19 jan, 2025 - 09:30 • Henrique Cunha , Marta Pedreira Mixão (vídeo) e Octávio Carmo (Agência Ecclesia)
"A esmagadora maioria das pessoas” que contacta o Grupo Vita “acredita que o Papa está do seu lado", mas não sente a mesma empatia da parte dos bispos e responsáveis pelos institutos religiosos, afirma a coordenadora Rute Agulhas.
"Muitas delas pensam que o Papa está sozinho, a remar contra uma maré muito gigante", diz Rute Agulhas, em entrevista à Renascença e Agência Ecclesia.
A responsável pelo organismo constituído para acompanhar e prevenir as situações de violência sexual de crianças e adultos vulneráveis no contexto da Igreja Católica em Portugal sublinha que algumas das alegadas vítimas pedem para falar com os bispos e, nesses casos, as pessoas acabam, na sua maioria, por mudar de opinião. “O feedback que temos das pessoas que falam com os bispos é de que, afinal, salvo uma ou duas exceções, sentem empatia".
Até ao momento, o Grupo Vita recebeu 118 contactos e 61 pedidos de compensação financeira. Rute Agulhas revela que a maioria dos 118 contactos agora registados - mais 13 do que os revelados em junho de 2024 - são de pessoas com “uma média etária de 54 anos”. Os pedidos de compensação financeira são, agora 61, mais oito do que os reportados em meados de novembro do ano passado.
A psicóloga que coordena o Grupo Vita acredita que, em março ou abril, seja possível começar a definir os valores das compensações financeiras e recorda que a data para as vítimas avançarem com pedidos de compensação financeira é o final do mês março, embora esse prazo não seja absoluto.
Fora do âmbito eclesial, o Grupo Vita teve, até ao momento, 18 pedidos de ajuda. "A maior parte era de situações de abuso ocorridos noutros contextos, nomeadamente na família, por vizinhos, por tios... Portanto, em contexto intrafamiliar. Nós encaminha-no-los para as entidades competentes”.
Rute Agulhas defende que na questão dos abusos "era preciso fazer na sociedade o que está a ser feito na Igreja" e entende ser importante repensar as estratégias políticas sobre esta questão.
Nesta entrevista, a coordenadora do Grupo Vita deixa ainda algumas notas sobre os três estudos de investigação que vão ser apresentados na terça-feira e que apontam para a necessidade de se “continuar a investir na formação” dos educadores e na aposta na prevenção.
A psicóloga diz que é preciso combater “uma ideia errada do que é prevenção” porque “confunde-se a prevenção com duas ideias: com a ideologia de género e com a ideia de que se vai falar de sexo para as crianças e que se vai falar com uma linguagem sexualmente explícita”.
“Estas duas ideias estão erradas. Falar de prevenção é falar da promoção de comportamentos saudáveis, de relações saudáveis, é falar de aprender a diferença entre segredos seguros e inseguros, aprender a pedir ajuda, aprender que não tem de se obedecer sempre ao adulto”, sublinha.
"Era preciso fazer na sociedade o que está a ser feito na Igreja"
Começo por lhe pedir um ponto de situação quanto ao número de contactos e pedidos de compensação…
Até o momento, o Grupo Vita recebeu contactos de 118 pessoas, na sua esmagadora maioria pessoas adultas. Temos uma média etária de 54 anos. Destas 118 pessoas, o contacto foi feito sobretudo pelo telefone, também por email ou pelo formulário do nosso site. Algumas delas querem só desabafar, partilhar, quebrar o segredo que, em média, dura 40 anos. Esses são os nossos dados.
Temos um universo de 68 pessoas que quiseram estar connosco e que pediram um atendimento, quase sempre presencial, para podermos aprofundar um bocadinho a situação. Por vezes, é online, isso também depende de onde a pessoa reside e até temos contactos de pessoas que estão fora do país. São, muitas vezes, pessoas que pedem apoio psicológico, apoio psiquiátrico. Às vezes, não sabem muito bem se precisam, se querem. Há aqui alguma ambivalência…
Destas 68, tivemos algumas situações que não se enquadravam bem: nem eram crianças nem eram adultos vulneráveis. Poderia ter havido uma violação do sexto mandamento: pessoas adultas que, já com outra capacidade de consentimento, teriam tido um envolvimento com alguém da Igreja.
