Reportagem

Palhaços d'Opital levam pândega e carinho aos doentes. "Empatia pelos mais velhos diminuiu bastante"

06 dez, 2022 - 09:36 • Liliana Carona

São palhaços, mas levam a sério a luta pela humanização dos serviços hospitalares. Não tratam as dores do corpo, nem prescrevem medicação, mas os doutores da associação Palhaços d'Opital demoram meses a estudar e a preparar encenações e músicas que ajudam os doentes a lidar com a dor.

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Ao som de “Apita o comboio, lá vai apitar”, entram nos corredores do Hospital de S. Teotónio, em Viseu, com o ukulele, afinado, dois atores, os “doutores palhaços” Risotto e Donizete, decididos a despertar sorrisos no meio da dor.

Desde 2015 que o hospital beirão faz parte das sete unidades no país com quem têm protocolo. Numa das salas de espera, está José Luís, 60 anos. “Eles vêm cá muita vez, correm o hospital todo, devem animar o pessoal, já basta as tristezas de quem está a aqui a sofrer, venho cá de 15 em 15 dias, para quimioterapia, um cancro no pulmão”, conta.

O comboio continua a apitar e até no elevador os Palhaços d'Opital não perdem uma ocasião para fazer sorrir. “Vai para o quarto? Vai dormir?”, sorri para um utente que sobe até ao 5º andar.

A visita dos Palhaços d'Opital começa na unidade de cirurgia. Trabalhador do campo, António Mateus, de 92 anos, aplaude a sua chegada. “Fico satisfeito, gosto da pândega. Tinha um cancro na bexiga. E não sou daqueles que morrem, sou sempre divertido”, admite.

No mesmo quarto está o jornalista Diogo Paredes, de 23 anos. Nota que o serviço dos Palhaços d’Opital é urgente, principalmente para os mais velhos. “É normal que os hospitais estejam sobrelotados, poucos enfermeiros e falta um pouco isso, conversar com o utente, saber se está bem, acho interessante, especialmente para as pessoas mais velhas”, assume Diogo, a recuperar de uma cirurgia.

“A menina não tem nojo de me dar um beijo?”

As pessoas mais velhas são o principal foco da associação cultural sem fins lucrativos, Palhaços d’Opital. Há quase 10 anos que lutam pela humanização dos serviços hospitalares.

Uma história de amor pelos outros que fez a fundadora Isabel Rosado, de 48 anos, desistir de ser professora.

“Eu e o Jorge somos os fundadores, ainda fui a doutora palhaça, mas agora sou a presidente desta associação”, explica.

Isabel Rosado recorda o começo. “É uma dupla história de amor. A história entre o Jorge e a Isabel e a história de amor do Jorge e da Isabel pelos outros. Não estava preparada para o que ia encontrar nos hospitais, para tanto abandono. ‘A menina não tem nojo de me dar um beijo?’, questionavam-me, a sensação do ‘já não mereço, porque sou velha’”, lamenta a presidente da Palhaços d’Opital, que foi professora do ensino básico durante 23 anos.

“O Jorge foi professor durante 25, mas deixou há cinco anos. E eu deixei no início da pandemia e percebi que, se calhar, a minha missão era mais por aqui. Na escola era uma entre 70 mil e aqui conseguimos fazer a diferença, quase 70 mil pessoas por ano”, garante a responsável da associação.

“Um hospital tinha 47 idosos com alta e ninguém os ia buscar”

A ideia de criar esta associação surgiu em casal, juntamente com Jorge Rosado, 53 anos, que também deixou o ensino para se tornar no doutor palhaço Risotto.

“Somos das poucas organizações no mundo que não parou na pandemia, apenas dois meses quando a bomba da pandemia estourou e, em setembro de 2021, fomos a primeira organização a ir dentro dos quartos. Sempre que me lembro desse dia, a intensidade tão grande, tivemos que sair, emocionados. Mexeu muito connosco. Mas estivemos sempre nos corredores das salas de consulta”, assegura Jorge Rosado.

O ator dá exemplos do eco e retorno da sua atividade junto dos mais velhos. “‘O que é que aconteceu ao pai, que agora está sempre a rir, fala com toda a gente e quer ir para o hospital’? Perguntava uma filha. Isto é o nosso trabalho, que as pessoas encarem a dor e as situações tão complexas. Temos excelentes condições e profissionais de saúde, mas falta a humanização. Estamos a começar. Falta fazer muito, devia estar na agenda política nacional, o respeito pela pessoa mais velha. Esta humanização é urgente, a empatia pelos mais velhos diminuiu bastante na pandemia. Ainda há dias, um hospital de Lisboa informou-nos que tinham 47 idosos com alta hospitalar e ninguém os ia buscar”, lamenta Jorge Rosado.

