05 jan, 2025 - 21:10 • Ângela Roque
A pobreza é transversal no país, e as dificuldades económicas estão a impedir as famílias de ter mais filhos. O retrato é feito à Renascença por Fernanda Capitão, presidente da Sociedade de São Vicente de Paulo, com base nas informações que tem recebido das Conferências Vicentinas que estão presentes em quase todas as dioceses, e que se deparam com cada vez mais casos de “pobreza envergonhada” - pessoas que trabalham, mas não ganham o suficiente para se sustentar.
“Há pobreza escondida, pobreza envergonhada. Temos visitado várias dioceses e falado com as Conferências Vicentinas, e há problemas sociais que são transversais. Temos cada vez mais famílias onde os dois elementos do agregado familiar trabalham, e aquilo que ganham não é suficiente para a subsistência. Com um filho é difícil, mas com dois filhos é muito mais difícil. E isto é um impedimento, muitas vezes, para as famílias ponderarem ter mais filhos. É pena no nosso país estarmos a passar por esta dificuldade, mas é uma realidade”, sublinha à Renascença.
A dificuldades de acesso à habitação é um dos problemas mais graves com que se têm deparado, com situações que considera indignas. “É uma preocupação nossa. A dificuldade com a habitação, a sobrelotação, de certa forma a promiscuidade que se vive em casas sobrelotadas, com famílias a viver em quartos. E já se verifica, ao nível dos arrendamentos, arrendarem marquises! Já não é um quarto, já é uma marquise que é arrendada. Isto é um atentado à dignidade das pessoas”, refere.
Entre os que ajudam em todo o país há cada vez mais imigrantes e novos desafios para ultrapassar. A língua é uma barreira, mas não só. “A rotatividade é um problema. Ficam pouco tempo na mesma habitação, no mesmo concelho. Outro obstáculo é a dificuldade com a comunicação. Se temos muitos migrantes - e sabemos – dos PALOP ou do Brasil, também temos migrantes do Cazaquistão, da Índia, e a dificuldade com a língua é muito notória. Depois, a questão da cultura, a alimentação, perceber que alimentos é que consomem e não consomem, para ir de encontro àquilo que eles, de facto, necessitam. Esta avaliação também tem de ser feita com as famílias migrantes”, conta esta responsável.
Reportagem
A dificuldade de acesso à habitação é fator de exc(...)
A caminho de celebrar 166 anos de presença em Portugal, a Sociedade de São Vicente de Paulo – Conferências Vicentinas é uma das instituições católicas que continua na linha da frente da ajuda aos mais carenciados em todo o país. Esta associação de leigos está presente em todas as dioceses, menos na de Angra (Açores) e na de Bragança-Miranda, e funciona em ligação com as paróquias. A ligação aos párocos é fundamental, sublinha Fernanda Capitão, para darem a conhecer quem são e o que fazem, e as necessidades que existem.
“Muitas vezes as comunidades não têm noção das situações de pobreza que existem ao seu lado, e também nos compete alertarmos para essa realidade e envolver os párocos neste serviço de caridade. Porque o pároco é uma pessoa fundamental para a Conferência Vicentina. Todas as conferências têm um assistente espiritual que mantém, de certa forma, a espiritualidade do encontro com Cristo ressuscitado, que levamos nas visitas às famílias”.
“O carisma da Sociedade São Vicente de Paulo é a visita domiciliária. Ir ao encontro das pessoas nas suas casas permite que se crie uma relação de proximidade e confiança com as famílias muito maior, para depois podermos ajudá-las a encontrar soluções para os problemas, aliviar o seu sofrimento, ou simplesmente aquilo que é tão necessário hoje em dia, que é escutar. Terem uma pessoa que escute, que faça companhia, que reze. Temos vicentinos que fazem isto de uma forma muito simples e bonita, todas as semanas vão à casa das pessoas que moram em sítios mais isolados e que estão sozinhas, só para estar um pouco com eles e rezar o terço”, conta.
“Ver Cristo no rosto dos irmãos faz parte da nossa essência. Perceber que naquela pessoa que está numa situação de vulnerabilidade está Cristo nele, assim como está em nós. Somos mandatados por Cristo para sermos este rosto da caridade, e pôr em prática as obras de misericórdia, dar de comer a quem tem fome, dar de beber a quem tem sede. É esta a nossa missão”, sublinha ainda.
As visitas domiciliárias e a distribuição de cabazes alimentares são, desde sempre, as marcas principais dos vicentinos. Mas, a ajuda que dão vai muito para além disso. “Somos conhecidos pelas pessoas que levam o cabaz alimentar às famílias. É o chamado assistencialismo, mas não podemos esquecer que é fundamental nos dias de hoje. As pessoas têm de ter de comer. Muitas das conferências vicentinas recebem o apoio do Banco Alimentar, mas o cabaz que fazem vai além daquilo que o Banco Alimentar dá. Temos uma população cada vez mais envelhecida, fornecemos apoio na medicação mensalmente, pagamento de consultas médicas. Emprestamos todo o material geriátrico nas casas das pessoas, como camas e cadeiras de rodas, por exemplo. Emprestamos, são utilizadas enquanto é necessário, revertem para a Conferência e são emprestadas novamente”.