Na prática, temos um universo de 62 pessoas. A caracterização vai ser feita de forma bastante detalhada agora neste terceiro relatório de atividades, do ponto de vista da caracterização sociodemográfica, do tipo de situações que reportam, onde é que aconteciam, como é que se sentiam, que impacto é que estas situações tiveram. Uma conclusão importante que nós já tínhamos, de alguma forma, percebido um bocadinho essa tendência no segundo relatório, quando a amostra era um bocadinho ainda mais pequena…
"A duração do abuso é uma variável que tem um impacto muito significativo sobre a pessoa"
O relatório de 2024?
O de junho, sim. Portanto, nestes seis meses, com os novos casos e com esta nova análise estatística, fica mais claro que, de facto, a duração do abuso é uma variável que tem um impacto muito significativo sobre a pessoa. No fundo, é algo que a literatura nos diz há muito tempo, não é?
Quanto maior a duração, à partida, também é maior o impacto. O impacto depende de uma multiplicidade de variáveis, não é linear, isto não é nenhuma tabela de Excel, mas há, de facto, um conjunto de critérios que devem ser tidos em conta. Isto até para fazer a ponte para os pedidos de compensação financeira. Neste momento, temos 61 pedidos, 40 por parte de homens. Temos sempre aqui, também já na amostra geral, uma percentagem sempre maior de pessoas do sexo masculino.
O que está em consonância com estudos que foram feitos noutros países…
Exatamente, exatamente. As décadas, na nossa amostra, em que há uma maior prevalência destas situações abusivas são as décadas de 60 e as décadas de 80. E na de 80 especialmente com vítimas de rapazes, portanto, muitas vezes também associados ao contexto do seminário, o que nos ajuda a perceber esta assimetria em termos de género, que contraria os dados da sociedade civil.
Estes 61 pedidos, na maior parte, são de pessoas que já conhecemos, pessoas que já falaram connosco, previamente. Temos 15 situações novas, ou seja, 15 pessoas que nos contactaram desde que a Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) e a Conferência dos Institutos Religiosas de Portugal (CIRP) falaram desta possibilidade e que nos contactaram única e exclusivamente para esse efeito.
O Vita defendia que não tinha material suficiente para validar algumas denúncias, justificando assim o facto de pedir às vítimas que contassem de novo a sua história. Depois, pediu à CEP alterações ao regulamento. Quais eram? Foram todas atendidas nas adendas anunciadas, julgo que em novembro?
Sim. Antes disso, deixe-me explicar que as pessoas que já falaram connosco previamente ou com alguma entidade eclesiástica, e em que esse relato está documentado, não têm de o repetir. Não têm. Curiosamente, já fizemos oito atendimentos, no âmbito do processo das compensações e, destas oito, a maioria quer falar novamente sobre o abuso e nós dizemos “não, mas não tem de falar, porque já temos este relato, lembra-se? Já falou comigo ou já falou com a minha colega, temos aqui tudo escrito”. Muitas vezes, as pessoas dizem “não, mas eu preciso de falar, sinto-me aliviado”.
Mas também há a queixa contrária, das pessoas que não querem repetir…
Mas se já disseram, não têm de repetir. Se já relataram, seja junto de nós, seja, por exemplo, de uma comissão diocesana ou de um instituto religioso... Isso está documentado.
Sim, o problema que tem existido tem a ver com o material que foi recolhido pela comissão independente.
Sim, mas a esse nós não temos acesso absolutamente a nenhum…
Nesse caso, da recolha da comissão independente, os relatos têm de ser apresentados de novo?
Têm, porque se uma pessoa chega ao pé de mim ou de nós, da comissão de instrução, e diz “mas eu já contei tudo no formulário da comissão independente ou até reuni com um elemento X da comissão independente e contei toda a minha situação”. Mas eu não sei, nós não temos isso em lado nenhum, nós não temos qualquer informação sobre isso. Portanto, é nestas situações, que ainda assim são residuais, que a pessoa, de facto, tem de nos contar aquilo que se passou, quando é que se passou, com quem é que se passou, porque nós, naturalmente, não sabemos…
Todas as outras pessoas que já relataram previamente, que são a maioria - só 15 é que nós nunca tínhamos visto antes e, portanto, vieram agora ter connosco com esse objetivo - só relatam se quiserem. Até eu própria fiquei espantada, nestes oito atendimentos que já fizemos entre dezembro e agora início de janeiro. Eu dizia “eu já sei, já contou, temos aqui o documento” e respondiam "mas eu quero falar, liberta-me, alivia-me”. Portanto, houve algumas pessoas que sentiram isso. O "feedback" que temos destas oito pessoas que entrevistamos, sendo que temos mais agendadas, é muito, muito positivo.