O antigo professor insiste no propósito da associação. “A Palhaços d’Opital não é só uma entidade artística, mas um movimento de valorização e dignificação da pessoa mais velha. O objetivo maior é mudar esta ideia da pessoa mais velha. E queremos estar em todo o lado a nível nacional. E sermos reconhecidos como um fator importante nos hospitais”, anseia o ator.

“Nós somos doutores palhaços profissionais”

São muitas as histórias que ficam de dez anos ao serviço dos outros. “No Hospital de Viseu, em 2021, onde estavam três senhores que tinham tentado cometer suicídio, um deles virou-se para a mulher e disse: ‘traz lá o cavaquinho, que eu já nem me lembrava que gostava tanto de cantar’. Não temos a pretensão nem formação na área médica, não fazemos intervenção, não damos um copo de água, o que deixamos no quarto é uma memória coletiva, ligada ao humor, aos afetos”, considera Isabel Rosado.

Viseu foi o terceiro hospital parceiro. O primeiro foi Aveiro e depois Figueira da Foz. E no início do próximo ano já está assinado o protocolo com o S. João no Porto. “Nós oferecemos os nossos serviços nos hospitais, tendo como parceiros os hospitais públicos. Os nossos financiamentos vêm de fundos europeus e da generosidade dos donativos daqueles que são amigos d’Opital e podem saber mais sobre isto nas nossas redes sociais ou site”, diz em jeito de apelo.

Isabel Rosado sublinha os números do trabalho que desenvolvem. “Todos os dias podem ajudar a levar sorrisos aos hospitais. Fazemos uma média de cinco visitas semanais e para o ano passamos para as sete, mesmo em tempo de pandemia, chegámos às 152 visitas anuais e durante a pandemia disponibilizámos a Opital TV”, ressalva.


Risotto e Donizete a espalhar boas energias no Hospital de Viseu. Clique na seta para ver a fotogaleria
Risotto e Donizete a espalhar boas energias no Hospital de Viseu. Clique na seta para ver a fotogaleria
Diogo Paredes, jornalista internado no Hospital de Viseu, o papel dos palhaços, nomeadamente para os mais velhos
Diogo Paredes, jornalista internado no Hospital de Viseu, o papel dos palhaços, nomeadamente para os mais velhos
José Luís está a fazer quimioterapia para tratar um tumor no pulmão .De 15 em 15 dias encontra os palhaços que lhe trazem alegria
José Luís está a fazer quimioterapia para tratar um tumor no pulmão .De 15 em 15 dias encontra os palhaços que lhe trazem alegria
Jorge Rosado considera ser urgente a humanização nos hospitais
Jorge Rosado considera ser urgente a humanização nos hospitais

E como surgiu este nome, Palhaços d’Opital? “Por vezes as pessoas mais velhas nem sempre pronunciam bem o hospital e decidimos colocar Palhaços d’Opital”, refere Isabel Rosado, que, antes de entrar no quarto de um utente, procura obter informação que possa ajudar os palhaços no seu trabalho.

“Previamente tentamos saber se a pessoa tem visitas, há quanto tempo está internada, se tem dores, qual o estado”, salienta a fundadora da associação.

Os profissionais de saúde como o enfermeiro chefe, Jorge Paulo, 59 anos, reconhecem o trabalho dos Palhaços d’Opital. “Com 38 anos de enfermagem, já os conheço há muito anos, acho muito importante este trabalho, haver alguém que nos traga alegria, que nos faça esquecer a dor e o sofrimento, e que nos traga algum sorriso. A nível de som e da qualidade sonora desta equipa, tem havido uma evolução”, elogia.

E sim, a formação é intensa e constante. São palhaços, mas não brincam em serviço. Susana Gonçalves, 31 anos, atriz e palhaça há quase sete anos como Doutora Donizete, explica como se preparam para entrar nos hospitais.

“Nós somos doutores palhaços profissionais, temos todos formação na área. É muito gratificante poder sentir que faço a diferença, nem que seja por uns breves segundos. Transformámos aquele momento. Temos todos os anos formação e formação musical todas as semanas com muitos ensaios, é um longo processo criativo com estratégias de ferramentas de teatro e música. Estamos entre três a seis meses a preparar”, valoriza.

Sem tréguas e sem pausas, os ensaios e preparação dos Palhaços d’Opital estão agora de olhos postos na época natalícia que se avizinha. E também no dia 12 de fevereiro do próximo ano, data da Gala Solidária, para assinalar o 10º Aniversário da Palhaços d’Opital.

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