiovisual as gravações que agora são editadas numa caixa com cinco CD, quatro dos quais com inéditos da fadista Amália Rodrigues. O lançamento acontece esta quinta-feira, no preciso dia em que Amália faria 100 anos. As celebrações do seu centenário, um pouco afetadas pela pandemia, têm estado a decorrer e vão, até ao final do ano, dar a conhecer mais um conjunto de inéditos.

A caixa "Amália em Paris", agora lançada pela Valentim de Carvalho, revela 20 anos da carreira da fadista e as suas atuações em França.

Os quatro CD incluem gravações realizadas entre 1957 e 1965, de atuações ao vivo e em estúdio na Rádio France, e dois espetáculos no Olympia, em 1967 e em 1975, e ainda uma atuação para emigrantes portugueses, em 1964. Mas ouvimos nesta compilação, um CD com o já conhecido espetáculo de Amália no famoso Olympia, em 1956, que surge agora remasterizado a partir das bobinas originais.

Além das gravações, a caixa comemorativa é também composta por um livro de 94 páginas com fotografias inéditas, uma cronologia das atuações de Amália na capital francesa, e um texto do historiador Jorge Muchagato.

Em entrevista ao programa “Ensaio Geral” da Renascença, Frederico Santiago, responsável pelo tratamento e edição da obra integral de Amália na Valentim de Carvalho, considera que “é muito bom disponibilizar este espólio para Portugal”. O musicólogo diz que esta caixa de CD agora editada “mostra sobretudo, além do inédito, a importância que a Amália teve no mundo e que nós nunca nos apercebemos completamente”.

Frederico Santiago, que se apaixonou pela voz de Amália desde os 15 anos, explica que estas edições mostram “o auge vocal e de maior esplendor” da fadista.

“A Amália cantou em Paris até 1992, quase até ao fim da carreira. Sobretudo o que Paris percebeu logo nela, em 1956 quando se estreou, foi essa novidade que ela levou”, afirma este responsável pela edição da obra integral de Amália.


“Uma mulher de negro aos gritos”

Viviam-se tempos diferentes dos de hoje, lembra Frederico Santiago, “não havia a apetência pelas músicas do mundo”, como agora, e “ninguém sabia o que era o fado, no estrangeiro”. Para Frederico Santiago, Amália “foi sempre muito inteligente, porque cantava muito pouco fado no estrangeiro, porque sabia que as pessoas não percebiam as letras. Fez muito mais pelo fado cantando dois ou três por recital e depois cantando canções espanholas, brasileiras ou mais tarde o folclore”.

Na altura, era hábito os grandes cantores serem acompanhados por grandes orquestras. Até nesse aspeto Amália foi inovadora, considera Frederico Santiago, que explica: “se pensarmos que nos anos 50 tudo tinha orquestras e bailarinos, aparecer uma mulher de negro aos gritos, quieta, os franceses diziam que ela vestia vestidos de ‘infanta’ como os da corte espanhola.” Santiago lembra que foi Amália quem introduziu a tradição de cantar fado vestida de negro, “antes dela isso não existia”.

“Há críticas que falam da tragédia mediterrânea feita mulher”, diz Frederico Santiago à Renascença, que recorda assim a forma como Amália surgiu como “uma bomba” no meio da elite cultural em França.

Paris tornou Amália uma “vedeta internacional”

Antes de atuar em Paris, Amália já tinha pisado outros palcos internacionais, mas a fadista costumava dizer que “foi a partir de Paris que se tornou uma vedeta internacional”, lembra Frederico Santiago. Este especialista nas edições de Amália tem dedicado os últimos anos da sua vida ao espólio deixado pela fadista.

Sobre a sua personalidade revela que era uma pessoa “sem manias”. “Ela vinha dos maiores êxitos no Lincoln Center, do Festival de Edimburgo e chegava ao aeroporto e quando lhe perguntavam como tinha sido, ela apenas dizia ‘ah, correu bem!’” Apesar de considerar que Amália “nunca se pôs em bicos de pés”, Frederico Santiago reconhece que a fadista teve uma “carreira muito maior” do que outras cantoras como Edith Piaf ou Ella Fitzgerald.

Frederico Santiago, que fala numa carreira universal da fadista, considera que ela viveu “entre o limbo do popular, com uma ligação direta ao povo e ao mesmo tempo, era completamente erudita”. Mesmo sem ter estudado num conservatório de música, Amália tinha uma noção da musicalidade, das palavas, dos tempos. Isso fez dela a rainha do Fado”, segundo o zelador do seu espólio musical.

Centenário vai continuar a revelar inéditos

Desde 2014 que Frederico Santiago está empenhado na edição da obra integral das gravações de Amália Rodrigues. No seu entender, o centenário que agora se assinala está a possibilitar que, “pela primeira vez a Amália seja falada, não só como a figura mais importante do fado, que é, mas também como um caso raro que aconteceu.”

Na opinião de Frederico Santiago, “a obra de Amália é muito mal conhecida”. Contudo, o especialista acrescenta que “mesmo nas coisas mais conhecidas, como no ‘Povo que Lavas no Rio’, a maior parte das pessoas nunca se sentou a ouvir com a atenção que a música merece, perceber todas as nuances com que canta, o cuidado vocal que tinha nas dinâmicas, a cantora erudita que era, nem que fosse a dizer um ‘ai’. É um caso muito raro!”, conclui Santiago.

Até ao final do ano, sairão ainda outros trabalhos inéditos. Frederico Santiago revela à Renascença que está a trabalhar “num disco de ensaios de Amália”. São ensaios de 1970, com Alain Oulman, “que ela só vem a gravar mais tarde e alguns deles nem sequer chegou a gravar”, explica.

São gravações que a fadista fez de “muitos poetas proibidos na altura”, diz este melómano, que considera “engraçado”, porque “muitas coisas que foram gravadas em 1970 e por não terem sido publicadas e ela ter voltado a gravar mais tarde, e terem saído depois do 25 de abril, houve muita gente a dizer que ela estava a gravar coisas de esquerda para se aproveitar, mas o que é verdade é que já em 1970 ela tinha gravado estas coisas”.

“Em Portugal, nunca se fez um disco de ensaios”, lembra Frederico Santiago, que com esta edição que sairá até ao final do ano vai “inaugurar uma parceria com o Arquivo Nacional do Som”. Será um disco duplo, “o primeiro nos estúdios da Valentim de Carvalho, e o segundo disco é em casa dela” e são todos ensaios de 1970.

Ouvir Amália nos ensaios é também descobrir uma fadista diferente da dos palcos. “Com as qualidades todas que tinha de voz e da inteligência que tinha para a usar, a Amália começava sempre os ensaios num nível que quando ouvimos consideramos estar perfeito”, diz Santiago.

No entanto, o responsável do espólio lembra que a fadista e o seu compositor Alain Oulman eram perfecionistas. “A Amália cantava de uma maneira muito diferente em estúdio da que cantava ao vivo e isso foi também uma das inteligências que ela teve”, afirma Frederico Santiago.

“Muito do reportório que gravou nos grandes discos é um reportório que se calhar era in cantável em palco. É um reportório mais ligado à poesia, para se ouvir em casa. Até nisso ela foi muito inteligente em fazer discos, porque o ritmo do espetáculo é outra coisa”, conclui Frederico Santiago.

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