"Situações mais recentes que ainda não teriam prescrito tivemos cerca de duas ou três"
O regulamento prevê a constituição de dois grupos, um para analisar os pedidos e outro para definir valores. O grupo para definir valores já está criado?
Que eu saiba, não porque, se estivesse, eu teria de saber. É suposto o Grupo Vita indicar duas pessoas para esse grupo.
Ainda é prematuro dizer-se quando é que as primeiras compensações financeiras vão ser pagas?
É, é prematuro porque nós - o Grupo Vita, a equipa de coordenação nacional que integra esta comissão de instrução ou alguém designado pelo instituto religioso - estamos a fazer tudo, depois da avaliação das oito pessoas, para agendar todas as outras, sendo certo que há aqui também uma variável importante: somos nós que vamos ter com as pessoas e, portanto, temos imensas deslocações ao norte do país, até às ilhas. Estamos a tentar que as pessoas desloquem o menos possível. Estamos a fazer esses agendamentos com a celeridade que é possível.
Para não se correr risco do processo se arrastar indefinidamente…
Exatamente. A minha expectativa, aquilo que eu gostaria que acontecesse era que, em meados de março, abril, já tivéssemos um número suficiente de processos analisados por esta primeira comissão de instrução, permitindo o início de funções do segundo grupo. Houve um prolongamento do prazo: a nossa proposta era até junho, ficou em março, mas ficou em março com uma condição clara que vem explícita no Regulamento: não é uma parede, não é uma barreira o 31 de março. Se alguém nos contactar em abril ou maio, claramente que essas pessoas vão ser atendidas, na mesma.
Por aquilo que vimos noutros países é que estas situações se vão arrastar no tempo, ou seja, vai haver pessoas que, no futuro, vão falar pela primeira vez…
Claro que sim, claro que sim. Nós sabemos que há pessoas que não sabem se querem pedir, que estão ambivalentes. Já tive pessoas que disseram que não e depois a seguir dizem que sim. E já tive o contrário. Há uma ambivalência que é natural, que é expectável. É natural que possa haver pessoas que não sintam ainda a capacidade de dar esse passo e, por isso, essa porta não se fecha a 31 de março.
Foi um entendimento. Tínhamos pedido até junho, enfim, ficou até março, mas ficou este entendimento de que é uma porta que não se fecha, como é óbvio, e é muito importante passar esta mensagem. De acordo com a nossa amostra, 40% das pessoas estão a revelar agora pela primeira vez na vida, depois de uma média de 43 anos em silêncio. Não é fácil, não é? Não é só porque o 31 de março se aproxima, que as pessoas conseguem ter a capacidade, a coragem e a confiança que também que é preciso ter no sistema e no grupo.
"Há pessoas que não sabem se querem pedir [compensações], que estão ambivalentes. Já tive pessoas que disseram que não e depois a seguir dizem que sim. E já tive o contrário"
Uma questão que eu queria esclarecer, que tem a ver também com esta receção de testemunhas e de relatos. Há alegadas vítimas que dizem que o Grupo Vita não validou os seus testemunhos e que, por isso, não são incluídas nas compensações financeiras. Que casos são estes?
Foi apenas um caso que foi mediatizado, sim, e que foi devidamente fundamentada essa situação. Aliás, o relatório que foi feito até apareceu no ecrã da televisão, não é? Portanto, a pessoa partilhou-o com o órgão de comunicação social em causa. Portanto, sim, houve uma avaliação e foi entendimento de que aquela situação não preenchia os critérios. Foi uma apenas, até o momento.
No primeiro ano de funcionamento, de acordo com o relatório que foi apresentado em 2024, o Grupo Vita tinha recebido 105 queixas. No início da nossa conversa, disse que, neste momento, serão 118. São casos atuais ou já prescritos?