O que as Conferência Vicentinas fazem depende das necessidades do contexto em que são chamadas a servir. “Elas adaptam-se à realidade das comunidades, e verificam as necessidades”. E dá exemplos: “temos o caso de uma conferência em Sintra, que o seu trabalho é unicamente com as famílias das pessoas que estão presas. Dou também o exemplo de uma conferência na Diocese de Coimbra, numa zona fora da cidade, onde a maior parte da população é idosa e mora sozinha, então eles criaram espaços para a dinamização de atividades com os idosos. Esta é a missão da Sociedade São Vicente de Paulo: observar, ver quais são as necessidades, tentar dar resposta, motivar as comunidades para a ajuda”.
Fernanda Capitão explica que para se ser vicentino tem de se fazer formação. “Há um tempo de preparação e de conhecimento, com a participação ativa nas visitas, no mínimo durante seis meses. Há pessoas que preferem ser voluntárias, mas que demoram pouco até à entrada oficial, digamos assim, nas Conferências Vicentinas”.
Sem contar com quem ajuda pontualmente, ou contribui com donativos, atualmente são mais de 6 mil em todo o país. “Temos 6.350 vicentinos. Depois, temos as pessoas que não têm tempo para esta missão, porque trabalham, mas querem ajudar, são os subscritores, os beneméritos, que contribuem mensalmente com um determinado valor. E temos os voluntários”.
Fernanda Capitão está à frente da Sociedade de São Vicente de Paulo há quase um ano, e reconhece que é uma organização “muito envelhecida”. Em 2025 a atual direção, que já integra um vice-presidente para os jovens, tem como prioridade conseguir mobilizar os mais novos, para reforçar a capacidade de resposta aos desafios, que são cada vez maiores.
“Temos jovens que pontualmente apoiam as Conferências, fazem a distribuição dos cabazes, as visitas, trabalham com as crianças, criam ações próprias para os filhos das pessoas que estão em situação de maior vulnerabilidade. Mas, depois, entrar para um trabalho efetivo é difícil. E há tantas ofertas para os jovens muito mais apetecíveis. Temos de perceber como é que os podemos cativar para esta missão vicentina, e ir ao encontro daquilo que eles querem fazer. Ouvi-los, escutá-los”. Garante que essa será “uma prioridade de ação da nova direção e do vice-presidente para os jovens. Temos algumas inovações previstas para este ano, que incluem encontros de jovens a nível nacional”, e mais atenção aos temas que os preocupam, como o ambiente e a sustentabilidade.
Na reportagem alargada que a Renascença realizou antes do Natal, sobre o trabalho das instituições da Igreja que atuam em bairros da Grande Lisboa, as Conferências Vicentinas também estiveram em destaque, com o testemunho de
Adelina Almeida. Advogada, de 78 anos, integra o Conselho Central da diocese de Lisboa, onde há 612 vicentinos a apoiar mais de 4700 famílias.
“Só em número de assistidos, a nível da diocese de Lisboa, temos 4755 famílias, o que vem a dar um total de 12 mil pessoas. Agregados [familiares] com uma pessoa, são 1977. Em toda a diocese de Lisboa há uma grande percentagem de pessoas idosas e pessoas que vivem sós”, contou.
Só na conferência a que pertence, na Amadora, estão a apoiar 600 famílias, onde se incluem muitos desses casos. “Fez-se uma divisão, uma listagem com as pessoas que vivem sós, e há equipas de Vicentinos que as vão sempre visitar… porque 600 era impossível!”.
Também ali apoiam um número significativo de famílias que não conseguem suportar as despesas de habitação. “Há uma grande percentagem de casais com grandes dificuldades. Porque podem estar empregados, os dois até, com ordenado mínimo, mas se têm dois filhos é impossível pagarem uma renda de 900 euros. Não dá! Concretamente na Amadora, tenho vários casos. As pessoas ganham para pagar a renda, e depois o que é que fica?”.
Adelina falou, ainda, da ajuda que asseguram aos sem abrigo – que também na Amadora são cada vez mais -, e nos bairros mais problemáticos do concelho, como o bairro do Zambujal ou o de Santa Filomena, mas onde nunca teve problemas, defendendo que não se pode deixar de ajudar quem precisa. “A palavra desistir não consta do vocabulário do vicentino. Nós, vicentinos, nunca desistimos, porque assim Deus quer. Se nos deu esta missão, é para cumprir”, afirmou.