A maior parte deles são casos prescritos, porque já aconteceram há muito tempo. São pessoas adultas, temos uma média etária de 50 anos, mas uma variabilidade que vai até aos 70 anos de idade. Temos menos processos, de facto muito poucos, com situações mais recentes. Isto acho que deve exigir uma reflexão? Se calhar, não estamos ainda a conseguir chegar - e daí a importância da prevenção de que falaremos mais adiante - às camadas mais jovens, às situações que estejam a acontecer agora ou que tenham acontecido mais recentemente. Situações mais recentes, que ainda não teriam prescrito tivemos cerca de duas ou três, que foram naturalmente de imediato sinalizadas às entidades competentes, à Polícia Judiciária e ao Ministério Público, como fazemos sempre.
O que tivemos foram duas situações importantes, que acho relevantes: duas situações em que prescreveu do ponto de vista penal, civil, mas em que Roma derrogou essa prescrição. Ou seja, a Doutrina da Fé entendeu que aquelas situações deveriam passar por um tribunal eclesiástico. E temos essas duas situações na nossa amostra. Portanto, situações acontecidas há muitos anos, uma delas já se concluiu, a outra ainda está a decorrer, mas que tiveram um processo de tribunal eclesiástico por decisão da Doutrina da Fé, o que eu acho que é muito importante, porque é algo que no nosso Código Civil e Penal não é possível acontecer.
Mas que é possível no direito canónico…
Sim, é possível no direito canónico.
"Numa fase inicial, muitas dioceses e institutos religiosos diziam que, se calhar, não precisavam de formação"
Também por iniciativa do Papa Francisco... Falando no Papa, ele acaba de lançar uma autobiografia em que dedica uma longa reflexão a esta questão dos abusos sexuais. Ele diz claramente que aquilo que as vítimas têm de saber é que o Papa está do seu lado. Por outro lado, tem-se passado uma ideia de resistência por parte de alguns bispos portugueses. Como é que tem sido a colaboração com os responsáveis diocesanos?
A esmagadora maioria das pessoas, a esmagadora maioria das vítimas que nos contactam acredita que o Papa está do seu lado. Não questionam isso. Acham, muitas delas, é que ele está sozinho, a remar contra uma maré muito gigante.
Quando falamos dos bispos, e não só dos bispos, também dos superiores gerais dos institutos religiosos, não podemos ficar só nas dioceses, muitas vítimas sentem que da parte dos bispos ou dos superiores gerais não há essa mesma proteção, não há essa mesma, enfim, esta empatia, esta aliança. O que é que tem acontecido nalgumas situações? Algumas vítimas têm-nos pedido para falar com os bispos, para serem recebidas, e a mesma coisa aconteceu há duas semanas com uma superiora geral de uma congregação feminina. E o "feedback" que temos das pessoas que falam com os bispos, de uma maneira geral, é de que, “afinal, senti empatia, senti que aquela pessoa está ali, de facto, alinhada com as diretrizes que vêm de Roma e com aquilo que o Papa Francisco defende”. Diria que este é um caminho. Naturalmente que não há da parte de todos os bispos e da parte de todos os superiores gerais a mesma disponibilidade, a mesma empatia, a mesma abertura.
Já funcionámos há um ano e meio, o Grupo Vita, e, portanto, olhando para trás, eu diria que isto tem sido um caminho gradual. A título de exemplo, numa fase inicial, muitas dioceses e institutos religiosos diziam que, se calhar, não precisavam de formação porque já tinham tido algures no tempo por parte da entidade A ou B ou porque não tinham casos. À data de hoje, 50% das dioceses já nos pediram ajuda do ponto de vista da formação para padres, diáconos, catequistas, professores de Educação Moral e Religiosa Católica (EMRC), agentes pastorais, etc.
E começamos a sentir este mesmo começo de pedidos por parte dos institutos religiosos. Os catequistas e os professores de EMRC, vou pô-los aqui um bocadinho à parte, porque desde o início mostraram uma disponibilidade muito grande, através do Secretariado Nacional da Educação Cristã (SNEC).
E tem havido trabalho com o SNEC?
Sim. Desde o início que o SNEC se mostrou muito, muito recetivo, e, portanto, eu diria que os catequistas e os professores de EMRC são aqui um grupo particularmente sensível, motivado e a querer perceber como é que podem fazer.
"Hoje, a figura do padre já não é vista da mesma maneira. Como era, se calhar, há 40 anos. Mas continua a haver sempre uma assimetria de poder"
Já que fala do contexto escolar, pergunto se o Grupo Vita recebeu pedidos de ajuda de situações ocorridas noutros contextos, que não o eclesial?
Sim, sim, sim. Tivemos até o momento, se não estou em erro, 18 pedidos de ajuda de situações que não tinham a ver com o contexto da Igreja. Destes 18, a maior parte eram situações de abuso, mas acontecidas noutros contextos, nomeadamente na família, por vizinhos, por tios, portanto, num contexto intrafamiliar, que nós, naturalmente, depois encaminhamos para as entidades competentes.
Temos também pessoas que nos procuram com situações de violência doméstica, por exemplo, que também temos depois de procurar a estrutura de apoio mais indicada. Há pessoas que ainda às vezes pensam no Grupo Vita como uma porta também para outro tipo de situações e nós fazemos o devido encaminhamento.
O Grupo Vita tem acompanhado as situações em que os alegados abusadores foram suspensos e os processos arquivados? É uma questão delicada, porque as pessoas voltam ao ativo. Como é que se gere essa situação?
É difícil de gerir, é difícil de gerir porque para as pessoas, para as vítimas e mesmo para a sociedade, há muitas vezes a sensação de impunidade, a sensação de que, afinal, isto não é assim tão rigoroso como deveria ser. Eu tento às vezes que algumas vítimas percebam a diferença entre haver a convicção e conseguir a prova. Isto também acontece nos nossos tribunais civis, não é? Às vezes, há a convicção de que o abuso possa ter acontecido, mas não se conseguiu fazer prova e "in dubio pro reo". Isto é mesmo muito difícil de gerir para uma vítima. Estou a pensar nas vítimas todas que acompanhei ao longo da minha vida profissional fora do contexto da igreja e na igreja é especialmente difícil. Quando num tribunal civil o juiz tem a convicção, mas não conseguiu fazer prova e arquiva, ninguém diz “o juiz está do lado do agressor, o juiz está a proteger o agressor”. Consegue-se perceber que, se calhar, efetivamente, não se conseguiu produzir prova. Na Igreja a reação imediata é “estão a encobrir, estão a proteger”.
Daí, haver mais dificuldade no seu regresso à atividade?
Sim...
Só para ficar claro: obviamente, os processos iniciam-se seguindo regras que, neste momento, são muito rígidas e algumas delas implicam que o processo se inicie mesmo sem um conjunto significativo de provas e o arquivamento também pode ser na sequência da inocência…
Exatamente, pode ser na sequência da inocência, de não se ter conseguido fazer prova porque se passaram muitos anos e, até prova em contrário, as pessoas num Estado de Direito têm de ser consideradas dessa forma. Mas, de facto, é difícil para as vítimas lidar com esta situação.
São perceções diferentes…
Sim, que nós tentamos ajudar a integrar e a perceberem que efetivamente só o facto de Roma ter derrogado a prescrição, por exemplo, já é um sinal positivo: merece ser investigado, merece ser avaliado, mesmo que depois seja arquivado.
"Sabemos que a maior parte das situações abusivas acontecem na família e não são pessoas celibatárias"
Sabemos que muitos abusos estão associados aos abusos de poder. Com o trabalho feito nos últimos anos, notam-se mudanças a este nível?
Não sei como responder a essa pergunta porque aquilo que eu sinto... As pessoas mais velhas, quando olham para trás, associam sempre a figura da pessoa abusadora, na maior parte sacerdotes, como alguém divino. Portanto, quando alguém é endeusado, naturalmente a assimetria de poder é muito grande.
De facto, são dois patamares completamente diferentes. Eu diria que hoje, pela forma como a religião é vivida, já não há esta assimetria tão grande, mas continua sempre a haver uma assimetria de poder a partir do momento em que um é adulto e outro é criança ou jovem, ou em que um é adulto e outro é um adulto vulnerável. Portanto, essa assimetria de poder existe sempre.
Diria que, ao longo das décadas, pensando um bocadinho na forma como a própria religião tem vindo a ser integrada pelas pessoas, hoje a figura do padre já não é vista da mesma maneira. Como era, se calhar, há 40 anos. Mas continua a haver sempre uma assimetria de poder e, por isso, é tão importante nós empoderarmos as vítimas, para que sintam que há também este caminho de empoderamento e de escuta, e trabalhamos com as instituições eclesiásticas - seja uma escola, seja uma paróquia, seja um agrupamento de escuteiros, etc. -, no sentido de se criarem estruturas e uma cultura de cuidado e de proteção, códigos de conduta, regras de conduta que sejam trabalhadas, formação para todos estes intervenientes. Portanto, é também nesta perspetiva que é importante, mas a assimetria de poder mantém-se.
Das conclusões que também vão ser apresentadas nos três estudos, algumas irão nesse sentido. O que é que nos pode já adiantar?
Nós iniciamos há um ano e meio cinco estudos, três estão concluídos e vão ser apresentados agora. Os outros dois, que são os programas de prevenção primária, serão apresentados em maio.
Temos aqui dois conjuntos de estudos um bocadinho diferentes. Um primeiro estudo que nós fizemos foi tentar perceber a vivência do celibato por parte de religiosos e religiosas.
Tivemos uma amostra com homens e com mulheres. Uma das conclusões desse estudo é que, de facto, parece haver aqui um maior compromisso com o celibato e este parece ser vivido de uma forma mais satisfatória quanto mais as práticas espirituais são regulares e quanto mais há um compromisso com a espiritualidade. E encontramos uma diferença de género: de acordo com a nossa amostra, que até não é assim muito grande e, portanto, precisa de ser aprofundada em estudos futuros, parece haver mais desafios para os homens do que para as mulheres. Isto significa, primeiro, que temos de perceber melhor estas diferenças, por que é que homens e mulheres vivem o celibato de forma diferente e dá-nos também indicação de que a vivência do celibato será também mais fácil e mais integradora quanto melhor o bem-estar psicológico da pessoa. Portanto, uma das sugestões que nós fazemos é a de ser normalizado nos programas de formação religiosa, nos seminários, quando as pessoas estão a fazer esse caminho, o suporte psicológico ser uma componente normalizada, transversal, para que as pessoas, de facto, possam também elaborar este processo. Esta foi uma primeira área que nós quisemos perceber. Porquê? Porque as questões do celibato são sempre muito colocadas...
Sim, quando se fala de abusos, há sempre a questão se isso está ligado ou não ao celibato…
Exatamente. E, de facto, não há literatura que corrobore isso. Aliás, sabemos que a maior parte das situações abusivas acontecem na família e não são pessoas celibatárias. Portanto, quisemos começar. Isto foi apenas um primeiro estudo para começar a estudar as questões do celibato.
Depois, temos dois outros estudos, deste conjunto de três, um com catequistas e um com professores de Educação Moral e Religiosa Católica, porque eles são, acima de tudo, os principais agentes a poder utilizar recursos preventivos junto das crianças e dos jovens. Os catequistas, com os seus grupos de catequizandos, e os professores nas escolas, sejam católicas ou públicas. Quisemos perceber como é que estes dois grupos se sentem perante este fenómeno, perante esta problemática, que competência é que acham que têm para a trabalhar, se já o fazem, se não o fazem, que tipo de crenças é que têm que podem facilitar ou dificultar a aplicação de programas de prevenção.
"Falar de prevenção é falar da promoção de comportamentos saudáveis, de relações saudáveis com os outros"
Houve desde muito cedo uma disponibilidade de participar nesta dinâmica…
Foi desde logo, sim. Aqui temos amostras grandes, porque temos uma disponibilidade muito grande por parte destes dois grupos-alvo. O que é que nós percebemos com estes estudos? Que, de facto, os professores de EMRC sentem-se mais confortáveis do que os catequistas a abordar este tema, que já o vão fazendo, de alguma forma, apesar de muito pontual, porque aconteceu uma notícia ou porque alguém faz um comentário na aula.
Portanto, não há um trabalho diário e sentem que, havendo um programa, havendo um recurso facilmente o podem integrar no seu trabalho diário,. Sentem essa necessidade. Naturalmente, encontramos também alguns mitos, algumas crenças disfuncionais, mas isso também não estranhamos que as existam, porque elas são transversais à nossa sociedade, não é? Mas sentimos que há uma maior disponibilidade e para os professores parece que é mais fácil integrar isto.
Os catequistas sentem-se menos à vontade, ou seja, reconhecem que sabem pouco sobre o tema, precisam claramente de mais formação, têm mais dificuldade em perceber como é que podem integrar os temas da prevenção com os temas do catecismo e queixam-se também de alguma falta de tempo. Por isso, sugerem sempre, o que faz todo sentido, que a prevenção tem de ser sistémica, tem de ser abrangente, não pode ser só na catequese ou na aula de Educação Moral, tem de ser com a família, tem de ser na própria escola, no próprio contexto onde as crianças estão.
No fundo, estes dois estudos vêm-nos dizer que é preciso continuar a investir na formação destas pessoas para se sentirem mais competentes, mais capazes, para poderem depois utilizar os recursos que estamos a produzir. Os outros dois estudos que serão apresentados são os dois programas de prevenção primária, um para crianças dos 6 aos 9 anos e outro para crianças jovens dos 10 aos 14, que é um jogo digital. Aquilo que os professores e os catequistas nos dizem é que é ótimo que haja recursos porque querem abordar o tema e não sabem como.
Às vezes também surge, e surgiu nestes dois estudos com professores e catequistas, um bocadinho uma ideia errada do que é que é prevenção. Confunde-se a prevenção com duas ideias, que é com a ideologia de género e com a ideia de que se vai falar de sexo para as crianças e se vai falar com uma linguagem sexualmente explícita.
Estas duas ideias estão erradas. Falar de prevenção é falar da promoção de comportamentos saudáveis, de relações saudáveis com os outros, é falar de aprender a diferença entre segredos seguros e inseguros, aprender a pedir ajuda, aprender que não têm de obedecer sempre ao adulto só porque é um adulto ou só porque é uma figura de autoridade, aprender, no fundo, a proteger aquele que é o maior tesouro, que é o corpo. Isto, naturalmente, com materiais lúdicos, que estão a ser vistos por pessoas da Igreja, que nós chamamos os embaixadores, que estão a rever estes materiais. Quando apresentarmos estes materiais em maio para crianças de 1.º ciclo e para 10-14 anos, serão materiais ajustados à idade, com uma linguagem adequada à idade. Há aqui este contexto da Igreja, que “embrulha” estes materiais, mas no fundo os grandes temas são os temas que a literatura nos diz, já há mais de 60 anos, que devem ser trabalhados com as crianças e que, de facto, não causam stress, não causam alarmismo, não causam ansiedade.
"As décadas, na nossa amostra, em que há uma maior prevalência destas situações abusivas são as de 60 e de 80. E na de 80 especialmente com vítimas de rapazes"
Queria confrontá-la com declarações de há pouco tempo da presidente da Comissão Nacional da Promoção dos Direitos e Proteção das Crianças e Jovens, que admitiu que nada se fez relativamente ao estudo que o governo anterior, do PS, tinha prometido sobre abusos nos diferentes contextos de socialização das crianças. Não há vontade de estudar aprofundadamente este flagelo social?
Pois, é verdade, nada se fez e esse estudo não foi feito. Nós próprios também já o dissemos, em vários quadrantes, que era preciso fazer na sociedade civil aquilo que está a ser feito na Igreja, perceber os abusos intrafamiliares, extrafamiliares, nas escolas, no mundo online, no desporto, ou seja, temos todo um conjunto de contextos onde os abusos acontecem. Não temos, em Portugal, um verdadeiro estudo de prevalência. O que temos são os novos casos que todos os anos vão sendo conhecidos, com a casuística que vai sendo partilhada pela Polícia Judiciária. Eu não sei se não é uma questão de vontade ou não, mas o que posso dizer é que, e isso também é público, recentemente, houve uma disponibilização do Ministro da Educação, da parte da própria DGE, para pensar sobre isto.
Acho que não me compete a mim dizer se há ou não vontade política, eu diria que é importante repensar as estratégias políticas a este nível. Por exemplo, está agora a acabar a estratégia de promoção dos Direitos da Criança: o que é que foi feito em concreto, que medidas é que foram operacionalizadas? Às vezes, está tudo muito bem definido na lei, as diretrizes são muito claras, a legislação está bem pensada, mas, depois, de facto, não é operacionalizado. Eu concordo que, de facto, o estudo já deveria ter sido feito há muito tempo.